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Depositários de cargas e questões polêmicas nas lides judiciais.

A responsabilidade civil e o não reconhecimento do prazo prescricional trimestral em favor dos depositários

12/02/2011 às 11:12
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Trata-se da responsabilidade civil do depositário de cargas, especialmente o prazo prescricional trimestral para o exercício da pretensão de reparação civil em face do depositário por inexecução da obrigação de depósito.

Sumário do artigo:Depositários de cargas – Obrigação contratual de depósito de cargas – Depósito obrigatório de cargas – Regulamento Aduaneiro – Responsabilidade civil do depositário – Deveres objetivos de guardar, conservar e restituir os bens confiados para depósito – Importância do Termo de Avarias dos depositários portuários e terminais de carggas (Siscomex-mantra, no caso dos depositários aeroportuários) – Vistoria aduaneira e vistoria particular conjunta – Caracterização de responsabilidade do depositário – Faltas e avarias – Roubo: fato que não mais se insere no contexto de caso fortuito – Prescrição trienal em face do depositário por perdas e danos – Não aplicação do critério favorável à prescrição trimestral – Prescrição trienal do Código Civil - Questões controvertidas nas lides forenses.


"(...) que se identifica na essência das obrigações de depósito, segundo ensina Aguiar Dias, é um dever de segurança sobre a coisa depositada, obrigação de resultado que tem por efeito a presunção de culpa contra ele, se não a restitui ao termo do depósito (Responsabilidade Civil, cit., t. 1, p. 397, n. 145).

Carlos Roberto Gonçalves

Responsabilidade Civil, 8ª ed. Saraiva: São Paulo, 2003, p. 424


O objetivo deste artigo é tratar da responsabilidade civil do depositário de cargas e temas compaginados, especialmente o prazo prescricional trimestral para o exercício da pretensão de reparação civil em face do depositário por inexecução da obrigação de depósito.

Pois bem.

A obrigação de depósito, decorrente do chamado depósito obrigatório [01] ou do contrato de depósito é obrigação de resultado, de fim.

O depositário assume o dever de cumprir uma prestação, sob pena de presunção legal de responsabilidade em caso de eventual inexecução.

Referido dever implica três condutas comissivas e objetivas, quais sejam: guardar, conservar e restituir a coisa confiada para depósito.

Assim, ao receber uma carga para depósito, desembarcada de bordo de um veículo transportador qualquer, o depositário assume responsabilidade plena pela integridade física dessa mesma carga, sendo presumida a sua responsabilidade em eventual caso de avaria ou extravio.

Por isso as afirmações primeiras que bem tipificam o contrato de depósito e a responsabilidade civil do depositário: obrigação de resultado, caracterizada pelos deveres objetivos de guardar, conservar e restituir a coisa confiada para transportes nas mesmas e exatas condições recebidas, inferindo-se legalmente a presunção de responsabilidade em caso de inadimplemento dessa mesma obrigação.

Aliás, sobre a natureza objetiva da responsabilidade do depositário convém dizer que o Direito brasileiro, desde tempos remotos, sempre a disciplinou com rigor, impondo ao depositário a presunção legal e a inversão do ônus da prova.

Com efeito, num dado caso concreto, observando a inexecução de qualquer dever obrigacional do depositário, presume-se de pleno direito sua responsabilidade, cabendo-lhe, em sendo possível, a exoneração de tal presunção por meio de prova acerca da existência, no mundo dos fatos, de alguma causa legal excludente de responsabilidade: força maior, caso fortuito ou vício de origem (vício de embalagem, vício da coisa ou culpa exclusiva do próprio depositante e/ou proprietário da carga confiada para depósito).

Em outras palavras: ao receber uma carga sem qualquer tipo de ressalva, o depositário reconhece que a recebeu em perfeito estado geral, exatamente como disposto nos documentos que antecederam o depósito e relativos à legítima propriedade da carga, obrigando-se a guardá-la, conservá-la e restituí-la a quem de direito e no momento oportuno, sendo presumida a sua ampla responsabilidade em hipótese de inadimplemento da obrigação assumida, vale dizer, avaria ou extravio, total ou parcial, da referida carga. Dessa presunção legal de responsabilidade somente se afastará, num dado caso concreto, se conseguir provar, mediante inversão do "onus probandi", alguma das causas legais excludentes e dispostas em rol taxativo pelo sistema jurídico.

Explicando ainda de forma mais detalhada e tendo-se em conta sempre a atenção com o exercício prático do direito.

Independentemente da caracterização da sua culpa num determinado caso concreto, no qual se teve configurado o inadimplemento contratual, o depositário responde objetivamente pelos prejuízos decorrentes do vício ou do fato do serviço de depósito.

Isso porque a responsabilidade civil do depositário, no âmago de suas relações contratuais, é disciplinada pela teoria objetiva imprópria, implicando dois importantes institutos jurídicos: a) culpa presumida e b) inversão do ônus da prova. Em certo sentido, há profunda intimidade entre os postulados que informam a responsabilidade civil do depositário e do transportador de cargas, de tal sorte que se faz possível vislumbrar uma correta equiparação legal entre ambas.

Várias fontes legais tratam da responsabilidade civil do depositário, sendo todas muito rigorosas em relação aos deveres objetivos do depositário de guardar, conservar e restituir o bem confiado em depósito, tratando-se, pois, de verdadeira tradição do direito brasileiro, desde os tempos do Código Comercial, passando por regras especiais e extravagantes, desaguando no Código de Defesa do Consumidor (a despeito das divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca de sua aplicação em relação à espécie) e coroando-se a matéria nas normas do Código Civil, primeiro o de 1916 e, agora, o de 2002.

O fundamento legal (que consideramos o principal) de tal responsabilidade encontra-se disciplinado preponderantemente no artigo 629 do Código Civil, cuja dicção é a seguinte: Art. 629. O depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e a diligência que costuma ter com que lhe pertence, bem como a restituí-la, com todos os frutos acrescidos, quando o exija o depositante.

Não é ocioso evidenciar que ao depositário, enquanto prestador de serviços chancelados com o signo de relações de consumo determina o ordenamento jurídico brasileiro tratamento diferenciado e ainda mais rigoroso, harmonizado o tipo de serviço com um serviço de "múnus" publicista, imantado de interesse social e que, portanto, transcende a esfera dos interesses privados.

