Capa da publicação Consumidor superendividado e dignidade humana
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A tutela do consumidor superendividado e o princípio da dignidade da pessoa humana

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3. O SUPERENDIVIDAMENTO

3.1. CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA

Delineado panorama histórico acerca do endividamento nas sociedades contemporâneas e, mais especificamente, do surgimento e aspectos da fenomenologia do superendividamento no Brasil, cumpre, a partir de então, adentrar no estudo acerca da caracterização jurídica do dito fenômeno.

Segundo Leitão Marques (2000, p. 2), o superendividamento é identificado no Estado em que o consumidor:

Se vê impossibilitado, de uma forma durável ou estrutural, de pagar o conjunto de suas dívidas, ou mesmo quando existe uma ameaça séria de que não possa fazer no momento em que elas tornarem exigíveis.

O conceito, no entanto, concessa venia, não é suficiente para determinar a natureza jurídica do superendividamento, pois tal fenômeno não pode ser tido apenas do ponto de vista do inadimplemento obrigacional, tendo maior abrangência.

O consumidor superendividado não se encontra num estágio tão somente de impossibilidade de pagamento aos seus credores/fornecedores, mas sim num estágio onde resta ameaçado, pelo acúmulo de dívidas, o custeio de suas necessidades básicas e de sua dignidade como pessoa humana, fato este que enseja interesse e proteção jurídicos.

Neste sentido lecionam Lima e Bertoncello. (2010, p. 26. e 27):

No plano jurídico, o endividamento é constituído pelo conjunto do passivo, ou seja, o saldo devedor de uma família com origem apenas em uma dívida ou mais de uma divida simultaneamente, denominando-se, neste último caso, de multiendividamento. O endividamento não é um problema em si mesmo, quando ocorre num ambiente favorável de crescimento econômico, queda de juros,e, sobretudo se não atingir camadas sócias com rendimentos próximos do limiar da pobreza.

Continuam as Autoras:

Todavia, o endividamento assume uma dimensão patológica, com repercussões econômicas, sociais, psicológicas e até médicas, quando o rendimento familiar não é mais capaz de suportar o cumprimento de compromissos financeiros. Nessa caso, o endividamento é identificado no direito comparado como superendividamento, falência ou insolvência dos consumidores.

Assim, um conceito substancial na doutrina pátria acerca do fenômeno do superendividamento é o da professora Claudia Lima Marques (2006, p. 14):

Podemos definir este fenômeno como a impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos)

3.1.1. Superendividado Ativo e Superendividado Passivo

Referido fenômeno jurídico, ainda baseado nas lições da doutrinadora Cláudia Lima Marques (2005, p. 11-52), conforme já evidenciado nas linhas introdutórias deste trabalho, se materializa de duas formas:

1) Superendividamento Ativo que é fruto de uma acumulação inconsiderada de dívidas, desde que de boa fé, conhecido também como endividamento compulsório;

2) Superendividamento Passivo que é aquele provocado por um imprevisto da vida moderna, ou seja, a dívida proveniente do desemprego, da doença que acomete uma pessoa da família, pela separação do casal, entre outros.

Deste modo, o superendividado ativo é o consumidor que age ativamente para o acúmulo das dívidas, pois gasta mais do que ganha atuando positivamente, mesmo que de boa-fé, para se colocar na posição de endividado.

Já o superendividado passivo é aquele que não atua para colocar-se na situação de endividado, vindo a ocupar tal posição em virtude de agentes e circunstâncias externas alheios à sua vontade, tais como separação, doença familiar e desemprego.

Conforme Lima e Bertoncello (2010, p. 28):

Pode ser ativo, se o devedor contribui ativamente para se colocar em situação de impossibilidade de pagamento, por exemplo não planejando os compromissos assumidos e procedendo a uma acumulação exagerada de crédito em relação aos compromissos efetivos esperados; ou passivo, quando circunstâncias não previsíveis (desemprego, precarização do emprego, divórcio, doença ou morte de um familiar, acidente, etc.) afetam gravemente a capacidade de reembolso do devedor, colocando-o em situação de impossibilidade de cumprimento.

