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Depoimento sem dano.

O olhar interdisciplinar na compreensão do delito e o respeito à dignidade da pessoa humana na inquirição de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual

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25/04/2011 às 08:07
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6 Depoimento Sem Dano: o projeto.

Idealizado pelo Juiz de Direito Dr. José Antonio Daltoé Cezar, o projeto pretende, nos casos de depoimento de crianças e adolescentes vítimas e/ou testemunhas de abuso sexual, retirá-los do ambiente repleto de formalismo de uma sala de audiências, que conta com a presença do juiz, dos representantes da acusação e da defesa, e geralmente também do abusador, e transferi-los para um ambiente propício para a inquirição.

Tal projeto prevê a criação de uma sala confortável, tranqüila e pacífica, um rapport ideal, onde o depoente possa sentir-se à vontade, sem constrangimentos. O ambiente receptivo dessa sala possui como principal "instrumento" o profissional de qualidade técnica e humana capacitado para determinada função. Isso tudo para evitar perguntas inapropriadas, agressivas e impertinentes por parte dos operadores do Direito e que possam aumentar significativamente a revitimização. Segundo Rovinski e Stein (2009 p.71) "[...] para facilitar a recuperação de fatos guardados na memória não bastam recursos cognitivos diferenciados de acesso a informação, mas, também, a criação de um ambiente acolhedor ao entrevistado".

A sala deve possuir um sistema de áudio e vídeo interligado com outra sala onde se encontram o Juiz, o Promotor, advogado, réu e serventuário da justiça, que acompanham o depoimento através do vídeo ou, se possível, através de um vidro onde só é possível a visão externa, e que podem interagir com o profissional que faz a inquirição pelo sistema de áudio que o entrevistador carrega consigo, impossibilitando o mesmo áudio por parte do entrevistado. A gravação é extremamente relevante, considerando que alguns detalhes cruciais só são detectados a posteriore, quando da análise do depoimento.

As crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, protagonistas no projeto "Depoimento Sem Dano", carregam consigo elevado abalo psíquico decorrente da vitimização. "Assim, a habilidade do entrevistador em abordar essa criança, conhecendo seus limites e potencialidades, é condição sine qua non para a obtenção de dados mais detalhados e acurados, evitando uma atitude sugestiva para a produção de prova esperada" (ROVINSKI; STEINS, 2009 p.72).

O profissional responsável pela inquirição é, geralmente, psicólogo ou assistente social, que deve estudar o processo, o meio social onde ocorreu o delito, a família do delinqüente e da vítima, e ser capacitado para, através da escuta da criança e/ou do adolescente, extrair os dados necessários sem causar danos psíquicos ao entrevistado.

Para que os objetivos do projeto sejam alcançados com maior facilidade, importante é que o técnico entrevistador – assistente social ou psicólogo – facilite o depoimento da criança. Para isso, é desejável que possua habilidade em ouvir, demonstre paciência, empatia, disposição para o acolhimento, assim como capacidade de deixar o depoente à vontade durante a audiência. (CEZAR, 2007 p. 66)

No acolhimento inicial (a chegada do depoente antes da audiência), o projeto pretende evitar o encontro do réu com a vítima. O responsável pela inquirição deve passar um certo tempo (que geralmente é cerca de 15 minutos) com o depoente para garantir a sua confiança e, principalmente, observar o seu estado psíquico, objetivando a tranqüilidade da vítima ou testemunha para que possa relatar os fatos com todas as informações essenciais.

Após, presta o técnico à criança e seu responsável os esclarecimentos necessários sobre os papéis que cada um deles exercerá durante a realização do depoimento – Juiz, Promotor de Justiça, Advogado, técnico e depoente. Deve também o profissional da inquirição explicar-lhes o motivo dela (vítima ou testemunha de abuso sexual) estar protegida.

Durante a inquirição, é dever do profissional responsável manter seu próprio controle emocional e deixar a vítima exalar seus sentimentos e emoções, pois a gravação em áudio e vídeo poderá ser anexada ao processo, para que os que ele apreciarem possam observar as emoções do depoente, muitas vezes, impossíveis de serem repassadas em palavras escritas.

