Resumo
O objetivo do texto é analisar o novo tratamento dado à prisão preventiva pela Lei n.º 12.403/11, o que será feito dentro da noção de que a proporcionalidade possui uma dupla dimensão ("proibição de excesso" e "proibição de deficiência"), bem como levando em consideração que o processo penal é um instrumento bifronte (que visa, de um lado, proteger bens jurídicos, tornando viável a punição estatal daqueles que os violam, e de outro, servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais). A partir dessa dupla perspectiva, almeja-se apontar a exigência constitucional de se buscar um ponto de equilíbrio entre os princípios constitucionais processuais penais, que protegem o indivíduo arguido (investigado ou acusado) de excessos do Estado na persecução penal, e a exigência de se dar eficácia ao Direito Penal, enquanto instrumento de manutenção da paz social, protetor de valores elementares à vida comunitária, em consonância com os objetivos fundamentais de se construir uma sociedade justa, em que haja a defesa do bem de todos (art. 3º da CF).
Palavras chave: prisão preventiva; proporcionalidade; eficácia da persecução penal.
Abstract
This text aims to analyze the new treatment given to the protective custody by the Law nº 12.403/11, by presenting the notion that proportionality has a double dimension ("excess prohibition" and "deficiency prohibition"), as well as taking in consideration that the penal process is a two-faced instrument (that on one hand aims to protect legal assets, making the state punishment feasible to those who violate it, and on the other hand, to serv as an effective instrument to guarantee the individual rights and liberties). From this double perspective, we want to point the constitutional demand of searching for a balance, between the constitutional penal process principles, that protect the defendant individual (investigated or accused) of states excesses in the penal persecution and the demand to give efficacy to the penal code while maintenance instrument of social peace, protector of elementary values to the daily life in society, according to the fundamental objectives of building a fair society in which there is the defense of the greater good (art. 3ª Brazilian Federal Constitution).
Key words: protective custody; proportionality; efficacy of the penal persecution.
Introdução
A Lei n.º 12.403/11 não pode ser enquadrada no que se convencionou denominar de "legislação de emergência", pelo contrário, tendo como paradigma modernas legislações estrangeiras, como as da Itália e de Portugal, ela é fruto de profundo e demorado debate que procurou sistematizar e atualizar o tratamento da prisão, das medidas cautelares pessoais e da liberdade provisória, com ou sem fiança, bem como superar as distorções produzidas no Código de Processo Penal com anteriores reformas pontuais, as quais, rompendo com a sua estrutura originária, desfiguraram tenebrosamente o sistema processual anterior, a exemplo das alterações introduzidas pela Lei 6.416/77, a partir da qual a fiança passou de instituto central no regime de liberdade provisória, a só servir para poucas situações concretas.
Nessa linha, as principais alterações almejadas com a reforma foram: a) o tratamento sistemático e estruturado das medidas cautelares pessoais e da liberdade provisória; b) o aumento do rol destas medidas, antes centradas essencialmente na prisão preventiva e na liberdade provisória; c) manutenção da prisão preventiva, de forma genérica pela conveniência da instrução do processo e para garantia da execução da pena e, de maneira especial, para garantia da ordem pública; d) impossibilidade de, antes de sentença condenatória transitada em julgado, haver prisão que não seja de natureza cautelar; e) valorização do instituto fiança.
Naturalmente, o processo legislativo alterou, em pontos polêmicos, a redação original do referido projeto de lei, sendo que o grande desafio do legislador reformista foi dar maior efetividade às garantias constitucionais do cidadão frente ao poder punitivo do Estado, adequando o Código de Processo Penal à Constituição Federal de 1998, sem descurar da eficácia da persecução criminal. Nessa empreitada, como era de se esperar, o resultado produzido, a Lei n.º 12.403/11, tornou-se passível de toda sorte de críticas, dividindo os juristas que se dedicaram à sua análise, alguns comemorando o reforço das garantias individuais dos investigados e processados, outros criticando supostos excessos que, para eles, podem aumentar a impunidade já existente no país.