É importante deixar claro que não deverá a lei proteger indiscriminadamente qualquer tipo de inadimplemento, mas sim aquele em que o endividado não agiu de má-fé, ou seja, não concorreu positivamente motivando o endividamento com vistas à proteção legal.

Deverá ser tutelado o consumidor que agiu de boa-fé, sendo leigo, vulnerável e hipossuficiente diante das condições que o levaram ao superendividamento causador de perda de sua dignidade.

Fazendo relação da natureza jurídica do superendividamento e a necessidade de tutela do direito em virtude da perda de dignidade, resume o professor Giancoli (2008, p. 122):

Resumidamente, a natureza jurídica do superendividamento do consumidor, ou seja, a essência da proteção jurídica desse status, decorre de cooperação social dos agentes da ordem econômica, para garantir a manutenção digna da capacidade de crédito do consumidor, crédito este visto como um instrumento de acesso aos bens para sua sobrevivência social mínima. Noutras palavras, o superendividamento é um standart jurídico que permite a correção da simetria de uma ou diversas relações jurídicas contraídas pelo consumidor em razão da existência do conjunto de dívidas estruturais ajustadas de boa-fé, capazes de ameaçar ou lesionar sua dignidade pessoal

Em ambas as situações, seja o superendividado passivo ou ativo, merece o consumidor de boa-fé tutela e proteção jurídicas, uma vez que não há dúvidas de que o superendividamento gera prejuízos à dignidade do consumidor como pessoa humana.

Tal tutela jurídica não versa apenas no desenvolvimento de políticas públicas com intuito de proteger o direito do consumidor nas tratativas pré-contratuais, mas, sobretudo, deve o direito tutelar e proteger o consumidor já superendividado.

3.1.2. O Surperendividado Brasileiro

Em trabalho de monografia acerca do superendividamento e controle do empréstimo consignado, a pesquisadora Brenda Schneider dos Santos (2008), salienta que, apesar de não existir pesquisa em âmbito nacional acerca do perfil do consumidor superendividado no Brasil, dúvidas não restam que o fenômeno atinge tanto as classes menos favorecidas (desfavorecidos) quanto as classes mais favorecidas (privilegiados).

Os privilegiados são aqueles pertencentes à classe média ou alta e que possuem, diante da posição social e do poder aquisitivo, maior alcance a créditos e bens. Os desfavorecidos são aqueles que se encaixam no conceito de hipossuficientes ou hipervulneráveis trazido pelo Art. 6º, VIII, do CDC, uma vez que são os pobres ou que vivem no limiar da pobreza, com pouca cultura e discernimento.

No entanto, apesar da diferenciação entre as espécies de consumidores tendo como elemento caracterizador a classe social (classe menos favorecida x classe mais favorecida), ambos são tidos como vulneráveis. A condição social dos consumidores pertencentes às classes mais favorecidas não os afastam da condição de vulnerabilidade dos consumidores em geral, seja ela em seu aspecto jurídico, econômico ou técnico.

Ocorre que os hipossuficientes, diante do déficit relativo ao discernimento, cultura e grau de instrução, podem ser tidos como hipervulneráveis, sendo este o entendimento defendido por Simone Helege Bolson (2007, p. 166):

Sob um viés sociológico, não é equívoco dizer que a sociedade de consumo no Brasil é composta pelos vulneráveis e pelos hipervulneráveis. Vulneráveis são todos os consumidores que de uma forma ou de outra vivem o Estado de sociedade da abundância naturalmente, seja pela condição jurídica advinda da lei e pela própria condição econômico-social, média ou alta. E os hipervulneráveis? Esses são os que ascenderam ao mercado de consumo recentemente, como os da classe C, D, E.(...)