Tanto assim, que o antigo Código Civil, apesar de pautado pela responsabilidade subjetiva, já prescrevia ao depositário a responsabilidade objetiva imprópria, destinando-lhe, pois e como já mencionado, tratamento diferenciado (artigo 1.266 do Código Civil de 1916, praticamente bisado pelo novo Código Civil).

O que se identifica na essência das obrigações do depositário, segundo ensina o grande e saudoso Mestre civilista AGUIAR DIAS [02] é: "(...) um dever de segurança sobre a coisa depositada, obrigação de resultado que tem por efeito a presunção de culpa contra ele, se não a restitui ao termo do depósito".

De qualquer forma, entendemos que o contrato de depósito também encerra uma típica relação de consumo, bem desenhada pela idéia de prestação de serviços especializados por parte do depositário, razão pela qual, sem de deixar de lado as normas civilistas, goza de primazia as regras consumeristas e, com elas, todo o peso da teoria objetiva imprópria, com os institutos da culpa presumida e inversão do ônus da prova. [03]

Com efeito, válida a invocação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei Federal 8.078/90), em plena harmonia ao Código Civil, isto é, sem prejuízo às demais regras que tratam do assunto (mesmo porque todas operam os mesmos princípios informativos e, em especial, os postulados da presunção legal de responsabilidade e inversão do ônus da prova), a fim de favorecer sobremodo, com justiça e corretamente o consumidor ou quem à ele for equiparado. [04]

Ora, o depositário oferece ao mercado, seja por disposição legal (regulamento aduaneiro), seja pelos termos e pelas condições do contrato puro e simples de prestação de serviços, o fornecimento de uma gama especializada de funções, obrigando-se a cumpri-las fielmente. Interessante notar que o objeto de consumo não é o bem, a coisa, a carga confiada para depósito, mas o serviço em si, haja vista que este é que é o item consumível e que tem, no depositante ou quem de direito, o consumidor final do que é posto e oferecido no mercado a guisa de serviço.

Não existe conflito, sequer aparente, entre o mencionado mosaico de regras legais que disciplina tanto o contrato de depósito, como a responsabilidade civil do depositário, mas, ao revés, plena harmonia, integração absoluta, dada a possibilidade vasta e concreta de invocação de todas as ditas regras a um só tempo, perfazendo o conceito de Direito sobre Direito, originário da doutrina alemã do "Recht Übber Recht".

O mosaico de regras que a Autora tem a seu favor, autoriza a aplicação simultânea de todas, pinçando-se o que há de melhor em cada uma delas, sem se falar em exclusão e sem qualquer tipo de prejuízo [muito menos em criação de uma nova regra por parte do Julgador], já que, repita-se por necessário, inexiste conflito entre elas.

Hoje, não mais se concebe o expurgo puro e simples de uma regra legal sem, antes, se buscar a harmonia e a coordenação entre as várias regras do ordenamento legal, a integração do conteúdo de uma regra com o de outra. Há de se procurar a adequação delas com o fim de evitar a ocorrência da própria antinomia.

Tal idéia, que tem por escopo a busca da Justiça, conceito que autoriza até mesmo e nos devidos limites à flexibilidade da própria segurança jurídica, tem índole reflexa de ordem constitucional, tratando-se de um verdadeiro mecanismo de calibragem do sistema legal, ou, ainda no vácuo dos ensinamentos da escola alemã, um princípio fundamental e vetor da aplicação prática do Direito, conhecido como "Verhältnismässigkeitsmaxime" (princípio da proporcionalidade).

Importante salientar, mais uma vez, que a relação de consumo se encontra estabelecida no caso do contrato, entenda-se, obrigação de depósito, é o fornecimento de um serviço, vale dizer, o depósito em si. Irrelevante, portanto, saber se o depositante é ou não o destinatário final do bem (produto) confiado para depósito, pois o que se tem em conta, repita-se, é o serviço, sendo este e não aquele o liame fático subjetivo que integra a relação de consumo e une os dois pólos antagônicos, fornecedor (depositário) e consumidor (depositante ou proprietário da carga ou quem legalmente fizer às vezes de um e de outro).

Mas é muito importante salientar que a defesa que ora se faz da aplicação da legislação consumerista não é exclusivista, mas, ao contrário, integrativa e sistêmica, na medida em que ela não exclui a aplicação de outras normas, mas completa-as e as fortalece, tudo na melhor forma de Direito, recebendo especial destaque dentro deste contexto o Código Civil.

O influxo da legislação consumerista em sede de contrato de depósito, vale dizer, obrigação de depósito, é defendido por ninguém menos do que o Ilustríssimo Professor Carlos Roberto Gonçalves [05], que assim dispõe e ensina, valendo a pena bisar nesta peça o abalizado entendimento abaixo reproduzido: "O Código de Defesa do Consumidor, que representa uma grande e elogiada evolução no direito positivo brasileiro, aplica-se subsidiariamente aos depositários, no que não contrariar o Código Civil, especialmente o artigo 51 daquele diploma, que fulmina de nulidade as cláusulas abusivas, e seu §1º, que proíbe a cláusula de não indenizar [06]. Os dispositivos da legislação consumerista citados não se mostram incompatíveis com o novo Código Civil, pois este também considera objetiva a responsabilidade (...)"

O posicionamento do Ilustre Mestre se harmoniza bem com a defesa do diálogo entre as fontes, na medida em que autoriza, a um só tempo, a aplicação da lei do consumidor com a lei civil para disciplinar a responsabilidade do depositário inadimplente.

E nem se diga que os direitos consumeristas não são transferidos pela sub-rogação legal, pois o segurador sub-rogado assume todos os direitos e ações do segurado, inclusive os ora mencionados, já que a sub-rogação legal se opera de pleno direito, transferindo todos, rigorosamente todos, os interesses e ações. Assim, dilatado o campo daqueles que podem se arvorar do título de "consumidores", ainda que não os sendo, como se "fossem verdadeiras vítimas do fato do produto ou do serviço", com especial destaque os seguradores das cargas que são entregues para depósitos e que, na esmagadora maioria das vezes, suportam com os prejuízos decorrentes das desídias operacionais dos depositários em geral.