Entre estes dois extremos, o presente ensaio parte da convicção de que, muito embora não seja perfeita (como de resto nenhuma obra humana é), se utilizada com razoabilidade, a reforma servirá a toda sociedade, e não apenas aos acusados em geral. Será o intérprete do direito que vai definir para qual finalidade ela se prestará, e a jurisprudência já vem se encaminhando nesse sentido, como se verá.
2. O duplo viés da proporcionalidade
Todos os estudiosos da Lei n.º 12.403/11 destacam a utilização da proporcionalidade [01] na essência da reforma por ela implementada, pondo em destaque o objetivo de coibir eventuais excessos de cautela, por parte do Estado, durante a persecução criminal. Tornou-se lugar comum, pois, uma interpretação da reforma sob o prisma que se convencionou designar de "garantismo negativo", ou seja, privilegiando a perspectiva de defesa dos direitos fundamentais do indivíduo frente ao Estado.
Sem embargo, a proporcionalidade não pode ser compreendida sob a exclusiva ótica da preocupação com a "proibição de excesso" do Estado, visto que, o legislador e a legislação (por conseguinte) também estão vinculados aos "direitos de proteção" que todos os cidadãos têm perante o Estado, os quais, nas palavras de Robert ALEXY, são os "direitos do titular de direito fundamental frente ao estado para que este o proteja de intervenções de terceiros" [02], o que encontra desdobramento na assim chamada "proibição de proteção insuficiente".
Em solo pátrio, Ingo SARLET foi precursor em trazer esse contexto para o direito penal material e para o processo penal, vinculando os "direitos de proteção" à teoria da proteção dos bens jurídicos fundamentais, ponderando que: "A noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que vinculada igualmente a um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política criminal...". [03]
Dito de outro modo, a proporcionalidade possui uma dupla face no âmbito do Direito Penal [04]:
a)A primeira, e mais tradicional, é a de "proibição de excesso", que limita o poder punitivo do Estado em prol da garantia de integridade física e moral dos cidadãos investigados e/ou acusados, visando garantir, de uma modo especial, máxima efetividade aos direitos individuais fundamentais (direitos de defesa do indivíduo perante o Estado);
b)A segunda, mas não menos importante, é a função de "proibição de deficiência" no âmbito do direito penal material e processual. Essa dimensão visa dar efetividade aos direitos sociais fundamentais, na compreensão de que a violação dos direitos individuais não parte apenas do Estado, mas também de outros cidadãos, sendo obrigação estatal proteger todos que estão sub-rogados ao monopólio do poder punitivo (direitos de proteção da sociedade).
Essa dupla dimensão da proporcionalidade, criada e desenvolvida no Direito Alemão, visa assegurar uma coexistência livre, pacífica e ordeira em sociedade, mediante a proteção de todos, dos "humanos direitos" e daqueles que se encontram "em conflito com a lei", no que pode ser denominado de "humanismo integral".
Nesse diapasão, vem a calhar a conclusão de Claus ROXIN: "De tudo isso resulta: em um Estado democrático de Direito, modelo teórico de Estado que eu tomo por base, as normas jurídico-penais devem perseguir somente o objetivo de assegurar aos cidadãos uma coexistência pacífica e livre, sob a garantia de todos os direitos humanos. Por isso, o estado deve garantir, com os instrumentos jurídico-penais, não somente as condições individuais necessárias para uma coexistência semelhante (isto é, a proteção da vida e do corpo, da liberdade de atuação voluntária, da propriedade etc.), mas também as instituições estatais adequadas para este fim (uma administração justa e eficiente, um sistema monetário e de impostos saudável, uma administração livre de corrupção etc.) sempre e quando isto não se possa alcançar de outra forma melhor". [05]
De fato, o Estado (Social) Democrático de Direito é caracterizado por um "garantismo positivo", em que se destaca a função estatal de promover e criar condições de igualdade e liberdade, por meio do reconhecimento de novos direitos fundamentais de caráter econômico e social, que são agregados aos tradicionais direitos individuais. Trata-se, pois, de um Estado orientado a programar e implementar condições de possibilidade para a "consecução do bem comum".
Em resumo, no Direito Penal - em virtude do seu inerente conflito entre a liberdade do acusados em geral e a garantia da segurança pública -, a proporcionalidade somente se concretiza quando o legislador e o julgador balizam suas escolhas ponderando as duas dimensões da proporcionalidade, de modo a dar máxima efetividade tanto aos direitos individuais quanto aos direitos sociais fundamentais, finalidade e ratio essendi do Estado Democrático de Direito.
