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Responsabilidade civil e violência urbana.

Considerações sobre a responsabilização objetiva e solidária do Estado por danos decorrentes de acidentes laborais diretamente vinculados à insegurança urbana

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6. Violência Urbana, Ação Indenizatória Trabalhista e Responsabilização do Estado: Abordagem de Caso Concreto

A título de exemplo de infortúnio laboral decorrente da insegurança pública, podemos citar o caso real estampado em processo que tramita na MM. 2ª. Vara Federal do Trabalho de Marabá/PA, sob o n. 01467-2009-117-8-3, em que o trabalhador, no desempenho regular da atividade de entrega de produtos alimentícios para determinada empresa na região sudeste do Estado do Pará, foi abordado por assaltantes na estrada e, em razão do pouco dinheiro encontrado, os criminosos o trancaram no veículo e incendiaram o caminhão, vindo o trabalhador a morrer carbonizado. Nesse processo, o Estado foi indicado no polo passivo, como corresponsável pelos tristes danos praticados, mercê de sua inércia em garantir um mínimo de segurança pública nas estradas do sul e sudeste do Pará.

É certo que o Estado, antes de discutir se tinha ou não responsabilidade pelas lesões aqui esposadas, fez desde logo um ataque frontal ao próprio processo, enquanto instrumento público de resolução de conflitos, consubstanciado através da alegação da incompetência material da Justiça do Trabalho para processar e julgar esse tipo de causa. A ventilação, todavia, claramente não procede.

É que, conforme resta cediço, a competência material, como toda e qualquer temática de ordem processual – no caso, pressuposto processual objetivo –, há de ser medida à luz do articulado na petição inicial (CPC, artigo 87, ab initio [68]), mais precisamente através da causa de pedir e do pedido ali expostos [69]. Ou seja, como, segundo a tese aqui defendida, o que se pretende é a responsabilização do Estado por danos decorrentes da relação de trabalho, mais precisamente decorrentes de um acidente de trabalho, não há dúvidas da competência da Justiça Obreira para enfrentar a questão, seja em face de clara disposição constitucional (artigo 114, VI [70]), seja em face de incontornável diretriz jurisprudencial (STF/Súmula Vinculante n. 22 [71]), pouco importando, no caso, que esse contexto laborativo seja qualificado pelo circunstancial da violência urbana.

Aqui, convém fazer um importante registro: ao mencionar que a competência da Justiça do Trabalho dar-se-ia quando envolvendo lide entre empregado e empregador, pretendeu o Supremo Tribunal Federal apenas diferençar o caso daquelas ações acidentárias movidas pelo empregado (enquanto segurado) em face do INSS (enquanto segurador), cuja competência permanece com a Justiça Comum Estadual. Com isso, queremos acentuar o fato de que em momento algum a súmula proíbe que na ação indenizatória, fundada em danos decorrentes de acidente do trabalho, alem do empregador, também seja chamada ao cenário processual outra pessoa, estranha à relação contratual trabalhista – no caso, o Estado –, quando tomada por corresponsável pela reparação dos prejuízos.

Perceba-se, a propósito, que o artigo 114, inciso I, da Carta Magna, com a redação impressa pela EC 45/04, já não mais restringe os limites competenciais da Justiça Especializada Obreira a um debate que necessariamente deva envolver os dois principais atores da relação de emprego ("trabalhadores e empregadores"), como sempre firmara a tradição constitucional brasileira (foco nos integrantes da relação jurídica – matiz subjetivo), mas, de forma bem mais ampla, exige agora que tais ações sejam simplesmente "oriundas da relação de trabalho", sem qualquer restrição, pois, quanto aos sujeitos envolvidos (foco na natureza da relação jurídica – matiz objetivo) [72].

O Estado, na demanda em análise, também fez duro ataque à ação, trazendo à baila controvérsia sobre sua legitimidade de ser parte (legitimatio ad causam passiva). Mas, cuidando-se de mera questão processual – ligada a uma das condições da ação –, a aferição da pertinência ou não da composição do polo passivo vai depender tão-só da análise do conteúdo da petição inicial, ou seja, tendo em conta, simplesmente, as próprias alegações nela contidas. Neste terreno, o que importa é a afirmação do autor, e não a correspondência entre essa afirmação e a realidade, o que já constitui problema de mérito [73].