Assim, resguardado o alcance dos efeitos que o superendividamento ocasiona nas diferentes classes sociais, no Brasil o superendividamento é evidenciado através dos inúmeros casos levados ao conhecimento do poder judiciário, sobretudo em ações revisionais. Ademais, pesquisas já realizadas em âmbito regional levam a crer que o superendividamento é fenômeno presente em ambas as classes.

Importante citar que dentre os estudos realizados no Brasil acerca do perfil do consumidor superendividado destaca-se o projeto de Pesquisa de Rafaela Consalter (2005), Defensora Pública do Estado do Rio Grande do Sul, sob a coordenação da Professora Cláudia Lima Marques, ao traçar perfil do consumidor Superendividado no Estado do Rio Grande do Sul.

A pesquisa foi realizada tendo como base aplicação de questionário e entrevista de 100 (cem) consumidores.

Dentre algumas conclusões obtidas com o trabalho destacou-se o fato de que há nítida mudança do papel da mulher na sociedade uma vez que os questionários apontaram que "o percentual de superendividadas mantenedoras da família é ligeiramente superior ao de homens nesta condição" (2005, p. 8).

A pesquisa indicou que (2005, p. 5-8): muitos dos superendividados têm idade acima dos 50 anos; cerca de 66% ou não auferem renda alguma, ou percebem remuneração de até dois salários mínimos nacionais; cerca de 70% dos pesquisados encontravam-se inscritos nos cadastros de proteção ao crédito; cerca de 90% encontravam-se com atraso no pagamento de prestações; o número de devedores passivos estavam em número quatro vezes maios que os devedores ativos; Dentre estes devedores passivos, 62,5% estão nessa condição em razão do desemprego; no total, dos 100 entrevistados, 50 deles responderam que o fator preponderante para a sua inadimplência foi, ou é, o desemprego, reflexo da estagnação da economia nacional; cerca de 49% deve para três ou mais credores; em apenas 41% dos casos o consumidor recebeu uma via do contrato ajustado; somente 22% dos entrevistados declararam que lhes foi exigida alguma forma de garantia, como fiança ou "cheques".

Por fim, concluiu a pesquisadora (2005, p. 8):

Enfim, numa iniciativa pioneira no país, levada adiante pela Universidade Federal e pela Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, foi possível traçar algumas das características principais dos superendividados gaúchos. Na sua leve maioria mulheres, entre 30 e 50 anos, com até dois filhos, percebendo renda de até dois salários mínimos nacionais, devendo para mais de três credores, na sua maioria lojas e bancos, inadimplentes ou com as prestações em atraso, passivas em relação ao débito, inscritas em cadastros de devedores. Eis o triste perfil alinhavado.

O estudo realizado no Rio Grande do Sul corroborou a necessidade de tratamento especial ao consumidor superendividado no Brasil, que deve ser implementado através de políticas públicas e tutela legal legítimas com fito de dar respostas eficazes ao fenômeno a exemplo do que já acontece em diversos países.

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3.2. O CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO E A DIGNIDADE HUMANA

Nas sociedades modernas tipicamente de consumo não há dúvidas de que o superendividamento do consumidor acarreta em prejuízos à sua dignidade como pessoa humana.

O consumidor superendividado tem como resultado imediato do acúmulo das dívidas a perda do crédito cristalizada, sobretudo, na conhecida "negativação" de seu nome no rol dos maus pagadores. São os denominados bancos de dados de proteção ao crédito.

A inscrição em tais cadastros impossibilita ao consumidor o exercício de qualquer atividade que prescinda de análise de crédito. Logo, resta prejudicado o exercício de atividades corriqueiras da vida moderna, uma vez que muitas famílias utilizam o crédito como parte indispensável de gestão do orçamento familiar se endividando para custear despesas de manutenção diária do lar, comuns e cotidianas e, até mesmo, despesas com serviços indispensáveis que não são providos pelo Estado de forma adequada.

