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Reequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão de uso de bem público para geração de energia elétrica

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19/08/2011 às 15:55

Resumo:


  • O contrato de concessão de uso de bem público envolve a exploração de potencial hidráulico para produção de energia elétrica por produtores independentes, sob pagamento de uso do bem, com possibilidade de reequilíbrio econômico-financeiro.

  • Existem diferenças significativas entre a concessão de uso de bem público e a concessão de serviço público, especialmente em termos de remuneração e obrigações, influenciando diretamente a gestão e os riscos assumidos pelos concessionários.

  • O princípio da boa-fé objetiva é aplicável aos contratos administrativos, influenciando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro e permitindo ajustes contratuais em face de eventos extraordinários que impactem as condições originais do contrato.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. Da boa-fé objetiva aplicável aos contratos administrativos

A celebração do contrato de concessão de uso de bem público entre a Administração Pública e o concessionário estabelece, entre as partes contratantes, uma relação de confiança recíproca, em que cada uma obriga-se a cumprir com lealdade aquilo que foi pactuado.

A Lei nº 9.784/99, nos artigos 2º, parágrafo único, inciso IV, e 4º, inciso II, ressalta a necessidade de observância da boa-fé no âmbito do Direito Administrativo.

Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único: Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

[...]

IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé.

Art. 4º. São deveres do administrado perante a Administração, sem prejuízo de outros previstos em ato normativo:

[...]

II – proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé;

[...]

A boa-fé objetiva pode ser conceituada como uma espécie de modelo ou regra de conduta, um princípio jurídico, de conteúdo indeterminado, que se caracteriza pela observância de deveres anexos ou de proteção. Verdadeiro arquétipo social que impõem a atuação dos contratantes de acordo com os padrões de probidade, honestidade, lealdade, correção, assistência, informação, sigilo, etc., de forma a assegurar a legítima confiança que uma parte deposita na outra no âmbito da relação contratual.

Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias [17] assim explicam o sentido da boa-fé objetiva:

Esse dado distintivo é crucial: a boa-fé objetiva é examinada externamente, vale dizer, a aferição dirige-se à correção da conduta do indivíduo, pouco importando a sua convicção. Não devemos observar se a pessoa agiu de boa-fé, porém de acordo com a boa-fé. Ou seja: há de avaliar-se qualquer comportamento em conformidade com padrões sociais vigentes, pouco importando o sentimento que animou o agente. O contrário da boa-fé objetiva não é a má-fé, mas ausência da boa-fé. De fato, o princípio da boa-fé encontra sua justificativa no interesse coletivo de que as pessoas pautem seu agir pela cooperação e lealdade, incentivando-se o sentimento de justiça social, com repressão a todas as condutas que importem em desvio dos parâmetros de honestidade e retidão.

[...]

Em perfeita síntese, EUGÊNIO KRUCHEWSKY sustenta, corretamente, que a boa-fé objetiva "afirma-se como um comportamento leal, uma atitude de efetiva colaboração com o direito do outro". Enfim, em síntese apertada, trata-se de exigir que todas as partes de uma relação obrigacional "tenham uma atitude pró-ativa, zelando pela realização do direito alheio, a fim de que tudo quanto programado (...) seja efetivamente atingido".

O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a aplicação do princípio da boa-fé objetiva às relações de direito público. Vejamos.

Recurso especial. Direito administrativo. Tratamento médico em cuba (retinose pigmentar). Embargos de declaração. Recorrente que não define nem demonstra a omissão. Súmula nº 284/STF. Artigo 3º, parágrafo 1º, da lei nº 8.437/92. Deficiência nas razões recursais. Súmula nº 284/STF. Liminar concedida para realização de tratamento médico em cuba. Ação mandamental julgada improcedente. Restituição. Incabimento. Oscilação jurisprudencial. Boa-fé objetiva. Segurança jurídica. Direito à saúde. Irrepetibilidade de prestação de caráter alimentar.

[...]

3. É incabível o pedido de restituição de valores despendidos pelo erário, por força de liminar concedida em mandado de segurança posteriormente julgado improcedente, para tratamento de doença grave - retinose pigmentar - em Havana, Cuba, se a pretensão era reiteradamente acolhida no âmbito desta Corte Superior à época da concessão da tutela de urgência e se o tratamento era reputado indispensável para evitar a cegueira completa dos recorridos.