Ora, se a petição inicial trabalhista traz em seu bojo toda uma densa articulação que, ao fim, expressamente, denuncia a responsabilização do Estado pelos danos decorrentes de acidente de trabalho diretamente afeto a um desarrazoado grau de violência urbana, não há como reputar o Estado parte ilegítima na demanda, residindo justamente nessas linhas o fator suficiente para legitimar sua presença no debate processual.

Como é fácil inferir, a apreciação da legitimidade para agir, aqui, não deve tocar em aspectos nucleares da pretensão, cingindo-se a apenas a perscrutar se, em tese, processualmente falando, a ação tem condições de receber um exame de fundo. Logo, debates como o eventual sucesso probatório das alegações ou mesmo a eventual pertinência da tese devem ficar, neste momento, fora de cogitação, porquanto discussões umbilicalmente jungidas ao mérito da demanda.

No que tange ao mérito, mais precisamente quanto à responsabilidade estatal em si, também é terreno comum a alegação de existência de fatores de elisão do nexo de causalidade, apontando o assalto, por exemplo, como uma hipótese de força maior/caso fortuito ou fato exclusivo de terceiro, figuras que, acaso reconhecidas, a rigor importariam em necessário afastamento do dever de reparação [74]. Entretanto, como vimos em linhas transatas, a tônica jurídica hoje está centrada no pleno resguardo da dignidade humana, pelo que, mesmo esses fatores, classicamente reputados como excludentes do liame de causalidade, têm sido cada vez mais flexibilizados com o claro fito de se conferir máxima tutela da vítima.

Perceba-se, a respeito do caso fortuito, que, inspirados na especialidade da relação consumerista, doutrina e jurisprudência vêm tecendo nos últimos anos sutil distinção entre fortuito externo e fortuito interno [75]. A respeito, leciona SCHREIBER:

"Por consistir em risco ligado à atividade do sujeito responsável, o fortuito interno tem sido considerado insuficiente para o afastamento da relação de causalidade entre a atividade desenvolvida e o dano, mesmo quando imprevisível e irresistível. Em outros termos: aos tradicionais requisitos da imprevisibilidade e irresistibilidade do caso fortuito, tem-se acrescentado esta terceira exigência – a externalidade ou externidade do caso fortuito, sem a qual se conserva a responsabilidade" [76].

Nota-se, pois, que a distinção entre fortuito interno e fortuito externo, considerada em si mesma, veio para injetar mais equidade e justiça ao tema, pois responsabiliza o agente naqueles casos em que, embora imprevisível e inevitável, o fato lesivo, a priori, pode ser perfeitamente visualizado dentro daquele natural grau de risco ínsito à sua própria atividade. No caso aqui destacado, o argumento serve não apenas para imputar à empresa reclamada a responsabilização pelos danos ocorridos, enquanto agente que se beneficia dos riscos que sua atividade naturalmente impõe ao obreiro (CC, artigo 927, parágrafo único), como também ao Estado, que, quase sempre sonolento, da mesma forma expõe o mesmo cidadão-trabalhador a um diferenciado grau de vulnerabilidade, porquanto se vê forçado a enfrentar, cotidianamente, as temidas estradas do sul do Pará, cuja reiterada omissão estatal em garantir segurança por certo há de ser considerada como causa necessária e eficiente para a ocorrência do evento lesivo e para a reparação do dano perpetrado (CF, artigo 37, § 6º). Afinal de contas, como bem destaca Mauricio Mota, "se a sociedade pós-moderna é uma sociedade de riscos, incumbe aos agentes o controle do gerenciamento do risco. Agravado este além do limite aceitável pela comunidade, a conduta se torna passível de ser atribuída como causadora do dano pela agravação do risco" (grifamos) [77].