Assim dispõe José Reinaldo de Lima Lopes (2006, p. 6):

Não são poucos os que se endividam para pagar despesas corriqueiras, despesas de manutenção diária ou despesas com serviços indispensáveis que já não são providos pelo Estado ou que nunca o foram adequadamente. Parte do endividamento que preocupa deriva, sobretudo, do aumento de recursos necessários para prover a subsistência. O crédito pessoal, adiantado sob a forma de cartão de crédito ou de cheque especial, crédito sem garantias reais, portanto, constitui substancial parcela do crédito ao consumo.

Imperioso demonstrar que o uso do crédito como forma de adquirir bens de consumo não pressupõe dizer que o consumidor é irresponsável ou inconseqüente. Este conceito, conforme já elucidado no capítulo que versou sobre a evolução histórica do crédito, há muito tempo já fora superado.

O crédito faz parte da vida moderna em sociedade sendo necessário para gestão dos compromissos básicos como catalisador do desenvolvimento social e econômico do país. Lecionam Lima e Bertoncello (2010, p. 30):

Na economia moderna, no entanto, não podemos olvidar o contexto no qual o crédito se insere. O crédito é, na atualidade, considerado o motor do consumo de massa e um dos mais importantes meios da política dos poderes públicos na luta do subconsumo e ameaças a desaceleração econômica. Deixou de ser concebido com um mal necessário para ser concebido com uma força que se impõe no desenvolvimento social e econômico do país.

Sobre o assunto analisa Giancoli (2009, p. 9):

O crédito é o principal mecanismo sócio-jurídico disponibilizado ao homem moderno para viabilizar seus sonhos, a exemplo da casa própria, dos veículos automotores; além dos bens de consumo típicos da modernidade, como celulares e computadores.

Logo, o consumidor consome a crédito tendo em vista a manutenção das condições de sustentabilidade de sua família, pelo que a perda do crédito, em virtude do superendividamento, afeta a capacidade de manutenção e equilíbrio da vida familiar, não somente do ponto de vista de efetivação e continuidade do consumo, mas, também, em virtude de todos os prejuízos morais, sociais e, algumas vezes, médicos, decorrentes da situação de excessivo endividamento.

É patente, portanto, que a situação de superendividamento afeta a dignidade humana em vários aspectos, sejam eles materiais em virtude da perda da capacidade de consumo de bens básicos como alimentação e medicamento, chegando a ter alcance e comprometimento moral, social e médico/ psicológico.

Conforme ensina Fábio Konder Comparato (2001, p. 48) a dignidade humana representa:

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Ensina o mestre Alexandre de Moraes (2004, p. 129):

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

O consumidor superendividado perde a capacidade de consumo pela falta de receita para custeio das necessidades básicas da vida em virtude do amplo comprometimento dos rendimentos mensais com dívidas.

Impossibilitado de arcar com pagamento tanto das dívidas quanto das despesas corriqueiras do dia-a-dia o consumidor e todo núcleo familiar são submetidos à situação de sofrimento e angústia tendo afetada a dignidade de todo grupo familiar.

Assim, nas palavras de Lima e Bertoncello (2010, p. 27), "o endividamento assume uma dimensão patológica, com repercussões econômicas, sociais, psicológicas e até médicas, quando o rendimento familiar não é mais capaz de suportar o cumprimento dos compromissos financeiros".

Importante contribuição trazem sobre o assunto Catarina Frade e Sara Magalhães (2010, p. 23-43), ao promoverem, através de pesquisa empírica, estudo acerca dos valores, atitudes e comportamentos do sobreendividados.

Num primeiro momento do estudo das doutrinadoras resta delineado o perfil do consumidor superendividado tendo sido constatado que "os padrões de consumo dos sobreendividados que foram inquiridos no mencionado estudo refletem um estilo de vida predominantemente urbano, onde uma enorme acessibilidade a diversos tipos de bens e serviços se combina com uma pressão social forte no sentido de sua aquisição" (2010, p. 26).

Restou evidenciado que o consumo intenso dos superendividados correspondia ao recurso de múltiplas formas de financiamento, sendo utilizado tanto para aquisição de casa, como nos cuidados de saúde, alimentação e dos serviços básicos ou no financiamento das atividades de lazer. Concluíram as estudiosas que o multiendividamento era a base financeira destes consumidores supereendividados.