Inaplicabilidade da Súmula nº 405/STJ.

4. Em casos tais, é de se afirmar efetivamente existente a boa-fé objetiva, induvidosamente aplicável às relações entre o particular e o Estado, não podendo os recorridos, após consumado o tratamento médico de urgência, ser condenados ao ressarcimento em função de posteriores oscilações jurisprudenciais sobre a matéria, o que não se ajusta aos postulados constitucionais do direito à saúde, segurança jurídica, estabilidade das relações sociais e dignidade da pessoa humana, próprios do Estado Social em que vivemos e fruto da opção garantista do legislador constitucional originário.

[...]

(REsp 950.382/DF, Rel. Ministro Luiz Fux, Rel. p/ Acórdão Ministro Hamilton Carvalhido, Primeira Turma, julgado em 14/04/2011, DJe 10/05/2011)

Administrativo. Contrato De Prestação De Serviços. Cumprimento Das Obrigações. Cobrança Judicial. Princípio Do Não Enriquecimento Ilícito. Pagamento Devido.

1. Apesar do TCU ter proferido decisão mandando anular o contrato, houve uma segunda decisão da mesma Corte de contas anulando esta primeira, em razão do descumprimento do princípio do devido processo legal,

2. A alegação do recorrente de que a decisão do TCU anulou o contrato por ilegalidade, e portanto, descaberia pagamento ao recorrido pelos serviços irregularmente prestados não merece prosperar pois esta decisão foi revista pela própria Corte de contas.

3. Se o Poder Público continuou recebendo a prestação de serviços pelo recorrido sem se opor, não pode, agora, valer-se de disposição legal que prestigia a nulidade do contrato porque isso configuraria uma tentativa de se valer da própria torpeza, comportamento vedado pelo ordenamento jurídico por conta do prestígio da boa-fé objetiva (orientadora também da Administração Pública).

4. Recurso especial a que se nega provimento.

(REsp 1155273/RJ, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 28/09/2010, DJe 15/10/2010)

Também o Supremo Tribunal Federal defendeu a aplicação da boa-fé objetiva às relações jurídicas constituída no âmbito do direito público.

Mandado de segurança. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidada quanto à matéria versada na impetração. Possibilidade, em tal hipótese, de o relator da causa mandamental decidir, monocraticamente, a controvérsia jurídica. Competência expressa e regimentalmente a ele delegada pela suprema corte (ristf, art. 205, "caput", na redação dada pela emenda regimental nº 28/2009). Decisão judicial transitada em julgado que reconhece a incorporação, à remuneração da parte impetrante, da vantagem pecuniária questionada pelo TCU. Integral oponibilidade da "res judicata" ao Tribunal de Contas da União. Conseqüente impossibilidade de desconstituição, na via administrativa, da autoridade da coisa julgada. Existência, ainda, no caso, de outro fundamento constitucionalmente relevante: o princípio da segurança jurídica. A boa-fé e a proteção da confiança como projeções específicas do postulado da segurança jurídica. Situação de fato – já consolidada no passado – que deve ser mantida em respeito à boa-fé e à confiança do administrado, inclusive do servidor público. Necessidade de preservação, em tal contexto, das situações constituídas no âmbito da administração pública. Doutrina. Precedentes. Deliberação do tribunal de contas da união que implica supressão de parcela dos proventos do servidor público. Caráter essencialmente alimentar do estipêndio funcional. Precedentes. Mandado de segurança deferido

. - O Tribunal de Contas da União não dispõe, constitucionalmente, de poder para rever decisão judicial transitada em julgado (RTJ 193/556-557) nem para determinar a suspensão de benefícios garantidos por sentença revestida da autoridade da coisa julgada (RTJ 194/594), ainda que o direito reconhecido pelo Poder Judiciário não tenha o beneplácito da jurisprudência prevalecente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, pois a "res judicata" em matéria civil só pode ser legitimamente desconstituída mediante ação rescisória. Precedentes. - Os postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público (RTJ 191/922, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES), em ordem a viabilizar a incidência desses mesmos princípios sobre comportamentos de qualquer dos Poderes ou órgãos do Estado (os Tribunais de Contas, inclusive), para que se preservem, desse modo, situações administrativas já consolidadas no passado. [...]

