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Investigação de "casamentos brancos" e a reserva da intimidade da vida privada.

Uma análise do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17 de dezembro de 2009

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30/09/2011 às 17:07
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3.CASAMENTOS BRANCOS

"Casamentos brancos" ou Casamentos por Conveniência é a outra temática presente no Acórdão em análise.

Por casamentos por conveniência entende-se atos matrimoniais falsos, com intuito de uma ou ambas as partes obterem algum benefício, sendo os casos mais comuns de obtenção de autorização de residência ou visto de residência e nacionalidade [21].

A previsão legal encontra-se no art. 186º da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, no qual diz ser o casamento por conveniência aquele em que o único objetivo é o de proporcionar obtenção de autorização ou visto de residência, sendo punido com pena de prisão de 1 a 4 anos [22].

Também encontramos o casamento por conveniência previsto na Lei 38/2009, de 20 de Julho (Lei Quadro da Política Criminal), que pretende reduzir, prevenir e reprimir a criminalidade promovendo a defesa de bens jurídicos, proteção das vítimas e reintegração do agente na sociedade (conforme art. 1º). Tendo em conta a gravidade dos crimes e a necessidade de evitar a sua prática futura que encontramos no art.4º/f desta lei a previsão do casamento branco enquadrado como crime de investigação prioritária ao lado de crimes como terrorismo, tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tráfico e mediação de armas.


4.ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL DE 17 DE DEZEMBRO DE 2009.

4.1.PONTOS (FATOS) PRINCIPAIS DO ACÓRDÃO

Pedido: Recurso da sentença do Tribunal Central Administrativo de Lisboa, que julgou improcedente a ação administrativa especial, na qual se pede a anulação do ato praticado pela Subdiretora Regional de Lisboa e Vale do Tejo e Alentejo, de 6 de Agosto de 2008, que indeferiu o pedido do cartão de residência com dispensa de visto, e que tal ato seja substituído por outro que ordene a emissão de cartão de residente requerido por "A".

4.1.1.MATÉRIA DE FATO

- "A" (autora), nacionalidade brasileira, contraiu casamento civil, em 4 de Julho de 2006, com cidadão português "B".

- No mesmo dia, pediu emissão de cartão de residente ao abrigo do art. 15º da Lei nº 37/06, de 9 de Agosto [23] que pressupõe que o requerente seja familiar de cidadão nacional, neste caso através do casamento.

- Instaurado o processo administrativo pelo órgão competente (SEF) para averiguar se a relação matrimonial invocada consubstancia uma ligação familiar efetiva, de acordo com art. 26º CRP constatou-se:

  • Em visita ao endereço falou-se com o marido e este afirmou não morar com "A" e que não sabe onde ela está;
  • Que conheceu "A" em Janeiro de 2006, no bar "D…";
  • Que foi "A" quem o pediu em casamento;
  • Que o marido podia pedir a esposa 1.500,00€ por ter casado com ela, mas que acabou por não fazer;
  • Que no dia 07.11.2006 disse aos inspetores do SEF, que "A" estava em Lisboa quando na verdade sabia que ela estava no Algarve, logo mentindo.

- Em 15 de Janeiro de 2008, "A" foi sujeita a uma entrevista, conforme prevê o art. 54º/3 do Decreto Regulamentar nº 84/2007, de 5 de Novembro [24] e o art. 56º Código de Procedimento Administrativo [25], sendo questionada sobre a existência de familiares residentes legalmente em território português, ao passo que esta respondeu que os familiares presentes são as sobrinhas, não citando o marido.

- Em Março de 2008 foi introduzido no processo a informação fornecida pelo Inspetor-Adjunto do SEF:

  • "Analisando a secção "Convívio" dos Classificados do jornal diário "Correio da Manhã", foi detectado um anúncio relativo a Faro. […] Efectuado o contacto telefónico […] para apurar a identidade da cidadã responsável pelo anúncio, foi estabelecida comunicação com uma cidadã de sotaque brasileiro […].
  • […] realizada uma acção de fiscalização à zona junto à porta do Hotel Eva, tendo sido detectada a cidadã portadora do telemóvel relativo ao referido anúncio […]".

- Era a mesma cidadã "A".