A obrigação do depositário é a de entregar as cargas confiadas contratualmente para o depósito nas mesmas e perfeitas condições recebidas. Não o fazendo, caracterizada estará, ao menos a priori, a sua responsabilidade pelo contrato inadimplido (não aperfeiçoamento do contrato de transporte), sendo certo dizer que o depositário tem os deveres, como mencionado mais de uma vez neste artigo, de guardar, conservar e restituir.

O discurso repetitivo é válido e pertinente para que se fique reforçada a premissa que a obrigação de depósito, máxima do contrato de depósito, é uma obrigação de resultado, caracterizada pela assunção de deveres objetivos, legais e contratuais, razão pela qual a responsabilidade do transportador é subordinada a responsabilidade objetiva imprópria.

Sobre o contrato de depósito, Caio Mário da Silva Ferreira, em sua opus magnum "Instituições de Direito Civil" [07] tece interessantes considerações:

"B – Obrigações do depositário: 1) a custódia da coisa, ou a sua guarda e conservação, com o cuidado e diligência que costuma ter com o que é seu – diligentiam suam quam suis – não lhe servindo a excusa do desleixo habitual. É este o dever principal do depositário, e tão característico deste negócio jurídico que se considera a obrigação típica deste contrato, e tão relevante que se erige em seu elemento técnico distinguindo-o de outro, como a locação e o comodato, em que aparece a entrega da coisa por outra finalidade.

(...) Em qualquer hipótese responde pelos riscos, e é obrigado a ressarcir perdas e danos, salvo se provar que o dano ocorreria, ainda que a tivesse consigo.

Ao receber a coisa por força do contrato de depósito, o depositário assume a sua "guarda", e, nestas condições, responde por ela como seu "guardião" aplicando-se-lhe os princípios que informam a "teoria da guarda" que é presente na doutrina da responsabilidade civil.

5) Restituir o depósito com todos os frutos e acrescidos, quando o exigir o depositário, e no mesmo estado em que foi feito, intacto se era colado, lacrado, selado ou fechado." (grifos não do original)

Em outra obra do mesmo autor, "Responsabilidade Civil" [08], é explicada a teoria da guarda:

"A noção de guarda, como elemento caracterizador da responsabilidade, assume aspectos peculiares. Não pode objetivar-se na "obrigação de vigiar". Ripert esclarece bem a questão, ao observar que se deve tomar como noção nova, criada para definir obrigação legal que pesa sobre o possuidor em razão de deter a coisa. "Quem incumbe uma pessoa de assumir a guarda de uma coisa é para encarregá-la de um risco" (Aguiar Dias). Nestas condições, o responsável deve assumir o risco gerado pela utilização normal da coisa." (grifo não do original)

A doutrina claramente posiciona-se favorável ao ressarcimento da coisa avariada, dentro das condições regulares de vigilância e guarda que o depositário deve exercer sobre a coisa, sendo presumida a sua culpa por eventuais danos a coisa, vale dizer, vício do serviço oferecido e contratado.

Alguns doutrinadores além de não reconhecerem a incidência da legislação consumerista, também alimentam dúvidas quanto ao fato de a responsabilidade do depositário ser ou não de índole objetiva imprópria.

Isso porque o antigo Código Civil e o atual, que praticamente bisou a redação do anterior, em alguns dispositivos, abordam conceitos legais como dolo e culpa, ou que, segundo estes doutrinadores, importaria necessidade, por parte do interessado, de demonstrar eventual falha operacional do depositário.

Tal entendimento, com todo e máximo respeito, quer parecer limitado, porque preso a questão do "fiel depositário" enquanto auxiliar do Estado-juiz. No caso deste agente público, isto é, da função de depositário assim exercida, há sentido em se cogitar a respeito de dolo ou de culpa no trato de eventual responsabilidade civil à luz de um caso concreto.

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Todavia, ao se analisar a figura do depositário enquanto sujeito de uma relação negocial, a única forma correta de se encarar a matéria é a de consignar a responsabilidade objetiva imprópria, uma vez que o depositário exerce uma atividade de fim, direcionada ou não por um comando legal expresso, mas na condição negocial, prestando um serviço especializado com vistas ao lucro.

Dessa forma, a imposição da teoria objetiva imprópria é a medida de rigor e a única efetivamente capaz de construir a justiça em favor daquele que se utiliza do serviço do depositário e que se vê, literalmente, refém de uma obrigação contratual da qual, na maior parte das vezes, sequer tem qualquer tipo de ingerência nos termos da contratação.

Ora, grosso modo, embora com natureza diferenciada a de outros contratos do gênero, o de depósito de cargas também é um negócio jurídico marcado pelo rótulo de contrato de adesão, de tal forma que o depositário é praticamente a única parte que impõe sua vontade na relação contratual e o depositante ou aquele que legalmente lhe fizer às vezes não tem alternativa alguma senão aceitar as imposições da contratação, sobretudo em se tratando de depósitos derivados de transportes internacionais, marítimos ou aéreos, os chamados depósitos obrigatórios, exercidos, os primeiros por empresas concessionárias de serviços públicos e os segundos pela INFRAERO, entidade estatal que ligada às administrações de todos os aeroportos do país e que também atua como depositária aeroportuária.

É possível ainda sustentar o império da responsabilidade objetiva por conta do fato de os depositários de cargas exercerem atividades envoltas em riscos diversos, inserindo-se bem no contexto do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil de 2002. Com efeito, todo aquele que exerce atividade de risco para outrem (seja um risco direito à integridade física desse mesmo outrem ou um risco ao seu patrimônio) é alguém que se submete, no que tange ao dever de reparação, aos princípios e postulados da responsabilidade civil objetiva, tendo-se neste item legal mais um importante mecanismo de calibragem do ordenamento jurídico brasileiro.