(MS 27962, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 19/03/2010, publicado em DJe-055 DIVULG 25/03/2010 PUBLIC 26/03/2010)

A boa-fé objetiva é um standard ético-jurídico que orienta a conduta das partes em uma relação jurídica, segundo critérios de lealdade, confiança, transparência e colaboração.

Ademais, possui também função corretiva nas relações jurídicas. A ocorrência de eventos extraordinários, que alterem as condições inicialmente pactuadas e que ocasionem a oneração excessiva de uma das partes enseja a revisão contratual, objetivando reequilibrar a equação econômico-financeira do contrato.


5. Do Equilíbrio Econômico Financeiro do Contrato de Concessão de Uso de Bem Público

Fundamental procedermos à análise do instituto do equilíbrio econômico-financeiro, que consiste em uma relação de paridade, de simetria relativamente às obrigações e às vantagens assumidas pelos contratantes no âmbito de um contrato administrativo.

Marçal Justen Filho [18] define o instituto do equilíbrio econômico-financeiro como:

A expressão que indica uma espécie de relação entre encargos e retribuições que o contrato administrativo gera para as partes. Significa que, em um contrato administrativo, os encargos correspondem (equivalem, são iguais) às retribuições. A expressão equilíbrio esclarece que o conjunto dos encargos é a contrapartida do conjunto das retribuições, de molde a caracterizar uma equação – sob prisma puramente formal.

O equilíbrio econômico-financeiro corresponde à equivalência existente entre os encargos e as retribuições oriundos do contrato administrativo. Modificadas as condições iniciais da avença, havendo encargos adicionais ou benéficos que extrapolem o previsto no contrato, haverá a necessidade de restabelecer o equilíbrio inicial.

A quebra do equilíbrio deve ser analisada diante do caso concreto, em virtude de dificuldade de se estabelecer, teoricamente, quais as situações poderiam ensejar a necessidade de revisão.

Marçal Justen Filho [19] enumera três requisitos necessários para que se proceda à recomposição da equação original: a) comprovação da efetiva quebra do equilíbrio; b) demonstração de que o rompimento do equilíbrio derivou da alteração das condições inicialmente previstas; c) o evento causador do desequilíbrio deve ser extraordinário, de cunho imprevisível ou de efeitos incalculáveis.

Em primeiro lugar, tem de comprovar-se a ocorrência da quebra propriamente dita da equação econômico-financeira. Isso se faz pela comparação entre as projeções originais sobre a execução. A quebra da equação se evidencia quando provada a frustração das expectativas concretas formuladas acerca dos resultados econômicos da avença.

Em segundo lugar, tem de comprovar-se que essa frustração derivou da ampliação dos encargos e (ou) redução dos benefícios originalmente previstos.

Em terceiro lugar, deve evidenciar-se que a ampliação dos encargos e (ou) a redução dos benefícios configuram-se como eventos extraordinários, de cunho imprevisível ou de efeitos incalculáveis.

As partes contratantes, ao realizar a avença, estabelecem direitos e obrigações recíprocos. No caso do contrato de concessão de uso do bem público – potencial hidráulico – a União cede o uso do potencial hidráulico ao particular, mediante remuneração pelo uso do bem público. Cabe ao concessionário explorar o aproveitamento hidráulico mediante a construção da usina hidrelétrica, a fim de gerar energia elétrica para comercialização. À União, por sua vez, compete colocar à disposição do concessionário a fruição do potencial hidráulico.

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Nesse sentido, as lições de Daniel Esteves [20],

Sem embargo de a Administração concedente não se relacionar diretamente com as condições de operação comercial do empreendimento, é de se reconhecer que os contratos de concessão de uso de potenciais hidráulicos estabelecem prestações recíprocas entre os contratantes, e que tais prestações guardam uma correlação econômica entre si. Obviamente, as estipulações específicas de cada contrato não são fruto do acaso. Ao modelar uma concessão, a Administração, no âmbito dos estudos de viabilidade, formula análise e cálculos que permitem projetar as características do empreendimento e, com base nesses projetos, determinar o prazo necessário para a amortização dos investimentos a serem feitos pelo particular e o valor adequado para pagamentos pelo uso do bem público, de forma, ao mesmo momento, a viabilizar a competitividade futuro concessionário no mercado de energia, propiciar condições para que forneça energia ao mercado a preços reduzidos, preservando a modicidade das tarifas ao consumidor, e garantir um retorno financeiro razoável ao poder concedente (por meio dos pagamentos pelo uso do bem público) para outorgar a exploração de cada AHE. De seu lado, o concessionário, ao formular sua proposta para a licitação da concessão, leva em consideração todos esses fatores, comprometendo-se com condições que, em circunstâncias normais, deveriam resultar na obtenção do benefício econômico almejado.