No entanto, não reside nestas conclusões o foco principal deste capítulo que é a demonstração de que o superendividamento afeta a dignidade da pessoa humana.

No decorrer da pesquisa realizada pelas estudiosas restou, sem dúvidas, evidenciado toda a situação de angústia, dor e sofrimento ocasionados pela situação de superendividamento, além das implicações externas sociais que tal fenômeno ocasiona.

Demonstram as pesquisadoras que (2010, p. 27):

A primeira impressão, dominante no discurso de todos os entrevistados, é a de enorme confusão e falta de clareza discursiva, combinada com uma certa apatia na voz e nos movimentos, o choro freqüente e uma expressão de cansaço e desanimo. Quase todos procuravam justificar-se, evidenciando claramente sentimentos de culpa e vergonha. Esses sentimentos, porém, surgiam no meio de uma convicção mais ou menos consolidada de que tinham direito a ser ajudados porque nunca procuram defraudar ninguém, nomeadamente os credores.

O estudo também mostra o fato de que os consumidores sentem muita culpa e vergonha frente aos filhos e ao círculo social de amizade, o que pode levar em algumas situações ao completo isolamento do consumidor da convivência social (2010, p. 27-28):

Uma segunda constatação, muito forte, também é a da culpa e da vergonha que sentem em relação aos filhos. (...) Essa culpa resulta na sensação de fracasso na liderança de uma vida familiar estável e equilibrada. (...) Uma terceira observação é a de que a socialização é quase sempre afectada de forma grave pela situação do sobreendividamento. Os indivíduos sofrem habitualmente uma reconfiguração das suas relações sociais.(...) o que mais sobressai nestes indivíduos é o afastamento social por iniciativa dos próprios sobreendividados.

Por fim, concluem as estudiosas (2010, p. 31-32):

Quando se assiste a uma combinação de perdas laborais com dificuldades financeiras facilmente se percebe uma degradação da auto-estima e da afectividade, como se pôde comprovar em diversas entrevistas. A incapacidade de continuar a controlar a ordem do rendimento e a progressão da despesa não se esgota numa pura questão financeira. Já se sublinhou existir, em muitos casos, uma espécie de exílio social no que diz respeito as relações de amizade. As conseqüências do sobreendividamento para os agregados familiares, sobretudo quando associado ao desemprego, requalificam não só as relações sociais e as relações com os filhos, mas também, as relações sociais e a relação dos indivíduos consigo mesmos.

Portanto, o superendividamento muito mais do que uma questão meramente econômica, traz em si uma problemática abrangente do ponto de vista social e jurídico, pois representa grande ofensa à dignidade da pessoa humana.

Sobre estes aspectos, importantes informações são trazidas por Lima e Bertoncello (2010, p. 27) ao citarem em sua obra "Superendividamento Aplicado" pesquisas realizadas no direito comparado acerca da problemática:

Vicente Toledano Barrerro narra em seu artigo "La proteccion AL consumidor sobreendeudado: la experiência francesa" que, recentemente, começou-se a estudar o consumo compulsivo ou aditivo em seu aspecto psicológico, tendo apresentado semelhança com os problemas de cleptomania, ludopatia e bulimia. De acordo com vários estudos realizados nos Estados Unidos, Canadá, Alemanha e Reino Unido, encontrou-se um perfil de consumidor que compra por motivos que não estão diretamente relacionados com a posse real de bens ou o desfrute de serviços e que repete de forma persistente esta conduta, ainda que conduza a severas conseqüência de ordem econômica, inclusive moral.

