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A guarda compartilhada e as famílias homoafetivas

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08/12/2010 às 17:35
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4.A parentalidade homoafetiva e o afeto como valor jurídico

Indubitavelmente, a questão da homoparentalidade pode ser apontada como a mais "tormentosa" na seara da homoafetividade. Neste âmbito, heterogeneidade e divergências muitas são encontradas na doutrina. Existem aqueles que acreditam que, de fato, existe um direito a ser pai ou mãe, constitucionalmente garantido. Para outros, inexiste tal direito, sob o fundamento de que se estaria "coisificando" a criança, tratando-a como um mero um objeto desejável.

É imperioso ressaltar que nem todo ser humano possui capacidade ou vocação para exercer a parentalidade mas, indubitavelmente, não será a orientação sexual do indivíduo que irá definir se o mesmo conseguirá desempenhar, com dedicação, afetividade e efetividade a sua função parental.

É inquestionável que existe um "direito à parentalidade", que se traduz em um direito à reprodução – por meio das técnicas de PMA –, direito à adoção de crianças e adolescentes e direito a obter a guarda do seu filho, sem que a homossexualidade constitua, aprioristicamente, um óbice inafastável.

É de se ressaltar que o exercício da parentalidade por homossexuais não é, nem deverá ser, um fruto tão-somente do respeito à dignidade desses indivíduos ou resultado dos princípios da igualdade e da não-discriminação. O fundamento maior é – e deverá sempre ser – o fato que o exercício dessa parentalidade responde aos interesses do menor em questão, como impõem a legislação interna do Brasil, assim como todos os instrumentos internacionais relativos às crianças e adolescentes.

Considerando-se os direitos de família como direitos subjetivos típicos e em virtude da filiação poder propiciar o engrandecimento da personalidade humana, parece ser defensável a idéia de um direito subjetivo de os homossexuais realizarem-se como progenitores, concedendo-lhes a possibilidade da adoção de crianças e adolescentes e também o acesso às técnicas de PMA.

Todavia, a grande dúvida emerge quando findo o relacionamento. Via de regra, a filiação jurídica estará estabelecida apenas em relação a uma pessoa do par. É nesse momento que emerge a importância da socioafetividade e do afeto como valor jurídico.

Desde meados dos anos 70, a desbiologização da paternidade já era ventilada no Direito brasileiro. O precursor dessa corrente foi o eminente jurista mineiro João Baptista Villela. No seu entendimento, a parentalidade, per se, não seria um fato da natureza, mas sim um fato cultural. E "ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na circunstância de amar e servir". [52] Note-se que a filiação não se traduz apenas no nascimento. A família não se resume ao sangue, mas significa o crescimento, vivência, amadurecimento e envelhecimento juntos. Mãe e pai, ou se é por opção livre e pessoal, ou simplesmente não se é. A parentalidade deve ser vislumbrada como "opção e exercício, e não mercê e fatalidade", que pode levar a uma "feliz aproximação entre os que têm e precisam dar e os que não têm e carecem receber". [53]

A parentalidade sociafetiva está baseada na posse de estado de filho, que se traduz na clássica trindade: nomen, tractatus e fama. [54] Destarte, para que exista posse de estado, nesta lógica, se faz necessário que o infante carregue o nome da família, seja tratado como filho e que sua condição originária da filiação seja reconhecida pela sociedade. [55] Será possível aplicar esta fórmula às famílias homoafetivas? Parece que sim. Habitualmente, uma criança criada por dois pais ou duas mulheres será o filho natural ou civil [56] de apenas um deles, mas será filho socioafetivo do outro.

É imperioso ressaltar que a realidade da vida existe, e não é pelo simples fato de os casais homossexuais não disporem de capacidade reprodutiva que não tenham ou não possam vir a ter filhos. No caso de um filho já existente, a posição do parceiro ou parceira do genitor (natural ou adotivo) se recobre de peculiar singularidade. Se, à primeira vista, ele (ou ela) não é o pai nem a mãe do infante, é indubitável que a convivência gera um vínculo de afetividade e afinidade [57]. Ambos os companheiros passam a exercer a função parental. É usual que o parceiro ou parceira do genitor participe ativamente na criação e educação da prole, avocando, por vezes, até mesmo o dever de sustento. Destante, é incontroverso que se encontram presentes todos os pressupostos para o reconhecimento de um vínculo de filiação socioafetiva. [58]


5.Breves considerações sobre o instituto da guarda

O termo guarda teve sua origem nos vocábulos guardare (latim)e wardem (alemão), podendo ser traduzido nas elocuções conservar, vigiar, proteger, olhar. [59] Nos dizeres de Guilherme Strenger, guarda de filhos seria "o poder-dever submetido a um regime jurídico-legal, de modo a facultar a quem de direito, prerrogativas para o exercício da proteção e amparo daquele que a lei considerar nessa condição". [60]

Pode-se asseverar que guarda de menores ou filhos é o complexo de relações jurídicas entre um indivíduo e o menor, resultantes do fato de este estar submetido ao poder ou à companhia daquele, e da responsabilidade daquele em relação ao infante, no tocante à educação, direção e vigilância. [61]

Deste modo, é manifesto que a guarda compõe a estrutura do poder familiar (ou responsabilidades parentais), que está inserta naquele conjunto, uma vez que entre os direitos-deveres que a lei civil impõe aos progenitores em relação à sua prole, se faz presente a guarda.