3. A proporcionalidade nos critérios e fundamentos da prisão preventiva
Em nosso sentir, a Lei n.º 12. 403/11 levou em boa medida a dupla dimensão da proporcionalidade, adotando os critérios indicados pela doutrina para a ponderação dos interesses postos em debate no processo penal, logo, se interpretada de forma sistemática e razoável, certamente garantirá a preservação do equilíbrio entre os valores da defesa da segurança pública e a defesa das liberdades individuais.
Nesse sentido, partindo da ótica da "proibição do excesso", a nova redação dada ao art. 283 CPP estabelece um pressuposto objetivo para aplicação de todas as cautelares pessoais previstas no Título IX do CPP [06] ao estabelecer que elas "não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade", com o que o legislador buscou estabelecer, razoavelmente, uma homogeneidade (ou simetria) entre o provimento cautelar e o provimento final (sentença), pois, via de regra, o "mal necessário" imposto durante o curso do processo não pode ser maior do que aquele que, eventualmente, será infligido ao acusado quando do seu término.
Porém, a adoção da proporcionalidade pelo legislador reformista pode ser detectada especificamente no art. 282 CPP, que institui dois critérios [07] de ponderação no momento da avaliação e aplicação de tais medidas cautelares. O primeiro critério é a necessidade para: a) a aplicação da lei penal; b) a investigação ou instrução criminal; c) evitar a prática de infrações penais. O segundo é a adequação, aferível diante: a) da gravidade do crime; b) das circunstâncias do fato; c) das condições pessoais do investigado ou acusado.
A partir destes critérios, é possível concluir-se que, dentro das dimensões dos três tradicionais fundamentos cautelares da prisão preventiva,expressos no caput do art. 312 CPP (garantia da aplicação da lei penal; conveniência da investigação ou da instrução criminal, e garantia da ordem pública [08]), o encarceramento preventivo somente poderá ser imposto quando houver a necessidade de uma cautelar pessoal durante a persecução e as demais medidas restritivas da liberdade, diversas da prisão, revelarem-se insuficientes. [09]
Logo, não se pode deixar de reconhecer que o legislador reformista, adotando aludido pressuposto e dentro dos critérios e fundamentos que estabeleceu, levou em acentuada consideração a "proibição de excesso" no uso das medidas cautelares, preocupando-se de forma especial com a prisão preventiva, ao reconhecer que, a princípio, a legitimidade de tal segregação ante tempus repousa no seu caráter instrumental, devendo ser utilizada apenas como extrema ratio da ultima ratio, ao determinar que ela somente pode ser adotada "em último caso" (art. 282, § 4º, CPP). Ademais, na medida em que, via de regra (art. 310, II), [10] a prisão em flagrante não subsistirá por si só, restou reforçada a natureza jurídica da preventiva como "genuína prisão cautelar", a atuar, verdadeiramente, como "instrumento do instrumento", visto que se destinará ao resguardo da efetividade do processo, enquanto meio necessário para a prestação jurisdicional, mediante a proteção da pretensão punitiva, ou da prova.
Nada obstante, a outra faceta da proporcionalidade, a da "proibição de deficiência" (cujo enfoque é esquecido pela maioria dos doutrinadores que comentam a lei), pode ser identificada na manutenção da prisão preventiva como instrumento de proteção da "ordem pública", fundamento em que nitidamente o cárcere provisional possui a natureza jurídica de "medida de segurança predelitual", para se usar a expressão cunhada por Alberto M. BINDER, [11] visto que, estando intimamente ligado aos critérios de adequação do art. 282 CPP, busca evitar a prática de outras infrações penais, levando em consideração a gravidade do crime, as circunstâncias do fato e a "periculosidade" do agente.