Diante da ocorrência de fatos extraordinários, surge, então, a possibilidade de revisão das condições contratuais inicialmente previstas, a fim de promover o reequilíbrio entre os encargos e retribuições de cada contratante.

Importante elucidar que apenas os eventos decorrentes da álea extraordinária ensejam a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro. Os riscos normais, inerentes à atividade empresarial, não se enquadram nesta hipótese.

Conforme apontado por Justen Filho, não existe critério objetivo e predeterminado para diferençar a álea ordinária da extraordinária, devendo a análise ser feita diante de cada caso concreto.

De acordo com o art. 65, II, d da Lei 8.666/93, os fatos que permitem o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro devem ser imprevisíveis, ou previsíveis, porém de consequências incalculáveis.

Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:

[...]

II - por acordo das partes:

[...]

d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)

Assim, não apenas o fato imprevisível, mas também o fato previsível, mas de consequências incalculáveis impedem que o agente possa considerar seus efeitos quando da formulação da sua proposta, e autorizam a restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro.

A jurisprudência tem se pronunciado sobre os fatos imprevisíveis da seguinte forma:

Administrativo. Contrato administrativo de obra pública. Nova casa de detenção do carandiru. Força maior, caso fortuito, interesse público e suspensão de execução contratual motivada por grave perturbação interna. Contrato perfectibilizado à luz do dl n. 2.300/86. Eventos rescisórios ocorridos já na vigência da lei n. 8.666/93. Princípios da irretroatividade das leis e da aplicação imediata dos diplomas legislativos. Incidência do art. 79, § 2º, da lei n. 8.666/93.

[...]

7. A imprevisibilidade importante aos contratos administrativos diz não apenas com a ocorrência de certo fato, mas também com os efeitos de certo fato (casos em que a ocorrência era previsível, mas a amplitude das conseqüências não).

[...] (STJ, REsp 710.078/SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, 2ª T., julgado em 23/03/2010, DJe 12/04/2010)

Administrativo. Licitação. Revisão contratual. Art. 65, ii, "d", da Lei de Licitações. Efeitos.

[...]

Quanto à teoria da imprevisão invocada pela autora (cf. art. 65, II, d, da Lei de Licitações), não socorre a requerente. A teoria, segundo Odete Medauar, significa o seguinte: circunstâncias que não poderiam ser previstas no momento da celebração do contrato, se vêm a modificar profundamente sua economia, "dificultando sobremaneira sua execução, trazendo déficit ao contratado", tem o contratado (o particular) o direito de rever suas condições, para superar as dificuldades, a fim de preservar a continuação do contrato e o equilíbrio econômico-financeiro da avença (Direito administrativo moderno, Revista dos Tribunais, 2004, p. 262). Tais circunstâncias imprevistas, além de serem supervenientes à celebração do contrato, devem ultrapassar a normalidade, ser excepcionais, extraordinárias, causando um desequilíbrio muito grande no contrato (cf. Maria Sylvia Di Pietro, Direito administrativo, Atlas, 2007, p. 264), o que não ocorre na situação concreta.

[...]

Ora, no caso dos autos não há sequer falar na imprevisão contratual, pois a teoria da imprevisão consiste no reconhecimento de que eventos novos, imprevistos e imprevisíveis pelas partes, e a elas não imputáveis, refletindo sobre a economia ou a execução do contrato , autorizam a sua revisão, para ajustá-lo às circunstâncias supervenientes. Trata-se da aplicação da cláusula rebus sic stantibus, elaborada pelos pós-glosadores, que esposa a idéia de que todos os contrato s dependentes de prestações futuras incluíam cláusula tácita de resolução, se as condições vigentes se alterassem profundamente. Tal idéia se inspirava num princípio de eqüidade, pois se o futuro trouxesse um agravamento excessivo da prestação de uma das partes, estabelecendo profunda desproporção com a prestação da outra parte, seria injusto manter-se a convenção, já que haveria indevido enriquecimento de um e conseqüente empobrecimento do outro...