- Foram efetuadas várias diligências no sentido de averiguar e apurar, junto do requerente a existência de vida em comum, chegando a conclusão que não existe indícios de vida em comum.

- "A" foi notificada do Projeto de indeferimento sobre o pedido de cartão de residente em 07.03.2008.

- Sendo inferido pelo Tribunal Administrativo de Círculo Sul (1ª Instância) o pedido de concessão da autorização de residência em conformidade com o despacho da Subdiretora Regional do SEF.

4.1.2.ALEGAÇÕES DA AUTORA

- O único fato que poderá ter relevância na aplicação do direito é a não coabitação de "A" com o marido.

- A sentença recorrida interpreta o art. 15º da Lei 37/2006, de 9 de Agosto em conjugação com a definição legal de casamento (art. 1577º CC), sendo exigível ao cônjuge "não […] um casamento formal, mas uma efectiva relação matrimonial de facto […]".

- Nos termos dos arts. 1627º, 1628º e 1631º todos do CC é válido o casamento civil, não existindo causas de inexistência jurídica ou de anulabilidade.

- O casamento de "A" é plenamente válido e eficaz na ordem jurídica portuguesa.

- Não foi invocado quer na fundamentação do ato cuja suspensão de eficácia se requereu, que na fundamentação da sentença, que o casamento tenha sido celebrado com fraude ou simulação, não se verificando a situação do art. 31º da Lei 37/2006, de 9 de Agosto [26].

- E, as circunstâncias que determinam a recusa ou retirada dos direitos de residência têm de ser reconhecidas previamente por decisão judicial, sob pena de serem materialmente inconstitucionais (art. 1632º CC e 205º CRP), não podendo a polícia substituir-se aos tribunais na apreciação dos fatos.

- E cita o Ac. de 30 de Abril de 2009 do Tribunal Central Administrativo Sul, que considera para efeitos do art. 15º da Lei 37/2006, no seu nº 4, "[…] ser totalmente irrelevante que a ora A. não coabite com o seu marido ou que exerça o "amor" remunerado com terceiros, verificando-se que não estando dissolvido o seu casamento é familiar do marido que é cidadão nacional, não cabendo as averiguações de tais factos que se reportam à reserva da vida privada e familiar dos particulares, em violação do direito fundamental consagrado no art. 26º da CRP".

4.1.3 MATÉRIA DE DIREITO

- A sentença recorrida julgou improcedente a ação administrativa especial, que pede a anulação do ato praticado pela Subdiretora Regional do SEF.

- A recorrente alega interpretação restritiva feita na sentença ao art. 15º da Lei 37/2006, e que o art. 31º desta Lei deve ser interpretado no sentido de que as circunstâncias que poderão determinar a recusa ou retirada dos direitos de residência sejam reconhecidos previamente por decisão judicial.

- Que o art. 31º da Lei 37/2006 não exige um casamento meramente formal, mas uma efetiva relação matrimonial de fato, traduzida na plena comunhão de vida.

-O réu indefere o pedido de cartão de residência com dispensa de visto com fundamento no fato de a requerida não viver em comum com o cidadão português.

-A matéria de fato apurada demonstra que "A" e o marido vivem separados de fato, sem comunhão de vida, mesa e habitação e sem o propósito de vida em comum.

-A existência do casamento formal celebrado entre "A" e o marido cidadão português "B" não foi posta em causa pelo réu.

-A norma do art. 15º da Lei 37/2006 não pode deixar de ser analisada no contexto do diploma em que se encontra inserida, sendo a ratio legis a proteção do interesse da unidade familiar.

-Existe um imperativo legal, resultante da Lei 37/2006 no qual compete ao SEF investigar condutas que possam corresponder às situações designadas como casamentos brancos. Sendo também de sua competência averiguar quanto às solicitações de cartão de residente a existência da relação familiar.

-A situação matrimonial da recorrente não é irrelevante, mas sim questão essencial.

-A Lei 23/2007, de 4 de Julho [27] criminaliza os ditos casamentos brancos (art. 186º/1).

-Não considera irrelevantes as conclusões do SEF apuradas no processo administrativo.