Dada a importância da idéia ora sustentada, convém repetir com outros termos: ainda que todas as regras legais, tradicionais ou vanguardistas, não existissem em favor da pretensão de se imputar a presunção legal de responsabilidade do depositário por inexecução perfeita dos seus deveres negociais, a responsabilidade objetiva poderia ser efetivamente aplicada pelo Estado-juiz num determinado caso concreto em função do quanto disposto no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, já que a atividade de depósito (função de depositário) envolve naturalmente riscos, perfeitamente calculados e, portanto, passíveis de dimensionamento e regular prevenção pelo depositário, devendo o depositário, pois, responder pelos sinistros decorrentes destes mesmos riscos integral e objetivamente, independentemente da apuração de elementos subjetivos como culpa e dolo.

Importante ressaltar que as empresas depositárias que atuam nas faixas portuárias por meio de concessões e segundo o regime estabelecido legalmente pelo Direito Administrativo, explorando o negócio jurídico de depósito segundo os moldes do Direito das Obrigações mas sob o manto do "munus" público, fazem-no por meio de muitos e formais instrumentos jurídicos e mediante a expressa lavratura e assinatura de um termo de responsabilidade, segundo o qual declaram assumir, mais ou menos nos seguintes termos e para todos os efeitos legais, a condição de fiel depositário das mercadorias procedentes do exterior ou a ele destinadas, objeto de operações de carga, descarga, movimentação, armazenamento ou passagem, e, nessa condição, assumem também a responsabilidade pelos tributos e demais encargos decorrentes, apurados em relação a extravio, avaria ou acréscimo de mercadorias sob sua custódia, assim como danos a elas causados, nas operações realizadas por seus prepostos. [09]

No que tange as avarias pouco se discute acerca da responsabilidade do depositário. Se o depositário não tratou de consignar eventuais anormalidades da carga confiada para depósito quando do recebimento, a presunção lógica que decorre de tal ausência de ressalva é que ele a recebeu em perfeito estado geral, logo, toda e qualquer avaria, ainda que mínima, apurada no ato de restituição é imediatamente imputada ao depositário.

Os depositários portuários dispõem dos termos de avarias e os aeroportuários dos sistemas SISCOMEX-MANTRA administrados, em cada aeroporto, pela INFRAERO.

Assim, se uma carga é desembarcada de bordo de um navio transportador com algum problema, perceptível a primeira vista, e entregue ao depositário com este mesmo problema, há de ser feita a competente ressalva no termo de avaria, sob pena de se transferir ao depositário a ampla e irrestrita responsabilidade pelos prejuízos da avaria posteriormente constatada, salvo se ele conseguir provar, mediante inversão do "onus probandi", que a avaria se deu em momento anterior (mediante prova técnica ou pericial) ou a ocorrência de alguma causa legal excludente de responsabilidade.

Igualmente se dá no caso do depósito aeroportuário, sendo que os mantras emitidos pela INFRAERO nos diferentes aeroportos são equiparados legalmente aos referidos termos de avarias.

As ressalvas, porém, não podem ser generalizadas ou meramente praxistas, mas determinadas e específicas, pois do contrário serão tidas como ineficazes e inválidas, senão nulas de pleno Direito, senão do ponto de vista formal, ao menos substancialmente, no que tange à produção de prova em favor dos depositários.

Alegações de que muitas cargas são unitizadas (acondicionadas em contêineres) e, portanto, difíceis de serem inspecionadas quando do recebimento não têm cabimento, pois existem métodos diversos e seguros de apuração, identificação e conferência, desde a visualização atenciosa de cada contêiner entrado nas dependências do depositário, checagem dos lacres e dos parafusos e rebites das portas, presenças ou não de rasgos, amassamentos e furos, condições gerais das vedações, até pesagens cuidadosas para comparações de dados entre os contatados nos referidos atos de entregas e os constantes nos documentos de importação ou de exportação. Tudo isso, porém, exige um esforço logístico, um serviço apurado e cuidado e, claro, um custo operacional razoavelmente salgado, custo este que, a rigor, os terminais não estão dispostos a arcar, no caso dos terminais portuários alfandegados (mesmo sendo empresas concessionárias de serviços públicos) e a INFRAERO, muitas vezes e com todo o respeito, não se dá conta da importância de tais procedimentos, todos concorrendo, portanto e literalmente, com a sorte.

Referido termo de avarias, seja o termo propriamente dito ou o mantra, é tão importante que, bem constituído, dispensa a eventual realização da vistoria aduaneira. Por mais que a vistoria aduaneira seja um procedimento oficial e importante, eminentemente tributário, mas fincado também no Direito Civil, sua efetivação num caso de avarias (ou, às vezes, de extravio) não é imprescindível, uma vez que perfeitamente substituível por outro meio de prova. Não se quer, com tal afirmação, reduzir de forma alguma sua incomensurável importância, apenas afiançar que sua não realização de forma alguma inibe a caracterização de responsabilidade do depositário e o direito público subjetivo do legítimo interessado de pleitear o ressarcimento em regresso.

Como a Vistoria Aduaneira é uma prerrogativa da Receita Federal, é perfeitamente possível que a própria Receita não tenha interesse em realizá-la ou que o proprietário da carga, principalmente em hipótese de avarias parciais, pretenda a liberação da parte da carga não afetada para sua imediata comercialização. Assim, a vistoria oficial torna-se mais um imbróglio jurídico e de viés administrativo do que um meio oficial de apuração de danos e responsabilidades. Nesse sentido é que a ressalva inicial se reveste até de mais importância, ainda que numa análise subjetiva e pontual, sempre conforme as particularidades de um determinado suporte fático, do que a própria vistoria.

Outra modalidade de vistoria que é muito comum e substitui a aduaneira, mas não é, igualmente, imprescindível, é a particular conjunta. Trata-se de uma vistoria que tem seus alicerces no conceito jurídico de arbitragem, porque consensual, nascida da vontade livre das partes em, conjuntamente, por meios técnicos e idôneos, apurarem os fatos de um sinistro. Por ser eminentemente bilateral, é imantada de máxima fidelidade, força e eficácia, razão pela qual, como já afirmado, substitui a vistoria oficial em todos os sentidos. Se, porventura, a carga for retirada das dependências do depositário para análise noutro lugar e o depositário, após prévia e formal convocação, por meio da qual tomou expressa ciência do dia, do horário e do lugar dos trabalhos de vistoria, deixar de comparecer, ainda assim a vistoria manterá sua natureza negocial e bilateral, sua máxima imparcialidade (idoneidade), porque aquele que, convocado, deixou de participar é porque renunciou, ainda que tacitamente, seu direito em tal sentido, aceitando, por via de conseqüência, os resultados da apuração efetivada pelas demais partes interessadas na pendência.