Com relação ao fato ou culpa exclusiva de terceiro, já há mesmo expressa disposição legal mencionando, no caso dos contratos de transporte, que a responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida na hipótese de culpa de terceiro (CC, artigo 735 [78]). Isso quer dizer, por exemplo, que caso o acidente entre um ônibus e um caminhão tenha decorrido diretamente por imprudência deste último, por ter invadido a contramão de direção, as vítimas que estavam no coletivo deverão se voltar contra a empresa transportadora. Assim se tem entendido porque "o fato culposo de terceiro se liga ao risco do transportador, relaciona-se com a organização de seu negócio, caracterizando o fortuito interno, que não afasta a sua responsabilidade" [79].

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Dentro dessa perspectiva, cai por terra a tese de que a ação do meliante constituiria fato exclusivo de terceiro, vez que, ao se injetar um grau de risco diferenciado à dinâmica laborativa do trabalhador, seja porque essa dose especial de adrenalina é imanente ao exercício de suas atividades (risco da atividade – CC, artigo 927, parágrafo único), seja porque essa acentuada vulnerabilidade decorre de uma funesta apatia estatal (CF, artigo 37, § 6º), decerto a ação criminosa se insere dentro dos riscos naturais ao desenvolvimento do negócio e/ou dentro dos riscos administrativos propiciados pela negligência estatal, de tal sorte que os eventuais prejuízos (morais e materiais) causados ao obreiro de modo algum devem ficar irressarcidos, havendo de ser necessariamente repassados para quem lucra com o empreendimento empresarial e/ou se omite no cumprimento de seu mister institucional.

Vale consignar, ainda, que a força maior, na esfera trabalhista, é objeto de disciplina própria, bem específica mesmo. Veja-se que a temática do contrato de trabalho é tão especial, por envolver crédito de feição alimentar, que, mesmo na hipótese de força maior, a Consolidação das Leis do Trabalho, destoando frontalmente do que é clássico em outros campos do Direito – onde de regra essa figura é tomada como fator excludente de causalidade –, longe de afastar, impõe responsabilidade pelo pagamento de verbas, apenas fixando, em contrapartida, como medida de equidade, que essa obrigação só alcança metade dos valores então devidos (CLT, artigo 502 [80]). Ora, não seria razoável crer na flexibilidade do nexo causal ao ponto de, mesmo nas extremadas hipóteses de típica força maior, ainda assim impor o dever de reparar, com modulação equitativa do quantum indenizatório de acordo com o caso concreto (CC, artigo 944, parágrafo único [81]), aplicando, por analogia, essa preciosidade legislativa, de há muito impregnada pelo ardente desejo hodierno de conferir máxima tutela à vítima de danos injustos?... [82]

Como é fácil inferir, a flexibilização do nexo causal representa um engenhoso desdobramento técnico do sentimento constitucional de proteção da dignidade humana, no caso bem refletido naquelas situações em que a vítima se vê lesada em circunstâncias que, de uma forma ou de outra, têm alguma ligação com a atividade (ação ou omissão) do agente causador do dano [83].

Finalmente, nos autos em foco, quanto à demonstração da omissão específica e reiterada do Estado do Pará, no que toca ao seu dever de prover segurança pública minimamente eficiente nas estradas do sul e sudeste do Pará, a ex-empregadora, por meio do depoimento de seu representante legal, desde logo reconheceu que o obreiro desempenhava suas atividades em rodovia com grande incidência de roubos de cargas e que o veículo utilizado possuía cofre interno onde eram armazenados documentos e cheques recebidos de clientes, restando incontroverso, portanto, que a empresa realizava a exposição da vida do trabalhador ao perigo da violência.

Veja-se, a propósito do ranking nacional da violência, que estatísticas apontam a região sudeste do Estado do Pará como um dos locais de maior prática de violência do país, com destaque para o município de Marabá, indicado como o 11º município mais violento do Brasil, principalmente em razão da grande ocorrência de homicídios dolosos [84]. Aliás, a grave situação de violência no sudeste do Estado do Pará também foi atestada em recente pesquisa sobre os Índices de Homicídios na Adolescência, publicada no jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, onde se vê que "na região Norte, o município de Marabá (Pa) registra a situação mais grave pela pesquisa em termos de vidas perdidas na adolescência, com o Índice de Homicídios na Adolescência de 5,2 mortes em cada grupo de mil. A cidade foi a única da região a registrar média superior a cinco" [85].