[...]

Todos os autores acima referidos admitem sob os mais variados fundamentos doutrinários, a aplicação da teoria da imprevisão, mas apenas em circunstâncias excepcionais, que não se verificam no caso dos autos, ou seja, somente a álea econômica extraordinária e extracontratual, desequilibrando totalmente a equação econômica estabelecida pelos contraentes justifica a revisão do contrato com base na cláusula rebus sic stantibus. Outro não é o entendimento adotado pela jurisprudência uniforme da Suprema Corte, em todas as oportunidades em que se manifestou sobre a tormentosa questão, com reflete o aresto relatado pelo eminente e saudoso Ministro ALIOMAR BALEEIRO, cuja cultura jurídica é por todos reconhecida, ao votar no RE n. 71.443-RJ, verbis: "Rebus sic stantibus - Pagamento total prévio. 1. A cláusula rebus sic stantibus tem sido admitida como implícita somente em contrato s com pagamentos periódicos sucessivos de ambas as partes ao longo de prazo dilatado, se ocorreu alteração profunda inteiramente imprevisível das circunstâncias existentes ao tempo da celebração do negócio..." (in RTJ 68/95. No mesmo sentido RTJ: 35/597; 44/341; 46/133; 51/187; 55/92; 57/44; 60/774; 61/682; 63/ 551; 66/561; 96/667; 100/140; 109/153; 110/328 e 117/323). (TRF 4ª R, AC 200871000116820, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, 3ª T, D.E. 02/06/2010)

Vale destacar que diversos contratos de concessão de uso de bem público atribuem o risco quanto às situações imprevistas ao agente. Assim ocorre, por exemplo, quanto a dificuldades ambientais [21].

Contudo, ainda que o contrato de concessão impute, expressamente, o risco de obtenção da licença ambiental ao empreendedor, deve-se ter em mente que o risco imputado é aquele previsível, normal e corriqueiro a qualquer empreendimento que se encontre na mesma situação.

No setor elétrico são frequentes os casos em que os empreendimentos hidrelétricos apresentam dificuldades na obtenção das licenças ambientais. Não se pode dizer, portanto, que esta situação é imprevisível. Entretanto, apesar de previsível, pode ter efeitos não mensuráveis.

Não se está afirmando que todo e qualquer caso de demora ou atraso na obtenção das licenças dará ensejo á revisão contratual. Pelo contrário, a análise deve ser feita caso a caso, para que se possa avaliar as peculiaridades de cada situação.

As situações extraordinárias (imprevisíveis, ou previsíveis, mas de consequências incalculáveis), devidamente comprovadas, e desde que demonstrado que o empreendedor não concorreu de nenhuma forma para sua ocorrência, que gerem grave modificação das condições contratuais, mas não constituam impedimento absoluto para a realização do objeto contratual, autorizam a restauração do equilíbrio econômico-financeiro.

Quanto ao cabimento da aplicação do reequilíbrio econômico-financeiro em relação ao contrato de concessão de uso de bem público outorgado ao PIE para produção de energia elétrica cabem algumas considerações.

A Lei 8.987/95, em seu art. 9° [22], prevê a revisão da tarifa como forma de restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro nos contratos de concessão de serviço público.

A revisão tarifária é instrumento que não se aplica aos contratos de concessão de uso de bem público (potencial hidráulico), já que não há tarifa a ser paga ao concessionário do bem público, mas este remunera seu investimento mediante a comercialização da energia gerada, em relação à qual o Poder Concedente não interfere no preço da energia comercializada.

De acordo com a distinção feita alhures, a relação existente entre o produtor independente de energia como concessionário que utiliza um bem público – potencial hidráulico – e a União, não se confunde com a relação existente entre o produtor independente e o ACR ou o ACL, relativa à comercialização da energia produzida.