Vale dizer, sob este fundamento, a prisão preventiva não se traduz em "genuína prisão cautelar", porque falta, na espécie, referência instrumental ao direito discutido no processo penal principal, caracterizando-se, portanto, a míngua de outro instituto específico no ordenamento jurídico pátrio, como uma verdadeira "medida de segurança social", em que o Poder Judiciário, enquanto garante dos direitos fundamentais de todos, ponderando os valores constitucionais em confronto (defender o arguido de uma persecução estatal desmesurada versus proteção da ordem pública ante eventual periculosidade do agente), resolve resguardar a sociedade do risco de maiores danos, não se devendo falar, portanto, em "antecipação da pena", mas sim em gerenciamento judicial dos riscos que a liberdade do indivíduo representa.
É bem verdade que, em virtude desta ausência de cautelaridade processual e pela abertura interpretativa que a expressão oferece, a legitimidade do fundamento da "garantia da ordem pública" é contestada por parte da intelligentsia jurídica nacional, sendo acoimado, inclusive, de "inconstitucional" e "antigarantista".
Almejando evitar a ambiguidade na interpretação do que vem a ser "ordem pública", a "Comissão Pellegrini" apresentou o seguinte texto para o art. 312: "A prisão preventiva poderá ser decretada quando verificados a existência de crime e indícios suficientes de autoria e ocorrerem fundadas razões de que o indiciado ou acusado venha a criar obstáculos à instrução do processo ou à execução da sentença ou venha a praticar infrações penais relativas ao crime organizado, à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira consideradas graves, ou mediante violência ou grave ameaça à pessoa".
Tal redação, todavia, restringia demasiadamente o conceito de "ordem pública" ao "risco de reiteração" e aos crimes violentos, portanto o processo legislativo, atento à realidade da vida como ela é, manteve a fórmula tradicional, acatando as críticas formuladas pelo Deputado Federal Luiz Antonio Fleury Filho, que destacou que a redação proposta no projeto original "além de omitir o tráfico, não substitui convenientemente o que foi suprimido, bastando imaginar que o autor de um crime extremamente grave, desde que não demonstre intenção de reincidir, não mais poderá ser preso, sendo irrelevante a intranquilidade que sua conduta tenha gerado na comunidade". [12]
Realmente, muito embora a "garantia da ordem pública" seja uma expressão fluída e vaga (e sendo certo que todo significado depende do intérprete), é possível buscar-se no Dicionário Político, de Norberto BOBBIO et alii, uma definição que a compreende sob dois aspectos distintos e igualmente relevantes, a ordem pública material e a ordem pública constitucional. A primeira, dada pela circunstância fática, servindo "(...) como sinônimo de convivência ordenada, segura, pacífica e equilibrada, isto é, normal e conveniente aos princípios gerais de ordem desejados pelas opções de base que disciplinam a dinâmica de um ordenamento".Explicando-se, que a segunda "(...) constitui objeto de regulamentação pública para fins de tutela preventiva, contextual e sucessiva ou repressiva (...)." [13]
Assim, se a convivência social ordenada e segura estiver seriamente abalada pela periculosidade do agente, aferida a partir de dados concretos existentes nos autos, não há "antigarantismo" na preventiva pela ordem pública, pois neste caso estarão em risco valores constitucionais igualmente relevantes, afinal como diz Lenio STRECK: "Trata-se daquilo que Alessandro Baratta denominou de política integral de proteção dos direitos, o que significa definir o garantismo não somente em sentido negativo como limite do sistema positivo, ou seja, como expressão dos direitos de proteção relativamente ao Estado, senão também como garantismo positivo." Afinal, nesta quadra da história, para além da "da proibição do excesso" é possível afirmar que o Estado de Direito não pode se demitir da sua função de recorrer aos meios preventivos e repressivos que se mostrem indispensáveis à tutela da segurança, dos direitos e liberdades de todos cidadãos. " [14]
Com efeito, o Direito, mesmo sendo um sistema pautado pela regra (no caso, a propalada "regra da liberdade"), não deve se fechar às exceções, inerentes ao alto grau de complexidade do sistema social e à imensurável diversidade de fatos que a vida nos apresenta, visto que, na contemporaneidade, a existência do risco, como elemento nuclear da organização social, exige um novo olhar do operador do Direito.