-Não se vê a interferência do SEF como inconstitucional, pois os Direitos, Liberdades e Garantias não são absolutos, admitindo restrições que têm de obedecer a princípios de prossecução do interesse público, de proporcionalidade, de justiça (art. 18º e 266º/1/2 da CRP).

-A interferência do Estado Português na esfera da reserva privada e familiar dos cidadãos não viola a extensão e o alcance do conteúdo essencial do direito (art. 18º/3 CRP), limitando-se para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18º/2/ in fine CRP).

-Em conclusão, nega provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida na íntegra.

4.2 ANÁLISE DO ACÓRDÃO

O primeiro passo a ser dado foi da verificação da constitucionalidade da norma em questão, ou seja, do art. 15º da Lei 37/2006, pois é com base no não preenchimento desta norma que a Subdiretora Regional do SEF, o Tribunal Administrativo de Círculo e o Tribunal Central Administrativo negam o pedido da cidadã "A" a autorização de residência. Essa análise de constitucionalidade se dará em relação ao art. 18º da CRP, concretizando, verificamos se tal preceito está ou não de acordo com a proteção dos Direitos, Liberdades e Garantias ou se estamos diante de uma norma restritiva.

Auxiliados pelos requisitos do art. 18º/2/3 da CRP, temos que o requisito da obrigatoriedade de caráter geral e abstrato encontra-se preenchido pois que a norma refere-se a cidadãos nacionais de Estado Terceiro, não restringe a sua aplicação a cidadãos de país X ou Y em específico logo, aplica-se a um número indeterminado e indeterminável de pessoas. Não é uma lei retroativa pois foi aprovada e promulgada em 22 e 26 de Julho de 2006 respectivamente, porém só sendo aplicada aos casos ocorridos a partir de 9 de Agosto de 2006. Estando assim completo os requisitos formais do art. 18º da CRP. Quanto aos requisitos substanciais desta norma temos que para se restringir um Direito Fundamental deve-se ter uma autorização constitucional expressa para a restrição do Direito, Liberdade e Garantia, sendo que essa restrição vise proteger outro(s) Direitos Fundamentais, desde que respeite o Princípio da Proporcionalidade e o conteúdo do Direito Fundamental seja respeitado.

Quanto à reserva de lei, é imperativo a competência da Assembleia da República Portugesa ou do Governo autorizado em relação a qualquer modificação ou restrição ao diploma, visto ser essa uma transposição da Diretiva n.º 2004/38/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril, sendo esta tarefa da Assembléia.

Logo, tanto o art. 15º quanto todo o diploma encontra-se em conformidade com o art.18º da CRP pois não restringe os Direitos Fundamentais dos cidadãos, antes visam salvaguardar a ordem pública e a justiça limitados pela proporcionalidade como destaca o art. 25º da mesma, sendo estes a fundamentação da não concessão da autorização de residência em território português.

Mas esta verificação de conformidade do art. 15º da Lei 37/2006 com o art. 18º da CRP não implica que o Acórdão e sua respectiva decisão não se encontrem enfermados, pois a grande questão e a que viola o Direito, Liberdade e Garantia em causa, o Princípio da Reserva da Intimidade da Vida Privada e Familiar, está no comportamento do órgão responsável pela recepção dos pedidos de autorização de residência, o SEF. E é sobre a forma de atuação do SEF, em conjugação com o entendimento do que seja a Reserva da Vida Privada que abordaremos no próximo item, dando assim conclusão ao presente artigo.


5.CONCLUSÃO

Após verificarmos que o diploma nº 37/2006 encontra-se de acordo com os requisitos do art. 18º da CRP, não sendo este limite ao exercício dos Direitos, Liberdades e Garantias, estando assim em conformidade com o Princípio da Reserva da Intimidade, é necessário verificarmos quais os fatos que colocam em causa a proteção de tal Princípio.

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Por comunhão de vida entendemos ser no art. 1672º CC os deveres conjugais (respeito, fidelidade, coabitação e assistência), sendo estes efeitos pessoais do casamento, logo relativos à vida íntima e privada (Teoria das Três Esferas).

O Prof. Canotilho (1993), em sua Constituição anotada declara em relação ao art. 26º que o direito à reserva da intimidade analisa-se em dois direitos menores:

a) O direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar;

b) O direito a que ninguém divulgue informações que tenha sobre a vida privada familiar de outrem.