Verifica-se, desse modo, uma crescente nos índices de violência no sul e sudeste do Estado do Pará, nacionalmente reconhecida em estudos e estatísticas, demonstrando, às claras, que na região em que o trabalhador foi assassinado vigora escandalosa ineficiência do Poder Público no combate a ações criminosas, o que proporciona inadmissível violação do texto da Constituição Federal (artigo 37, caput [princípio da eficiência], e artigo 144) e do texto da Constituição Estadual (artigo 193), dentre muitas outras diretrizes normativas já aqui mencionadas.

Exsurgiu patente, pois, nesse caso concreto, não só a responsabilização patronal, em face dos riscos da atividade, mas também a responsabilização estatal, decorrente da omissão específica e reiterada em cumprir seu dever constitucional de garantir segurança pública minimamente eficiente, no que refere às estradas da região sul e sudeste do Pará, cuja incúria, infelizmente, vem ceifando a vida ou maculando a saúde mental de inúmeros trabalhadores, em pleno habitat laboral [86].

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Sobre os autores
Ney Maranhão

Professor Adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal do Pará (Graduação e Pós-graduação). Doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo - Largo São Francisco, com estágio de Doutorado-Sanduíche junto à Universidade de Massachusetts (Boston/EUA). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade de Roma/La Sapienza (Itália). Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará. Ex-bolsista CAPES. Professor convidado do IPOG, do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA) (Pós-graduação). Professor convidado das Escolas Judiciais dos Tribunais Regionais do Trabalho da 2ª (SP), 4ª (RS), 7ª (CE), 8ª (PA/AP), 10ª (DF/TO), 11ª (AM/RR), 12ª (SC), 14ª (RO/AC), 15ª (Campinas/SP), 18ª (GO), 19ª (AL), 21ª (RN), 22ª (PI), 23ª (MT) e 24 ª (MS) Regiões. Membro do Instituto Goiano de Direito do Trabalho (IGT) e do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA). Membro fundador do Conselho de Jovens Juristas/Instituto Silvio Meira (Titular da Cadeira de nº 11). Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito do Trabalho – RDT (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais). Ex-Membro da Comissão Nacional de Efetividade da Execução Trabalhista (TST/CSJT). Membro do Comitê Gestor Nacional do Programa Trabalho Seguro (TST/CSJT). Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de Macapá/AP (TRT da 8ª Região/PA-AP). Autor de diversos artigos em periódicos especializados. Autor, coautor e coordenador de diversas obras jurídicas. Subscritor de capítulos de livros publicados no Brasil, Espanha e Itália. Palestrante em eventos jurídicos. Tem experiência nas seguintes áreas: Teoria Geral do Direito do Trabalho, Direito Individual do Trabalho, Direito Coletivo do Trabalho, Direito Processual do Trabalho, Direito Ambiental do Trabalho e Direito Internacional do Trabalho. Facebook: Ney Maranhão / Ney Maranhão II. Email: [email protected]

Francisco Milton Araújo Júnior

Juiz do Trabalho - Titular da 5ª Vara do Trabalho de Macapá/Ap. Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade Federal do Pará - UFPa. Especialista em Higiene Ocupacional pela Universidade de São Paulo – USP. Professor das disciplinas de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na Faculdade SEAMA/AP e colaborador da Escola Judicial do TRT da 8ª Região — EJUD8

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARANHÃO, Ney ; ARAÚJO JÚNIOR, Francisco Milton. Responsabilidade civil e violência urbana.: Considerações sobre a responsabilização objetiva e solidária do Estado por danos decorrentes de acidentes laborais diretamente vinculados à insegurança urbana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2774, 4 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18419. Acesso em: 24 abr. 2024.

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