Além das avarias, existe um outro flagelo que costuma ocorrer nas operações de depósito, qual seja, o furto de carga, isto é, o inadimplemento contratual por extravio, equiparado, no caso dos transportadores em geral, ao evento conhecido como falta na descarga, no caso, impossibilidade de restituição.

A carga é entregue ao depositário que comprovadamente a recebe mas, por desídia operacional gritante, culpa em sentido estrito (e culpa grave, de sublinhar, inescusável e equiparada ao quase-dolo), na modalidade omissiva, mais especificamente "culpa in vigilando", permite, por motivos ignorados, que ela seja extraviada, furtada, das suas dependências, denotando falha quanto aos seus deveres objetivos de cuidado.

Há muito que a jurisprudência brasileira já pacificou que em relação aos transportadores e aos depositários o furto não tipifica de forma alguma a figura legal da força maior, porque desnudo de todos os elementos que caracterizam a fortuidade, imprevisibilidade, inevitabilidade e irresisitbilidade. O furto, sobretudo para quem se obriga a manter sob sua custódia bem alheio mediante remuneração, com dever contratual de vigilância, é fato previsível, portanto evitável e passível de resistibilidade.

A ocorrência do furto revela falta de vigilância, menoscabo operacional grosseiro e, ainda, modalidade gravíssima de falta contratual.

Vê-se com facilidade que o furto não se enquadra no conceito de fortuidade, como estampado no parágrafo único do artigo 1.058 do Código Civil, até porque o enunciado legal é taxativo ao dispor: "O caso fortuito, ou de força maior, verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir".

Ora, o furto não é necessário, porque conhecido e parte do risco da atividade do depositário jamais pode ser deixado de lado quando de suas operações regulares; igualmente, ele é perfeitamente possível de ser evitado ou impedindo, desde que medidas preventivas sejam adotadas para tanto, exigindo-se do depositário especial zelo, aparatos eficazes de segurança e de proteção.

Assim, pode-se afirmar com tranqüilidade e segurança que o furto não é uma questão verdadeiramente relevante e polêmica no que concerne a imputação da responsabilidade civil do depositário pelo extravio da carga confiada.

A questão traumática reside no roubo, haja vista a presença do elemento violência e, portanto, suposta irresistibilidade.

Até certo tempo atrás, o roubo pontilhava o cenário jurídico brasileiro como causa legal excludente de responsabilidade do depositário. Essa posição começa a ser questionada e muitos precedentes já se encontram em sentido inversamente contrário.

Aqui se defende e advoga, com ares de bandeira ideológica, que o roubo não pode mais ser considerado como causa legal excludente de responsabilidade do depositário, porque ele não se encaixa mais no conceito de força maior, na medida em que deixou, faz tempo, de ser um fenômeno imprevisível, inesperado e, até mesmo (senão plenamente mas em considerável aspecto) irresistível, tratando-se de ônus próprio do depositário, risco inerente de sua função e de sua atividade.

Há alguns anos, sustentamos que o roubo não é mais uma causa excludente de responsabilidade do transportador ou do depositário. Logo, se um transportador ou um depositário forem roubados nos exercícios de suas atribuições, responderão objetivamente perante os donos das cargas ou seus respectivos seguradores.

E ainda com mais razão os depositários, porque estão estáticos, parados, podendo melhor guarnecer suas dependências a atuar com mais rigor no combate e na prevenção dos crimes de roubos, diminuindo sobremodo o coeficiente de probabilidade.

O sistema jurídico brasileiro ainda reconhece a existência de algumas causas legais excludentes de responsabilidade. Uma dessas causas é a força maior, definida como o evento imprevisível, inesperado e irresistível, provocado pelo homem, que impede a execução de uma obrigação contratual previamente assumida, disciplinada, primacialmente, no comentado parágrafo único do artigo 1.059.

Exemplos típicos de força maior são a guerra, a comoção social, a greve. Até alguns anos atrás, o roubo de cargas ou de bens confiados em depósito, como mencionado anteriormente, também era considerado um fenômeno típico de força maior.

Hoje, não é mais. Assim entendemos e nos amparamos em muitos precedentes judiciais emblemáticos de órgãos monocráticos e colegiados do Estado-juiz.

Com efeito, para que um dado evento danoso mereça o rótulo da fortuidade, é preciso a existência concomitante de três importantes itens: imprevisibilidade, inevitabilidade e irresistibilidade. A ausência de um só desses itens é suficiente para descaracterizar o benefício legal da exclusão de responsabilidade. E, não temos dúvidas, que somente a irresistibilidade, quando muito, está presente em alguns casos envolvendo inadimplemento das obrigações de transporte e de depósito por roubo.

Assim como no caso do furto, que já não é mais reconhecido como exemplo de força maior, acreditamos que a tendência doravante será a de não mais se reconhecer tal e indevido benefício em relação ao roubo, porque perfeitamente previsível e evitável e no caso específico dos depositários, ainda com mais razão que os transportadores, plenamente resistível, já que estes se encontram estacionados, parados, localizados em dependências físicas e estáticas que podem e devem ser melhor guarnecidas com poderosos e eficazes aparatos de seguranças e não com dois ou três vigilantes pouco treinados e preparados e câmaras antiquadas que nada protegem e que servem apenas para dar a falsa sensação de segurança.

Vivemos tempos violentos, marcados pelo signo odioso da criminalidade. É uma realidade fática; lamentável, é verdade, mas presente no mundo, em especial no Brasil. Aos transportadores e aos depositários, o roubo é, sem dúvida, um fenômeno previsível e esperado. Quem se ocupa de transportar cargas ou manter bens em depósito sabe que, a qualquer instante, pode ser vítima de roubo. É um risco inerente às atividades e que deve ser integralmente absorvido por quem as exerce.