A guarda unilateral era o modelo clássico até o advento da Lei n. 11.698, de 13 de 2008, onde foi instituída e regulada a guarda compartilhada, que passou a ser o modelo automaticamente aplicável, de acordo com exegese do § 2º do art. 1584, que reza: "Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada."

A lei é bem clara ao definir o que é guarda unilateral e o que é guarda compartilhada. Agora, a guarda compartilhada é o modelo legal, devendo o Juiz, apenas em última ratio, determinar a guarda unilateral, podendo o modelo compartilhado ser outorgado sem o requerimento das partes, ou, quando não haja consenso, desde que o Magistrado entenda que está sendo atendido o melhor interesse da criança, de acordo com a interpretação do § 2º do art. 1584. [62]

A questão que se coloca é: a lei fala em pai e mãe. Nas famílias homoafetivas existem pais ou mães. Portanto, questiona-se: é a normativa da guarda compartilhada aplicável no caso de dissolução de uniões homoafetivas, onde existam crianças que coabitem com o casal?


6. A guarda compartilhada e sua possibilidade de aplicação às famílias homoafetivas

Com a expressa regulação legal da guarda compartilhada, está assegurado um dilatado esquema de convívio, comunicação e contato entre pais e prole, não obstante um deles não mantenha vida em comum, pois a residência habitual da criança será fixada com apenas um deles. [63]

O art. 1.583, § 1º, em sua última parte conceitua a guarda compartilhada como sendo "a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns". O art. 1.584, I, assevera ainda que:

"A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:

I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar".

Algumas questões se levantam diante dos mencionados dispositivos. As famílias homoafetivas estão dentro do âmbito de aplicação da guarda compartilhada? Os verbetes "pai" e "mãe" teriam o condão de afastar a aplicação da normativa? Podem os casais homossexuais acordarem a respeito da guarda compartilhada de um filho comum?

É de se afirmar que, sim, podem os casais acordarem a respeito da guarda compartilhada, estando o relacionamento dentro do seu âmbito de aplicação e, podem, ainda, a guarda compartilhada ser deferida pelo juiz, no caso de um casal homossexual em que a filiação esteja – em virtude do falho sistema de filiação brasileiro – estabelecida apenas em relação a um dos partícipes da relação, tendo-se em conta a socioafetividade daquele que não é progenitor jurídico. Há-de se ter em conta que ambos os partícipes devem ser considerados "pais" ou "mães".

É imperioso relembrar, hodiernamente, o exercício da parentalidade está amplamente aberto aos homossexuais. O cerne do problema se encontra no estabelecimento da filiação e, nas suas consequências na ruptura do relacionamento.

Por isso, no caso de um casal de lésbicas que decida ter um bebê, uma das principais decisões – para não dizer a mais importante – diz respeito à escolha de qual delas levará a gestação a termo. No ocorrência de uma das companheiras se submeter à inseminação artificial ou fertilização in vitro, utilizando o seu próprio material genético, com recurso a um doador anônimo estar-se-ia diante de um caso em que, num primeiro momento, a criança só teria a filiação estabelecida em relação à mãe natural, que também seria a mãe genética.

Resta a mãe socioafetiva fora do âmbito de proteção jurídica, o que poderia trazer problemas futuros – como já mencionado – diante da maioria dos sistemas de filiação conhecidos, nomeadamente o português e o brasileiro, que determinam que a maternidade deve ser estabelecida relativamente à mulher que "deu à luz". É de se relembrar, entretanto, que "a definição da maternidade a partir do parto sabe-se cientificamente falível". [64]

Em um célebre e recente caso, no Brasil, um casal de lésbicas se submeteu a esse tipo de intervenção e, atualmente, lutam na justiça para que o nome de ambas conste no assento de nascimento do casal de gêmeos a que uma das mulheres deu à luz. Note-se que a mãe jurídica não é a mãe genética. [65] Uma ação de reconhecimento de filiação foi intentada em nome das crianças, cujo pedido de tutela antecipada foi negado. Resta aguardar a decisão final do Juiz. [66] Enquanto esta saída não for possível, é sempre cabível que a companheira da mãe jurídica pleiteie a adoção do filho da sua parceira – que, ao fim e ao cabo, também é seu filho – com fulcro no art. 1.626, parágrafo único do CC brasileiro. [67]

Como afirma Maria Berenice Dias, qualquer resposta que não reconheça a dupla maternidade – e claro, a dupla paternidade – "está se deixando levar pelo preconceito". Acrescenta ainda a renomada jurista que permitir que apenas uma das mães ou apenas um dos pais possua vínculo jurídico com o filho "é olvidar tudo que vem a justiça construindo através de uma visão mais ampliativa da estrutura da família". [68]

Em relação à adoção conjunta por homossexuais, avanços jurisprudenciais estão emergindo incessantemente. Já são inúmeros os casos de adoção por casais do mesmo sexo.