É extremamente relevante, além do contexto onde ocorreu o fato, examinar o intervalo de tempo do momento do fato até a inquirição. Esse é um dos principais desafios a serem enfrentados, pois na grande maioria dos casos, esse intervalo de tempo é muito grande, e a vítima ou testemunha acaba esquecendo-se de algumas situações essenciais para caracterizar o abusador como criminoso e condená-lo pelo delito.

Após o término da audiência, o técnico permanece com a criança ou adolescente e sua família, com o sistema de gravação desligado, realizando a devolução do depoimento e coleta de assinaturas de maneira responsável e tranqüila, para que, se caso necessário o retorno do depoente, este deve ter a certeza da segurança e responsabilidade do "Depoimento Sem Dano", deixando uma boa impressão capaz de abrir a possibilidade para posterior contato.

Daltoé Cezar (2007 p. 62), idealizador do projeto, destaca alguns itens como sendo os principais objetivos do projeto:

Redução do dano durante a produção de provas em processos judiciais, nos quais a criança/adolescente é vítima ou testemunha; a garantia dos direitos da criança/adolescente, proteção e prevenção de seus direitos, quando, ao ser ouvida em Juízo, sua palavra é valorizada, bem como sua inquirição respeita sua condição de pessoa em desenvolvimento; Melhoria na produção de prova produzida.

De maneira célebre, o ilustre idealizador do projeto "trocou as lentes dos óculos" do Direito que a maioria dos juízes possuem, com uma visão estática e normativa, que caracterizam o crime apenas como algo ilícito, que foge as normas da constituição. Daltoé Cezar soube reconhecer o contexto social de cada fato e as condições físicas e mentais da vítima, isto é, colocou as "lentes" da criminologia, que trata o crime como um problema individual e social, e que busca em disciplinas auxiliares argumentos que possam ajudar a entender e comprovar os fatos.


7 Considerações Finais.

O direito, como ordenamento jurídico, é estático, normativo e dogmático. Ao ingressar dentro desse sistema, os operadores do direito passam a agir de acordo com esse dogmatismo e, geralmente, não buscam auxílio em outras disciplinas para chegar às soluções eficazes nos mais diversos tipos de processos.

Daltoé Cezar soube reconhecer as dificuldades nas soluções de conflito que o caráter mecânico do direito não consegue suplantar. Soube também, de maneira célebre, reconhecer a situação da política brasileira na atualidade. Proselitismos políticos e discursos de tom pernóstico substituem ações plausíveis que objetivam o bem comum, transformando a democracia decaída em demagogia das multidões rude e ignaras.

Ao elaborar uma sala para inquirição de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de abuso sexual, com uma decoração diferenciada, brinquedos, e com o auxílio de um psicólogo ou assistente social para realizar a entrevista, Daltoé Cezar reconhece o estado de desenvolvimento psicológico que se encontra a criança e, principalmente, reconhece a gravidade do crime de abuso sexual e a importância da reinserção da vítima na sociedade.

Destaca-se o fato desse projeto ir ao encontro dos três suportes básicos do novo modelo de Ciência Penal: comunicativo – por buscar o contato de profissionais especializados com a vítima e/ou testemunhas, para que o dano psicológico seja o menor possível -, resolutivo – por objetivar a resolução do problema na sociedade – e participativo – pois prima pela importante participação da vítima na culpabilização do delinqüente.

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Em síntese, o "Depoimento sem Dano" é a inovação necessária no sistema jurídico atual, pois olha o crime como um fenômeno individual e coletivo, reconhece a necessidade de outras disciplinas para sua explicação e compreensão e objetiva diminuir ao máximo possível a vitimização secundária, respeitando a dignidade da pessoa humana e, desta forma, passa a atender as exigências da sociedade moderna, contribuindo de maneira significativa para tornar o judiciário um sistema íntegro, leal e coerente com os cidadãos.


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Sobre o autor
André Frandoloso Menegazzo

Estudante; Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Meridional - IMED - de Passo Fundo/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEGAZZO, André Frandoloso. Depoimento sem dano.: O olhar interdisciplinar na compreensão do delito e o respeito à dignidade da pessoa humana na inquirição de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2854, 25 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18930. Acesso em: 19 abr. 2024.

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