O Poder Concedente não influi no valor da comercialização da energia elétrica pelo Produtor Independente. Antes da edição da Lei 10.848/2004, a venda da energia era feita a qualquer agente do setor elétrico, em condições livremente pactuadas, não cabendo ao Poder Concedente qualquer interferência. Posteriormente, com a inauguração do Novo Modelo do Setor Elétrico, as distribuidoras passaram a adquirir a energia exclusivamente no Ambiente de Contratação Regulado – ACR, por meio dos leilões, sendo o preço da energia fixado no certame licitatório. Já no Ambiente de Contratação Livre – ACL, o concessionário pode comercializar a energia aos demais agentes, segundo a livre pactuação do preço da mesma.

Dessa forma, em razão de o Poder Concedente não interferir no valor da energia comercializada pelo concessionário, não cabe a revisão contratual em relação ao valor da energia elétrica vendida em leilão, e muito menos, quanto aos valores negociados no ACL.

O entendimento de Daniel Esteves [23] corrobora a tese da impossibilidade da revisão do valor da energia comercializada pelo produtor independente no bojo do contrato de concessão de uso de bem público.

Tal configuração, por um lado, evidencia que não cabe falar em revisão contratual via alteração tarifária nestes contratos, ao contrário das concessões de serviço público, simplesmente porque os valores de venda da energia praticados por cada concessionário não estão ao alcance do poder concedente. Por outro lado, a relativa autonomia do concessionário em suas relações comerciais com os compradores de energia, que isola tais relações da intromissão da Administração Pública, tem como conseqüência o afastamento desta em relação às condições econômicas-operacionais do empreendimento, cabendo ao concessionário, em condições normais, suportar os riscos relativos a este aspecto. Nessa ordem de idéias, eventuais controvérsias referentes à compra e venda de energia devem ser tratadas e solucionadas pelas partes envolvidas, á margem, portanto, do âmbito dos contratos de concessão de uso de bem público, a menos que, por alguma razão, os motivos que levam ao conflito se relacionem diretamente com a outorga ou a execução de referidos contratos.

A revisão tarifária não é aplicável às concessões de uso do potencial hidráulico, tendo em vista a incompatibilidade com este tipo de contrato. Entretanto, também nos contratos de concessão de uso bem público, em especial naqueles em que o uso do potencial hidráulico é cedido ao particular para a exploração e produção de energia elétrica, deve ser preservada a equivalência entre os encargos e vantagens atribuídos aos contratantes.

A Constituição Federal, no art. 37, XXI, estabelece para os casos de licitação pública de obras, serviços, compras e alienações, a obrigatoriedade de respeito às condições originais da proposta.

Art. 37 [...]

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

[...]

Portanto, modificadas as condições existentes ao tempo da proposta, deve ser respeitada a equação econômico-financeira original dos contratos administrativos, garantia esta assegurada pela própria Constituição Federal.

Edilson Pereira Nobre Júnior [24] destaca a preocupação legislativa com o equilíbrio das partes no contrato administrativo. Vejamos:

A posição equilibrada das partes no contrato administrativo aparece, nos últimos anos, como umas das preocupações mais sentidas do legislador. Mantendo tradição inaugurada pelo art. 167, II, da Constituição pretérita, o Constituinte de 1988, em duas passagens, consagrou tal ideal. Na primeira delas, de forma implícita, ao tratar do princípio da moralidade, impeditivo do enriquecimento sem causa pela Administração. Na outra, de maneira inequívoca, figurou no art. 37, XXI, quando, a pretexto de estatuir a obrigatoriedade de licitação, aludiu a cláusulas destinadas a estabelecer obrigações de pagamento, com a manutenção das condições efetivas da proposta.

No plano infraconstitucional, existe previsão explícita na Lei 8.666/93 (arts. 58, § 2°, e 65, II, d) e, no particular da concessão de serviço público, na Lei 8.987/95 (art. 9°, §§ 2° a 4°).

Mais uma vez, vale destacar que a hipótese aqui acolhida é a da aceitação do reequilíbrio econômico-financeiro apenas em relação ao contrato de concessão de uso de bem público, seja para postergar a data de início do pagamento de UBP ou para alteração do prazo da concessão.

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Sobre a autora
Michele Franco Rosa

Procuradora Federal em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Michele Franco. Reequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão de uso de bem público para geração de energia elétrica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2970, 19 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19807. Acesso em: 22 dez. 2024.

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