E conclui dizendo que "(…) não é fácil demarcar a linha divisória entre o campo da vida privada e familiar que goza de reserva da intimidade e o domínio mais ou menos aberto à publicidade". Porém muitas vezes essa esfera privada e íntima "cedem em conflito com o interesse ou bem público" [28].

De acordo com a interpretação descrita acima do art. 80º/2 do CC que concretiza o art. 26º da CRP temos:

a)Condição da Pessoa ou Elemento Subjetivo: tanto a cidadã "A" quanto o cidadão "B" são sujeitos comuns, não possuindo profissões que revelem uma necessidade de restrição ao direito à intimidade conforme como conclui o Acórdão de 30 de Abril de 2009 do Tribunal Central Administrativo Sul, pois é irrelevante que "A" exerça o "amor" remunerado, sendo a tal profissão impetrado a colisão entre direito de informação e direito a intimidade. Logo "A" e "B" têm uma proteção total a sua intimidade.

b)Natureza do Caso ou Elemento Objetivo: as situações concretas são pertinentes à vida a dois, pois que o fato de estar ou não em casa (prova de coabitação) releva apenas ao casal no sentido de comprovação de separação de fato ou considerar o marido como familiar ou não depende da concepção íntima de família, pois se "A" entender por família apenas os parentes, estaremos diante da noção do art. 1578º do CC em que parentes são as pessoas unidas em consequência de descendência ou de ambas procederem de progenitor comum, sendo as sobrinhas parentes em 3º grau da linha colateral.

Sendo assim, verificamos que estamos diante de matérias atinentes à vida privada, sendo indubitável o questionamento se seria ou não lícito, mesmo em nome da ordem e segurança pública uma intromissão dos órgãos públicos?

Sabemos que cabe ao SEF controlar a circulação de pessoas nas fronteiras, a permanência e a atividade de estrangeiros em território nacional [29]. Que o art. 15º da Lei nº 37/2006 nos diz que é ao SEF que deve ser feito o pedido de autorização de residência, contudo, para conceder a autorização de residência pede apenas documento comprovativo da relação familiar (certidão do registro de casamento) e prova que se encontra a cargo do cidadão europeu. Logo, estamos diante de uma comprovação formal do casamento.

Não sendo detectado nem nestes diplomas em questão e nem em nenhum outro com força infra ou supra constitucional e nem na própria CRP qualquer norma que legitime a invasão de propriedade ou mesmo o deslocamento a propriedades privadas para questionar ou verificar qualquer fato atinente à vida privada dos cidadãos, nacionais ou estrangeiros. Verificando-se assim uma omissão legal que não regulamenta nem positivamente (é permitido aos órgãos públicos fazer…) e nem negativamente (não é permitido aos órgãos públicos…), ficando estes apenas a mercê do Código de Procedimento Administrativo que diz em seu art. 56º de forma genérica, que os órgãos podem proceder às diligências que considerem convenientes para a instrução. Pois bem, tal norma deve estar pautada pela proporcionalidade e em respeito à esfera íntima tutelada pela reserva da privacidade. Não sendo lícito em nossa opinião o transplantar a reserva da intimidade mesmo em nome da ordem pública (sendo consciente de que tal opinião suporta pensamentos contrários).

Porém em relação ao caso concreto abordado pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 17 de Dezembro de 2009, consideramos que a averiguação de tais fatos por parte do SEF são verdadeiras violações ao direito à reserva da intimidade e da vida privada (art. 26º da CRP e 80º do CC), pois compreende tais matérias uma "zona de exclusão, dentro de um perímetro de reserva e discrição que nem os poderes públicos nem os particulares podem vulnerar" [30] como acolhe Canotilho (2003). Sendo imperativo e urgente a criação legislativa de parâmetros e limites específicos à atuação dos órgãos públicos quanto a este tema.

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Sobre a autora
Larissa A. Coelho

Jurista, licenciada/bacharel em Direito pela Universidade do Minho - Portugal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Larissa A.. Investigação de "casamentos brancos" e a reserva da intimidade da vida privada.: Uma análise do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17 de dezembro de 2009. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3012, 30 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20110. Acesso em: 21 dez. 2024.

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