1. INTRODUÇÃO
A nova Lei de Prisões (Lei 12.403/2011) que alterou vários dispositivos do CPP trouxe inúmeras modificações no sistema processual brasileiro, e inovou trazendo expressamente a previsão de medidas cautelares diversas da prisão que podem ser aplicadas pelo magistrado, quando cabíveis, alternativamente à prisão, deixando portanto de ser um sistema binário (acusado/investigado preso ou solto) para ser um sistema multicautelar (preso/solto sem aplicação de medidas cautelares/solto com aplicação de medidas cautelares). Inovou também, modificando o artigo 311, vedando a decretação da prisão preventiva de ofício pelo magistrado na fase policial, evitando a "contaminação" do juiz com o processo antes do início da fase processual, exigindo para tanto representação dos legitimados na fase policial:
Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
.Ocorre que o artigo 20 da Lei Maria da Penha, prevê exatamente o contrário, e não foi expressamente revogado pela Lei, como é costumeiro do legislativo brasileiro:
Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.
Seria possível na mesma ordem jurídica coexistirem ambas as disposições legais, por critérios de política criminal, admitindo-se a exceção para os casos de crimes praticados com violência doméstica ou familiar contra a mulher?
2. DESENVOLVIMENTO
De acordo com Fragoso, a Política Criminal pode ser entendida como "a atividade que tem por fim a pesquisa dos meios mais adequados para o controle da criminalidade, valendo-se dos resultados que proporciona a criminologia, inclusive através da análise e crítica do sistema punitivo vigente".
É possível então concluir que a política criminal harmoniza aspectos teóricos e práticos, e sob esta ótica seria possível admitir a coexistência de ambos os dispositivos legais supracitados, sob a justificativa de que no âmbito da aplicação da norma, e sob aspectos práticos, é necessário manter a proteção especial da Lei Maria da Penha à mulher violentada em detrimento do Princípio Acusatório. Esta é a posição da professora Alice Bianchini:
(...) não obstante ofender o sistema acusatório (já que o juiz acaba por perder a necessária posição equidistante), no momento da ponderação de interesses, há que preponderar a norma de proteção integral à mulher em situação de risco (art. 4º, LMP).
Tal posicionamento é respaldado pelas estatísticas, as quais demonstram o elevadíssimo índice de homicídios, dentre outras violências, praticados por homens cuja vítima mulher mantinha ou manteve com ele uma relação íntima de afeto.
É a clara aplicação de critérios de política criminal para admitir que a Lei especial, mesmo que anterior, possa dispor sobre instituto de direito processual de forma diferenciada, analisando aspectos técnicos e práticos.
Com todo respeito a Nobre Jurista, que vem sendo seguida por boa parte da embrionária doutrina a respeito do tema, já que a mudança na legislação ainda é muito recente, e também não há uma jurisprudência dominante a respeito do assunto, mas ousamos discordar de seu posicionamento, não fugindo da proposta do presente trabalho, mas explico os motivos de minha posição, sendo que reconheço que não encontrei em minha pesquisa quem adotasse o meu entendimento.
Além da questão da violação ao sistema acusatório, contaminando-se o magistrado, para nós a Lei Maria da Penha foi revogada pela nova lei de prisões, e é ilegal a decretação da prisão preventiva de ofício pelo magistrado.
Quando de sua criação, este dispositivo inserido na Lei Maria da Penha (artigo 20), não tinha o cunho protecionista que se quer dar a ele após a modificação da norma geral. Em verdade, o artigo 20 da Lei Maria da penha reproduziu integralmente o antigo artigo 311 do CPP. O artigo 20 da Lei Maria da Penha não trouxe um maior protecionismo a mulher vítima de violência doméstica neste aspecto, quando de sua entrada em vigência, prevendo uma exceção à regra geral do CPP, mas apenas previu a prisão preventiva do acusado/investigado da mesma forma que previa a legislação geral processual penal para os casos em que era cabível a prisão preventiva.
Não havia diferenciação sob a ótica do investigado. Era necessário o preenchimento dos mesmos pressupostos que a norma geral exigia para que fosse decretada a prisão preventiva nos casos de violência doméstica, e a mesma podia ser decretada de ofício pelo magistrado da mesma forma que também podia em casos que não fossem de violência doméstica. Em verdade, quando foi criada, a Lei Maria da Penha obedeceu à sistemática processual, especialmente no que compete à possibilidade de prisão preventiva do acusado/investigado, e não o contrário. Querer, sob a ótica de critérios de política criminal admitir a vigência concomitante de ambos os dispositivos é ir além da proteção que pretendeu o legislador quando da confecção da Lei. É um excesso. Além de não ser tecnicamente correto não tem qualquer lógica admitir a decretação da prisão preventiva de ofício do acusado de uma prática de violência doméstica tão só por se tratar de uma acusação de violência doméstica, ao contrário da norma geral. Vejamos o antigo artigo 311 do CPP, que é de 1967:
Art. 311. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial.
Vejamos agora o artigo 20 da Lei Maria da Penha:
Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.
Ora é de clareza solar que a lei Maria da penha obedeceu a regra geral do CPP ao prever a possibilidade de prisão preventiva do acusado/investigado quando de sua criação, pois o que fez foi repetir integralmente o que já previa a norma geral. Então porque, mudando-se a norma geral, deveria prevalecer a norma específica neste caso? Entendemos que não há qualquer justificativa para tanto, nem com aplicação de critérios de política criminal. A proteção excessiva não é o que pretende o direito, da mesma forma que não pretende a punição excessiva, e admitir a coexistência dos dispositivos e a diferenciação na admissão da decretação da prisão preventiva simplesmente por tratar-se de violência doméstica e familiar contra a mulher vai contra toda a nova sistemática do CPP e da Constituição, e consiste em perigosa exceção ao sistema acusatório, de onde podem surgir arbitrariedades que recaem diretamente sobre o direito de liberdade do acusado, além de constituir um grande retrocesso em matéria processual.
Ousamos então discordar dos partidários desta corrente, pois embora sedutora a posição que admite a solução do conflito através da aplicação de critérios de política criminal, admitindo a vigência simultânea de ambos os dispositivos legais sendo possível a decretação da prisão preventiva de ofício pelo magistrado na fase pré-processual com fulcro no artigo 20 da Lei Maria da penha, objetivando uma maior proteção da mulher em casos de violência doméstica, este posicionamento vai contra os próprios fundamentos da confecção da Lei Maria da Penha, que no aspecto da possibilidade de decretação da prisão preventiva reproduziu integralmente o que previa a norma geral quando da época de sua elaboração, portanto consiste em excesso inadmissível aplicar este dispositivo em detrimento da nova redação do artigo 311 do CPP.
3. CONCLUSÃO
Concluímos que o artigo 20 da Lei Maria da Penha foi derrogado pela Lei 12403/2011, e a nova redação do artigo 311 do CPP deve ser observada inclusive quando tratar-se de crime cometido com violência doméstica ou familiar contra a mulher, pois ocorreu uma sucessão de Leis Processuais no tempo, fenômeno regido pelo princípio da posteridade, não restando possível a aplicação da Lei Maria da Penha (artigo 20) para os casos específicos regidos por aquela Lei e a norma geral (artigo 311 do CPP) para os demais casos.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal - Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p.
18.
BIANCHINI, Alice. Dicas sobre a Lei Maria da Penha: nova Lei de prisão e medidas cautelares (Lei 12.403/11) disponível em http://www.juristas.com.br