Segundo a teoria tridimensional do Direito, elaborada pelo Professor Miguel Reale, Direito é norma, fato e valor. Ora, a norma que trata da exclusão da responsabilidade dos transportadores e dos depositários incide sobre fatos completamente diferentes dos de dez ou vinte anos atrás, logo o valor atribuído ao seu conteúdo não pode ser o mesmo, sob pena de grave injustiça.

Sempre é bom lembrar que a finalidade última do Direito é a promoção da Justiça e esta passa, necessariamente, pelas estradas da equidade, da isonomia, do bom-senso, da razoabilidade e, mesmo, da moral. Exatamente por isso é que o sistema jurídico é informado por vários mecanismos de calibragem, sempre com vistas a equilibrar forças e construir a justiça, imprescindível para a paz social.

Tem-se, nesse sentido, aquilo que ousamos denominar, com base em nosso exercício profissional diário, teoria da vítima maior (também denominamos, teoria da vítima final ou da vítima mais inocente). Explicamos: se o transportador ou o depositário são vítimas do roubo, ainda mais vitimado é o proprietário do bem roubado, credor das obrigações de transporte ou de depósito. Com efeito, a vítima verdadeira é o proprietário do bem, sendo injusto, para não dizer odioso, que ele, o proprietário (ou seu segurador) venha a arcar com o prejuízo final.

Importante lembrar que nas referidas relações contratuais, os principais beneficiários são o transportador e o depositário, pois "vivem" do exercício empresarial dessas atividades. Dessa forma, é equilibrado, é justo e de bom tom que àqueles que têm o benefício devem arcar com os ônus. Não pode a vítima mais inocente, o dono da carga suportar o prejuízo derradeiro pelo roubo do seu bem quando este se encontrava sob a custódia do transportador ou do depositário.

Tanto o contrato de transporte, como o de depósito encerram obrigações de fim. Obrigação de fim é aquele, grosso modo, em que o devedor da prestação principal obriga-se pelo resultado positivo, condição inafastável para o aperfeiçoamento do pacto jurídico. Não ocorrendo à execução da prestação, presume-se a culpa do transportador ou do depositário pelo inadimplemento, tenha ou não esta ocorrida no mundo dos fatos. Isso faz com que a responsabilidade civil do transportador e do depositário seja disciplinada pela teoria objetiva imprópria, com suas colunas culpa presumida e inversão do ônus da prova, sendo certo que ambos os prestadores de serviços têm os deveres de guardar, conservar e restituir os bens confiados contratualmente.

Com mais razão, portanto, a imputação plena de responsabilidade aos transportadores e aos depositários roubados durante o fornecimento dos seus respectivos serviços. Felizmente, temos notado avanço jurisprudencial em tal sentido. Muitas decisões, singulares ou colegiadas, reconhecem que o roubo, porque previsível e esperado (em alguns casos, até mesmo evitável), não mais configura fortuidade, vale dizer, causa legal excludente de responsabilidade.

Nem estamos levando em consideração situações de agravamento de risco ou, ao revés, de minimização, temas que poderemos abordar em oportunidade futura para justificar eventuais graduações do quantum indenizatório. Ora, a verdade é que o transportador e o depositário respondem sempre pelos prejuízos decorrentes do roubo, mesmo que tenham adotado todas as medidas acautelatórias possíveis e conhecidas.

O que era fortuidade ontem, já não o é hoje e ninguém sabe como será no futuro. Há que se empregar ao tema a necessária maleabilidade em relação à valoração do suporte fático, mas sem deixar de lado o postulado maior de não ser justo, moral e jurídico que o dono da carga, inegavelmente a vítima mais inocente, suporte os prejuízos do grave evento danoso.

Enfim, transportadores e depositários devem estar devidamente preparados para arcarem com todos os ônus de suas respectivas atividades, não lhe sendo facultada a transmissão de infortúnio.

E, como o badalo do sino verga dos dois lados, com a mesma ênfase que defendemos que o roubo não exclui a culpa do transportador e do depositário, também defendemos que estas importantes personagens da estratégia econômica do país, têm amplo e irrestrito direito de buscar em regresso em face do Estado-administração, os prejuízos suportados pelo roubo.

Este é um outro tema que pretendemos abordar no futuro, todavia adiantamos que o Estado-administração é o responsável último pelos danos originários do roubo, elemento do contexto Segurança Pública, garantia constitucional de todos e dever do Estado.

Da mesma forma que o Poder Judiciário avançou e avança no que tange a não caracterização do roubo como evento típico de força maior, deve avançar no sentido de mudar o posicionamento atual e responsabilizar o Estado-administração pelos roubos havidos nos transportes e nos depósitos, ao menos nos casos em que estes prestadores de serviços tomaram todas as medidas acautelatórias possíveis e, mesmo assim, não evitaram a ocorrência do evento danoso.

Com isso, o Estado será forçado a programar uma política séria e respeitável em relação a Segurança Pública, cumprindo o seu papel e respeitando a cidadania, começando por aqueles que geram empregos e tributos, como os transportadores e os depositários sérios. Por meio do Direito aplicado, haverá verdadeira revolução na economia e os bons, idôneos e qualificados prestadores de serviços serão respeitados e tutelados, diminuindo-se o custo-Brasil e gerando riquezas em prol de toda a sociedade.

Não somos contra transportadores e depositários (os sérios e respeitáveis, de sublinhar), somos apenas a favor da Justiça, do Direito e da Moral. A mesma mão que empunha a bandeira da "vítma mais inocente" em favor dos donos de carga e seus seguradores e a que levanta o estandarte contra o Estado e sua incúria em promover a Segurança Pública, combatendo a criminalidade e permitindo aos bons prestadores de serviços executarem tranqüilamente suas atividades.

Por mais que o STF – Supremo Tribunal Federal já tenha se manifestado que não é dado ao Estado, a despeito do seu dever de segurança pública (artigo 144 da Constituição Federal) proteger todo o mundo, a todo instante e em todo o lugar, no caso dos terminais portuários e dos aeroportuários, alvos constantes de roubos, tendo estes efetivamente tomados todas as medidas cabíveis para o evitamento dos perigos, ações regressivas de ressarcimentos pelos prejuízos indenizados aos proprietários ou seguradores das cargas depositadas em face do Poder Público são perfeitamente cabíveis, primeiro porque são empresas concessionárias de serviços públicos e segundo porque o Estado, sabendo das suas respectivas importâncias, até mesmo estratégicas para o país, deveria providenciar segurança, já que não se trata, na espécie de uma segurança difusa, mas pontual e conhecida, concomitante a privada exercida por cada terminal e que em muito ajudaria a sociedade brasileira como um todo, especialmente no que toca à redução do comentado risco-Brasil, ou melhor, custo-Brasil.