Logo, o concreto risco que a periculosidade do arguido eventualmente representa para outros membros da sociedade não pode ser considerado um dado periférico ou menor na análise do que é constitucionalmente adequado, pois o intérprete - atento ao caráter preventivo da lei penal - deve evitar a defraudação de expectativas normativas institucionalizadas e/ou a violação de bens jurídicos essenciais à convivência em sociedade, minimizando o risco de arrependimento em virtude da falta de uma adequada ponderação de valores constitucionais no momento da decretação de uma prisão preventiva fundamentada na "ordem pública", o que nada mais representa que a gerência de riscos em face de possíveis danos futuros, individuais ou sociais, por vezes irreparáveis.
Esta problemática foi abordada, de um modo específico, por André SERRETTI, o qual afirma que o tecido social compreende certos riscos como toleráveis e outros não, institucionalizando tal percepção como expectativa normativa. Os riscos aceitáveis estão geralmente relacionados à baixa lesividade daquelas condutas que os representam (riscos inerentes ao tráfego), já os riscos inaceitáveis são representados por condutas que atacam as mais elementares expectativas sociais. Assim, o autor entende "serem inaceitáveis os riscos referentes à liberdade daqueles que não apresentam predisposição individual à adequação ao modelo social no qual estão inseridos, referente ao respeito às expectativas normativas institucionalizadas (ou respeito aos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal), observado quando vislumbrado com certo grau de determinação, que tais indivíduos estão propensos à prática de novos crimes (...) Assim, podemos definir um esquema de observação da realidade no qual se pode, em princípio, calcular todas as decisões sob o ponto de vista da probabilidade de ocorrência do dano consistente no risco ao funcionamento do sistema social (ou risco de lesão a bens jurídico-penais), objetivando evitar os referidos danos. Consoante tal modelo, podemos também diferenciar os riscos toleráveis, condizentes com determinado sistema social e coerentemente justificáveis, dos riscos intoleráveis, que representam maior custo do que benefício ao funcionamento do sistema social e à vida em sociedade." [15]
Isso nada tem a ver com suposto dom da "vidência por parte dos julgadores", mas sim, da necessidade de reconhecer a possibilidade, em face de base empírica concreta, do risco que a liberdade do arguido representa para a convivência social ordenada, e não de suposto dano social que a sua liberdade poderia vir a causar, pois seguindo com SERRETI: "Não se trata de tentar prever o futuro, mas sim de, no presente, definir o quanto de perigo a liberdade de um indivíduo representa para a sociedade. Dano e perigo são conceitos distintos e que requerem meios distintos de valoração, que pode ser lícita e constitucional. Na valoração do risco, processo eminentemente sociológico, no caso em questão, faz-se necessário um juízo de probabilidade, e não de certeza (...)." [16]
Obviamente que matéria tão complexa e intuitivamente sujeita à subjetiva interpretação enseja todo o cuidado e pormenorizada análise do caso concreto, mas não é por isso que se deve recusar a decretação de prisão para garantia de ordem pública, tanto assim que, a despeito das críticas feitas a este fundamento, ele sempre teve sua constitucionalidade reconhecida pelo STF, o qual reiteradamente decide que a prisão preventiva pela ordem pública é legítima à salvaguarda do meio social, violentado pela gravidade do crime, aferida pelo modus operandi na prática do crime, ou pelo concreto risco de reiteração criminosa. [17] Para além disso, no julgamento do HC 80.717/SP, cujo paciente era o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, o Pleno do STF firmou o entendimento de que o sério abalo à respeitabilidade das instituições e o aumento da confiança da população nos mecanismos oficiais de repressão às diversas formas de delinqüência são, sim, argumentos válidos para o encarceramento cautelar, reconhecendo, portanto, a legitimidade do decreto da preventiva em crimes sem violência à pessoa, quando posta em xeque a credibilidade das instituições públicas, em especial do Poder Judiciário, quanto à visibilidade e transparência de políticas públicas de persecução criminal. Confira-se trecho da ementa:
O carro-chefe da impetração é, sem dúvida, o questionamento da prisão preventiva.Decretou-a o il. Juiz de primeiro grau, inicialmente, ao receber a denúncia contra o paciente (Proc. 1198).Malgrado afastasse a necessidade da prisão cautelar para a segurança da aplicação da lei penal ou por conveniência da instrução, S. Exa. a entendeu devida, a título de garantia da ordem pública, pois o paciente, juntamente com os co-denunciados, teria perpetrado o desvio de 169 milhões de reais provenientes do orçamento da União para a construção do Forum Trabalhista:"inequívoco" - aduziu o decreto - "que tais fatos, por si sós,abalam a credibilidade e a respeitabilidade de instituições, o que constitui, sem dúvida, abalo da ordem pública", a qual, acentuou,"não se traduz, tão só, na necessidade de coibir a prática de novos delitos, mas também na premência de se restaurar aqueles atributos imprescindíveis para o funcionamento das instituições públicas,seriamente comprometidos com condutas perpetradas por altas autoridades integrantes das mesmas, acarretando-lhes sérios prejuízos materiais e imateriais" (f. 120).Posteriormente, novo decreto de prisão preventiva do paciente foi exarado, no curso do primeiro processo contra ele instaurado (Proc. 1248).A decisão - transcrita no acórdão do TRF, denegatório do habeas corpus - assim está motivada - f. 219:"... não restam dúvidas de que a ordem pública,através da conduta descrita na denúncia, restou inequivocamente afetada. E a ordem pública aqui não se trata de clamor popular. Não há como confundir o conceito de 'ordem pública' com o de 'clamor público'. Este pode eventualmente decorrer daquele, ou vice-versa, mas não serve, por si só, de elemento para fundamentar a prisão preventiva, conforme já decidiu o Colendo Supremo Tribunal Federal (RT 598/417).A garantia da ordem pública não se resume em,tão-só, evitar a ocorrência de outros delitos. É, também,principalmente, resguardar a credibilidade e a respeitabilidade das instituições públicas... (80717 SP , Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 09/02/2001, Data de Publicação: DJ 15/02/2001 PP-00014)
Em que pese a importância deste precedente, afinal foi julgado pela composição plena da mais alta Corte do país, ele é sistematicamente relegado ao olvido pela doutrina quando da abordagem da constitucionalidade da prisão preventiva decretada com fundamento na garantia da ordem pública, valendo destacar que não se trata de precedente isolado, visto que a "credibilidade da justiça" seguiu sendo interpretada como base idônea à prisão preventiva, como se pode ver na Questão de Ordem suscitada no Habeas Corpus (HC-QO) 85.298/SP, em que figurava como paciente Law Kin Chong, quando a Primeira Turma lembrou que: "O plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 80.717, fixou a tese de que o sério agravo à credibilidade das instituições públicas pode servir de fundamento idôneo para fins de decretação de prisão cautelar, considerando, sobretudo, a repercussão do caso concreto na ordem pública (…) Questão de ordem que se resolve no sentido do indeferimento da liminar."
Verdadeiramente, é sabido o Direito Penal também atua mediante prevenção geral, como estímulo e renovação da confiança no Direito, na preservação de valores elementares na comunidade juridicamente organizada. Entretanto, se o Direito Penal é contrafeito e se, por imperativo do devido processo penal, sempre haverá um lapso temporal para a aplicação da sanção nele prevista, nesse interregno constitucionalmente indispensável, a previsão de uma prisão anterior à condenação também poderá ser legitimada pela preservação dos valores elementares da vida comunitária, devendo ser invocada, se concretamente necessária, a prisão preventiva para fins de garantia da ordem pública, fundamento que, de resto, está presente nas mais diversas legislações do mundo ocidental, pelas mais variadas razões, como se pode ver, por exemplo, no art. 204 do CPP português, no § 112 do StPO (CPP alemão), no art. 503 da LECr. (Espanha) e no art. 274 do CPP italiano.
Em epítome, ao manter a "ordem pública" como fundamento da prisão preventiva e ao estabelecer a gravidade do crime; as circunstâncias do fato e as condições pessoais do agente como critérios objetivos para a decretação da prisão preventiva, o legislador reformista obrou em sintonia com o direito comparado e com a jurisprudência de nossa Corte Constitucional, afinal, como esta já proclamou, em diversas oportunidades, no Estado Democrático de Direito não existem princípios ou direitos absolutos, o que permite, à luz da dupla face da proporcionalidade, a coexistência da presunção de inocência e a preservação cautelar da ordem pública.