Continuam as Autoras (2010, p. 27):

Sobre as ligações do endividamento com as desordens sociais e dramas familiares, Sophie Gjidara traz exemplos internacionais verdadeiramente impressionantes, defendendo a adoção pelos poderes públicos de um tratamento não somente financeiro ou jurídico, mas também psicológico, patológico e médico. Os aspectos sociológicos do endividamento são particularmente chocantes em certos países como Itália, onde o problema da usura está na origem de verdadeiros dramas urbanos.(...)A usura se apresenta como um drama social e uma prática impune, engradando desordens sociais graves ou ameaça de roubo e suicídio. (...)Nem mesmo o Japão, modelo de economia, escapou ao fenômeno do endividamento que foi potencializado com a entrada do cartão de crédito (...) O sucesso da moeda plástica dobrou o número de particulares inadimplentes e é acusado de ser responsável por inúmeros suicídios. O problema é tão grave que o governo teve que multiplicar a vigilância contra a utilização desmedida dos cartões de crédito (...)

Sobre o tema também disserta em artigo jurídico Cláudio Sinoé Ardenghy dos Santos (2006, p. 4):

O aspecto psicológico do consumo é abordado pelo GRUPO DE PSICOLOGIA ECONÔMICA (G.P. P. E), coordenado pela Dra. ALICE MOREIRA. Dentre suas conclusões vale transcrever a que segue: O interesse dos psicólogos por temas relacionados à vida econômica é compreensível no panorama contemporâneo, marcado pela transformação de valores, estabelecimento de novos mercados e tendências globalizantes. A ética da poupança e auto-contenção foi superada por valores de consumo e satisfação imediata dos desejos, gerando o que tem sido chamado de "cultura do débito" (Livingstone & Lunt, 1993). As identidades sustentam-se cada vez mais na posse e exibição de bens materiais (Belk, 1991; Canclini, 1999 ). Crescem as preocupações com a patologia do comprar compulsivo (Hanley & Wilhelm, 1992), em paralelo ao estudo das mais antigas, como jogar e colecionar (Belk, 1995; Griffiths, 1995). A participação crescente da mulher no mercado de trabalho leva à reestruturação das relações e estratégias de poder na família (Burgoyne, 1995; Kirchler, 1999). Novas configurações de mercado geram estudos abordando a influência dos valores sobre preferências de consumo (Grunert & Beckmann, 1999) ou as interrelações entre moeda, simbolismo e identidade nacional (Conlon, Routh, & Pannayiotakopoulo, 2000)."

Atrelado a estes aspectos soma-se o fato de que muitas instituições financeiras utilizam-se de abusividade na cobrança de dívidas submetendo o consumidor a vexame, não obstante tal prática seja vedada expressamente pelo CDC:

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

Dissertando sobre o tema, Geraldo de Farias Martins da Costa apud Antonio Cezar Lima da Fonseca (2002, p. 72):

(...) a cobrança ofensiva de dívidas fere o direito à honra da pessoa, que é direito da personalidade, eis que naquela o credor confunde o plano econômico do devedor com o plano pessoal íntimo, de amor próprio, que é a honra, bem da personalidade pertencente ao devedor e que deve ser resguardado, protegido na relação de consumo.

Os próprios cadastros de proteção ao crédito citados podem ser tidos como atentatórios à dignidade humana, mas este, diante da complexidade e várias opiniões existentes sobre o assunto, é tema para ser abordado em outro trabalho.

Importante evidenciar que a dignidade do consumidor diante do superendividamento não é apenas contemplada do ponto de vista interno, embasados pela angústia, dor e sofrimento, mas também do ponto de vista externo sendo, nas palavras já mencionadas de Fábio Konder Comparato (2001, p. 48) "um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável" e, como tal, merece a tutela do Estado. Sobretudo por ser contemplado na Constituição Federal do Brasil o princípio da dignidade da pessoa humana, que será estudado em capítulo específico.

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Sobre a autora
Carolina Curi Fernandes Martinez

Advogada em Salvador-BA.Graduada pela UniJorge. Pós-graduada em Direito Civil e Direito do Consumidor pelo Curso Juspodivm-Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Carolina Curi Fernandes. A tutela do consumidor superendividado e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2619, 2 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17312. Acesso em: 23 dez. 2024.

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