Outra questão polêmica que vale a pena ser comentada antes de se concluir este trabalho a respeito dos depositários de carga é a que trata do prazo prescricional para o exercício da pretensão de reparação de dano (ou de ressarcimento em regresso) em face do depositário que não executou corretamente sua obrigação de depósito.

Esta é, de fato, uma questão traumática e que merece a especial atenção do amigo leitor, uma vez que o tema, até então pacífico, sofreu reviravolta violenta nos últimos anos por conta de uma decisão, com todo e máximo respeito, equivocada do STJ – Superior Tribunal de Justiça que, também respeitosamente, contaminou de forma muito negativa os órgãos todos do Poder Judiciário e produziu e produz impactos negativos não apenas no mundo do Direito, mas num universo muito mais amplo, importante e concreto, que é o da economia, das relações comerciais e do comércio exterior.

Recentemente, o STJ – Superior Tribunal de Justiça reconheceu a validade e a eficácia do prazo prescricional trimestral da pretensão de reparação de danos ou de ressarcimento em regresso em face de depositário que descumpriu os deveres objetivos de guardar, conservar e restituir a coisa confiada para depósito, avariando-a ou extraviando-a, isto é, o depositário inadimplente, que não executou com perfeição a obrigação contratual de depósito.

Trata-se do Recurso Especial nº 164.165-SP (1998/0010099-7), do qual foi Relator o Ministro Ari Pargendler. Conhecemos bem o caso concreto e a referida decisão, pois atuamos como advogados do segurador e autor da ação regressiva de ressarcimento, sendo que antes tanto o juízo monocrático de Santos, como o Tribunal de Justiça de São Paulo, julgaram favoravelmente aos direitos e interesses de nosso representado, reconhecendo a pretensão de regresso do segurador e não considerando o prazo prescricional trimestral alegado desde o início pelo depositário, mas rechaçado pelo Poder Judiciário que optou pelo prazo ânuo defendido pelo segurador e que, até então, era matéria pacífica no seio jurisdicional brasileiro.

Um duro golpe, ainda não assimilado pelos advogados que defendem os interesses do mercado segurador relativamente aos ressarcimentos das indenizações pagas aos segurados, proprietários das coisas depositadas e vítimas originais dos danos causados pelos depositários. E a dureza é de ser ressaltada, pois à referida decisão, que motivou outras tantas do mesmo e superior Tribunal, foi dado o cunho de um precedente diferenciado, capaz de induzir julgamentos de outros órgãos jurisdicionais, uma espécie da ante-sala de Súmula Vinculante, figura já faz parte do Direito brasileiro (e, infelizmente, temos motivos para crer que tal decisão venha, num futuro não muito distante, ensejar uma Súmula Vinculante se, antes, todos os interessados, mercado segurador em especial, não trabalharem fortemente em sentido contrário).

Até a referida decisão, o prazo trimestral estava literalmente morto. Os órgãos jurisdicionais, monocráticos e colegiados, não reconheciam a validade e a eficácia da fonte legal que o disciplinava, tendo-se em contra, entre outros poderosos fundamentos jurídicos, a mudança havida nas operações de depósito e nas relações comerciais inerentes a tal atividade. Nada mais justo, próximo aos melhores ideais de Direito e de Justiça. Ao que tudo indica o STJ – Superior Tribunal de Justiça deixou de lado a interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, optando por uma interpretação literal, desconsiderando os perigos inerentes a tal modalidade interpretativa.

Antes mesmo de apresentar nossos fundamentos esclarecemos: equivocou-se o Tribunal Superior porque ao interpretar literalmente a regra legal reconheceu uma figura que não existe mais no mundo dos fatos, a do armazém geral que opera a base de título de crédito, esquecendo-se que direito é norma, fato e valor e que, acima de tudo, o mundo dos fatos é que deve inspirar o direito e não o contrário, sendo certo que, hoje, todos os depósitos de cargas são efetuados por contratos em sentido estrito, relações empresariais e/ou de consumo, desnudadas dos moldes antigos dos títulos de "warrant" e, portanto, não suscetíveis ao comando legal que disciplina o absurdo prazo trimestral.

O prazo trimestral é previsto no Decreto nº 1.102, de 21.11.1903, que estabelece regras para empresas de armazéns gerais. Embora este Decreto continue formalmente em vigor, seu conteúdo é manifestamente incompatível não só com todo o ordenamento jurídico, mas com a natureza jurídica da própria obrigação de depósito dos dias correntes. Com efeito, quando o Decreto entrou em vigor, os depósitos eram efetuados mediante a emissão e a transferência de títulos de créditos específicos, os "warrants". Nem de longe lembravam os depósitos operados hoje, imprescindíveis para o fluxo de riquezas e intimamente ligados às operações internacionais de transportes de cargas, aéreas e, principalmente, marítimas.

Daí a infelicidade, para dizer o mínimo, não querendo acreditar em qualquer outro fator de motivação da decisão senão o equívoco de interpretação do Direito quanto ao mundo dos fatos, do STJ – Superior Tribunal de Justiça. Definitivamente, os Ilustres Ministros, de inegável saber jurídico, mostram-se insensíveis às realidades fáticas, desconhecem os múltiplos negócios jurídicos ligados ao conceito de comércio exterior e em meio ao seu atavismo às coisas do Direito, prejudicam a sociedade como um todo, fulminam o fluxo da economia e prestam grande desserviço à sociedade. Seus gabinetes refrigerados em Brasília definitivamente não representam o Brasil.

A tutela jurídica não pode ceder às exigências teóricas incompatíveis com a destinação prática do ordenamento.