Decisão pioneira se deu no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 1997. [69] Na sentença, o Juiz Siro Darlan de Oliveira, então titular da 1ª Vara da Infância e Juventude e, atualmente, Desembargador do TJRJ, concedeu a adoção a uma requerente homossexual, que possuía a guarda de fato do infante desde a tenra idade do mesmo, após 2 anos de institucionalização. Na decisão, o Magistrado sublinhou a importância de um ambiente familiar e acolhedor para a criança, em detrimento da impessoalidade de uma instituição, uma vez que o tratamento dispensado à criança é coletivo. O Ministério Público recorreu da sentença, apelo este que foi rechaçado em 23 de Março de 1999, sendo a decisão do julgador de 1º grau confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. [70]

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Mais recentemente, no início do ano de 2009, foi concedida pelo Juiz da Vara da Infância e Juventude de Ribeirão Preto, interior do Estado de São Paulo, a adoção de 4 irmãos (3 meninas e 1 menino) a um casal de homossexuais do sexo masculino, que se relacionam há mais de 15 anos. Os infantes se encontravam institucionalizados desde meados de 2003, quando foram abandonados pelos pais biológicos. Em 2006, os pais adotivos obtiveram a guarda provisória das crianças. Foi amplamente noticiada na mídia que a decisão do Juiz levou em consideração o desejo das crianças em permanecer com o casal, desejo este que foi manifestado por meio de uma carta, escrita pela mais velha. [71]

Destarte, diante dos casos supra elencados, pode-se dizer que, enquanto a lei é silente, as barreiras em relação à adoção homoafetiva no Brasil vão sendo derrubadas, pouco a pouco, pela prática judicial.

Advindo uma ruptura nestes relacionamentos, questiona-se: diante dos fatos expostos, pode-se ainda fazer uma leitura simplista e literal da lei, alegando-se falta de previsão legal para o deferimento da guarda compartilhada aos casais homossexuais? Parece-nos que não.

Antes de mais nada, é de se afirmar, como resta indicado na jurisprudência hodierna que, enquanto não houver uma abertura explícita do instituto do casamento aos homossexuais [72], as uniões homoafetivas devem ser vislumbradas como uniões estáveis, caindo assim, no âmbito de aplicação do art. 1.584, podendo a guarda compartilhada ser deferida com ou sem acordo das partes, havendo apenas necessidade de uma ação de reconhecimento e dissolução de união estável homoafetiva.

Não havendo uma adoção conjunta, mas tendo a criança vivido com o parceiro do pai ou a companheira da mãe, é indubitável a existência de uma parentalidade socioafetiva em causa, o que também possibilita o deferimento da guarda compartilhada.

Pesquisas feitas em famílias formadas por lésbicas e a prole biológica de uma delas (resultado de Procriação Medicamente Assistida ou natural), levaram à conclusão de que o papel de ambas as mães (a biológica e a socioafetiva) possuem a mesma intensidade na vida dos infantes. As crianças responderam a questionários sobre o que sentiam em relação a sua mãe biológica e mãe afetiva, relativamente à sensibilidade, afeto e ternura dispensados a eles, assim como autoridade por elas exercida. Disparidades não foram encontradas. Para além disso, restou provado que as mães sociais se encontram tão envolvidas no processo de educação das crianças quanto as mães biológicas. [73]

Não possui um fundamento lógico-racional excluir apriorísticamente, a mãe ou o pai socioafetivo da possibilidade de requerer a guarda compartilhada sob o falacioso argumento de falta de previsão legal, repita-se. Como bem explicita Waldyr Grisard Filho, importa concluir que as expressões "pai" e "mãe" encontradas nos dispositivos citados "não se limitam aos sujeitos biologicamente vinculados, mas se estendem a todas as pessoas que exercem essas funções". [74]

Como afirma Zeno Veloso, "se a expressão verbal leva ao extremo rigorismo, à dureza injusta, o juiz deve buscar no espírito da lei, na ratio legis a solução que se concilie com as atuais e melhores aspirações e expectativas da sociedade". [75]

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Marianna. A guarda compartilhada e as famílias homoafetivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2716, 8 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17988. Acesso em: 22 dez. 2024.

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