Certamente os operadores do Direito que defendem as vítimas das relações frustradas de depósito de coisas, especialmente os ligados ao universo securitário, estão concentrando esforços, elaborando teses e fortalecendo argumentos jurídicos com vistas a combater as decisões favoráveis ao prazo trimestral a fim de restabelecer o melhor Direito e a segurança jurídica. Nós mesmos estamos empenhados em tal luta, pois tememos que a eventual pacificação jurisprudencial do prazo trimestral poderá se transformar num salvo-conduto para depositários de cargas em geral, fonte de prejuízos para toda a sociedade.

Todavia, até que a situação esteja novamente regularizada, isto é, até que o Poder Judiciário como um todo se dê conta do absurdo que é o ressurgimento indevido, puramente formal e literal, do prazo trimestral, convém aos seguradores, detentores de legítimos interesses, atuarem mais firmemente ao lado dos seus segurados e dos prestadores de serviços destes, despachantes aduaneiros em especial, tomando, conjuntamente, providências para a preservação dos direitos regressivos e atuando com mais dinamismo e agilidade, tanto em termos de regulação de sinistro, como de estratégias judiciais, interrupções dos prazos prescricionais e litígios em juízo.

Reflexões sobre o assunto são neste instante reclamadas e devem estar presentes nas pautas de pendências urgentes de todos àqueles que trabalham com ressarcimento: técnicos, reguladores, comissários de avarias, consultores de sinistros, executivos e advogados, operando em sinergia para opções acertadas e eficazes, capazes de contornarem o problema ou, ao menos, minimizarem seus efeitos nocivos, garantindo-se, com isso, o sucesso do ressarcimento futuro.

Quer nos parecer que, hoje, o prazo corretamente a ser aplicado nem mesmo é o de um ano, então levado em consideração por analogia ao Código Comercial que disciplina no artigo 449 a prescrição em face do transportador marítimo, mas, sim, o prazo de três anos de que trata o artigo 206, parágrafo 3º., inciso V, do Código Civil de 2002, que introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a figura da pretensão de reparação civil.

Esta figura, embora aparentemente genérica, foi a resposta que o legislador civilista inteligentemente encontrou para satisfazer todas as relações envolvendo o que se pode considerar o mais importante tema do Direito Civil, tanto que reparação civil é expressão que cabe tanto para as relações extracontratuais como para as contratuais.

Atrás da aparente generalidade, reside uma particular especialidade, observada quando a regra é cotejada e trabalhada com outras, como, por exemplo, todas as regras que disciplinam o contrato de depósito e a figura do depositário. Se o legislador não estabeleceu prazo específico para as questões envolvendo os depositários e se estas mesmas questões importam responsabilidade civil, é fácil imaginar que a pretensão de responsabilidade civil do aludido artigo é regra especial por correta equiparação legal, princípios da proporcionalidade, isonomia e equidade e, em sendo assim, regra que desfruta de primazia sobre qualquer outra num eventual conflito aparente de normas.

Por isso e pelos outros argumentos expostos é que estamos muito seguros que não se aplica ao caso concreto o prazo trimestral em favor dos depositários de cargas, mas que a pretensão em face deles pode e deve ser exercida em até três anos contatos a partir da data da ocorrência do fato gerador do Direito.

O assunto é apaixonante e, infelizmente, não há muita literatura no Brasil disponível. Por motivos desconhecidos não é assunto que desperta grande interesse dos maiores doutrinadores. Por isso nossa ousadia em escrever do assunto, reportando algumas experiências profissionais com a expectativa de contribuir para os estudos práticos dos interessados na matéria.


Notas

  1. O depósito obrigatório é previsto no Regulamento e configura verdadeira tradição do direito brasileiro. Trata-se do depósito necessariamente realizado para que a Receita Federal possa proceder ao desembaraço aduaneiro de um determinado bem (mercadoria) entrado no território aduaneiro nacional. Logo, etapa que antecede a nacionalização do bem, daí dizer-se um depósito obrigatório. Embora determinado por lei em sentido estrito, este depósito possui caráter contratual, na medida em que os depositários agem como contratados, empresa concessionárias de serviços públicos que atuam na zona primária alfandegária, tanto nas áreas vinculadas aos portos como nos próprios aeroportos, nestes por meio da INFRAERO, entidade de índole estatal.
  2. Responsabilidade civil, t.1, p. 397, n. 145
  3. Peso este, a bem da verdade, já previstos pelo ordenamento jurídico brasileiro desde tempos de antanho, sendo a legislação do consumidor mais útil no que diz respeito ao trato da questão do prazo prescricional, sobretudo o prazo de cinco anos para o exercício da pretensão, de que trata o artigo 27.
  4. Entende-se por equiparado, por exemplo, o segurador da carga que, ao pagar a indenização de seguro ao proprietário e depositante, credor original da obrigação de depósito e consumidor de serviço oferecido pelo depositário, torna-se, por força de lei e do contrato, amplamente sub-rogado em sua pretensão original, em todos os seus direitos e ações, incluindo-se neste rol os de índole consumerista, até mesmo em homenagem ao princípio da proporcionalidade e o da isonomia.
  5. Responsabilidade civil. 8ª ed. Rev e Ampl. São Paulo : Saraiva, 2003, p. 428
  6. Os advogados do Réu ousam dizer que o CDC tem primazia ao CC, por se tratar de um diploma principiológico, assim deve ser aplicado direta e não apenas subsidiariamente e, havendo conflito, com preferência sobre toda e qualquer outra regra legal, salvo se constitucional.
  7. Vol.III, pp. 229-30
  8. p. 231
  9. Texto inspirado e reproduzido em grande parte, com pequenas adaptações, do termo de vistoria aduaneira (oficial) n.º 038/2008, da Receita Federal (Santos), Processo Administrativo: 11128.002166/2008-14, de 20.5.2008, da lavra do Sr. Auditor Fiscal Paulo R. Guimarães, que afastou a fortuidade pelo extravio e condenou o depositário pelo sinistro, responsabilizando-o integralmente pelos prejuízos.
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Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique. Depositários de cargas e questões polêmicas nas lides judiciais.: A responsabilidade civil e o não reconhecimento do prazo prescricional trimestral em favor dos depositários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2782, 12 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18437. Acesso em: 22 dez. 2024.

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