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Fiança: pagar ou não pagar? Eis a questão

24/11/2011 às 15:36
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Sabendo que cópia do auto de prisão em flagrante deve ser encaminhada ao juiz em 24 horas após a captura, e que a prisão por força de flagrante não pode durar mais de 24 horas, quais as consequências jurídicas da recusa ao pagamento da fiança liberadora?

Como é natural que ocorra, sempre que nova lei é lançada no ordenamento jurídico é preciso deitar reflexões sobre velhos e novos institutos alcançados por tal regramento.

Por aqui, faremos breves considerações sobre a fiança, e a questão especialmente estudada, como o título do ensaio anuncia, busca avaliar as variantes que decorrem do seguinte questionamento: Pagar ou não pagar a fiança arbitrada?

Pois bem.

Com advento da Lei n. 12.403/2011 foram ampliados os casos de cabimento de fiança, observada a redação atual dos arts. 323 e 324 do CPP.

Por aqui estamos nos referindo à fiança liberadora ou libertadora, aquela contracautela que se presta a restituir à vida livre quem fora preso em flagrante delito (art. 302 do CPP), quando presentes os requisitos legais para seu arbitramento, até porque, ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança (art. 5, LXVI, CF). Não estamos tratando, ainda, da fiança regulada como medida cautelar restritiva, disposta no art. 319, VIII, do CPP, e é preciso saber que há diferença entre uma e outra, como veremos mais adiante.

Imagine-se para tanto a seguinte hipótese: “Carlos Henrique”, homem de posses financeiras e elevado patrimônio material, é preso em indiscutível situação flagrante pela prática de homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302 do CTB). Lavrado escorreitamente o auto de prisão em flagrante a autoridade policial entende corretamente que é cabível fiança, que então é arbitrada para que, realizado o pagamento, possa o agente aguardar as investigações e eventual processo em liberdade. Ocorre que, instado, “Carlos Henrique” diz solenemente que, mesmo podendo, não irá pagar a fiança arbitrada, ainda que seu valor venha ser reduzido.

Sabendo que cópia do auto de prisão em flagrante deve ser encaminhada ao juiz competente em 24 horas após a prisão captura (art. 306, § 1º, CPP), e que a prisão por força de flagrante não pode durar mais de 24 horas à luz do disposto no art. 310 do CPP, a situação que surge faz questionar: quais as consequências jurídicas desta recusa ao pagamento/prestação da fiança liberadora/libertadora?

Vamos à análise detalhada:

Primeira opção: de relaxamento da prisão não há falar visto que na hipótese o fato é típico e indicamos ser indiscutível a situação de flagrante, sendo certo que fora lavrado escorreitamente o auto. Inaplicável, portanto, o inc. I do art. 310 do CPP.

Segunda opção: de decretação de prisão preventiva também não é caso, até porque o arbitramento da fiança era cabível na hipótese, o que revela a ausência dos requisitos da prisão preventiva. É evidente que a recusa ao pagamento da fiança arbitrada, por si, isoladamente, não faz surgir qualquer das circunstâncias autorizadoras da prisão preventiva, listadas no art. 312, caput, do CPP (garantia da ordem pública; garantia da ordem econômica; conveniência da instrução criminal; assegurar a aplicação da lei penal). Não é de se aplicar, na hipótese tratada, o disposto no art. 310, II, primeira parte, do CPP.

Terceira opção: conceder liberdade provisória mediante fiança (art. 310, III, primeira parte), também não é o caso, pois já fora concedida na fase policial, e o valor arbitrado não fora pago por opção do autor do delito.

Quarta opção: diante da impossibilidade de manter o agente preso por força do flagrante por mais de 24 horas, resta ao magistrado conceder liberdade provisória, sem fiança, para fazer cessar a situação de encarceramento, já que ausentes os requisitos da prisão preventiva e incogitável a decretação de prisão temporária (Lei n. 7.960/89).

Neste caso, entretanto, a liberdade provisória deve ser cumulada com cautelar(es) restritiva(s) dos arts. 319 e 320 do CPP, e para que a Justiça e o direito não sejam aviltados pela postura deliberadamente patrocinada pelo agente, a única alternativa possível parece ser cumular a liberdade provisória ao menos com a medida cautelar restritiva prevista no inciso VIII do art. 319, qual seja, a fiança.

Bem, mas o que isso muda? Para onde isso levará juridicamente a situação?

Conforme já expusemos em nosso novo livro, intitulado – Prisões cautelares, liberdade provisória e medidas cautelares restritivas (Saraiva, 2011) - é preciso ter em mente que hoje existem dois tipos de fiança: a fiança libertadora, que se presta como instituto de contracautela à prisão em flagrante, e a fiança restritiva tratada no art. 319 do CPP.

A primeira constitui direito subjetivo do agente, quando satisfeitos os requisitos legais para seu arbitramento (art. 5, LXVI, da CF); a segunda não. Não se pode dizer, sem incidir em grave equívoco, que a fiança do art. 319, VIII, do CPP, constitui direito subjetivo do agente...

É preciso reconhecer que a primeira só tem cabimento após prisão em flagrante, enquanto que a outra pode ser fixada em qualquer fase da investigação ou do processo, enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória, mesmo naquelas situações em que não tenha ocorrido prisão em flagrante (art. 334 do CPP).

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Disso decorrem consequências diversas, como não poderia ser de outra maneira.

No exemplo indicado para estudo, o não pagamento da fiança libertadora, arbitrada após a prisão em flagrante, não pode acarretar – por si - a decretação da prisão preventiva, mas o descumprimento injustificado da segunda – cautelar restritiva - sim, à luz do disposto no parágrafo único do art. 312 do CPP.

Como se vê, daqui retiramos ao menos três conclusões que interessam para o momento: 1ª). O não pagamento da fiança libertadora pelo agente abastado tem como consequência a concessão judicial da liberdade provisória sem fiança; 2ª) esta liberdade provisória, para ser aplicada de forma justa e adequada (proporcional, razoável etc.), deve vir cumulada com medida(s) cautelar(es) restritiva(s), especialmente a fiança indicada no inciso VIII do art. 319; 3ª) o não pagamento injustificado desta fiança – medida cautelar restritiva – tem como consequência a decretação da prisão preventiva do agente, com fundamento no parágrafo único do art. 312 do CPP.

Outras conclusões importantes: 1ª). É cabível prisão preventiva em crime culposo; 2ª). É cabível prisão preventiva por descumprimento injustificado de cautelares restritivas, independentemente da satisfação dos requisitos do art. 313, I e II, do CPP, pois, do contrário, o sistema de cautelares pessoais cairia no ridículo, a tal ponto de restar impossível qualquer consequência jurídica àquele que deixasse solenemente de pagar a fiança fixada e também deixasse de cumprir medida cautelar restritiva fixada por ocasião da liberdade provisória concedida, como no caso examinado.

Ainda que o legislador ordinário tenha sido mais ordinário do que técnico – evidência infelizmente comum quando estamos diante de mudanças na legislação penal/processual penal, como por aqui também se vê - cabe à doutrina e à jurisprudência buscar e dar interpretações lógicas e justas, que ao menos valorizem o sistema em que se inserem as regras analisadas.

Quanto à pergunta que serve de título a este ensaio, estamos certos de que o melhor a fazer é pagar a fiança libertadora para não se expor, num segundo momento, à decretação de prisão preventiva.

Pagar/prestar é a melhor opção.

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Sobre o autor
Renato Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP). Autor dos livros: Tóxicos (Saraiva); Curso de Execução Penal (Saraiva); Estatuto do Desarmamento (Saraiva); Crimes de Trânsito (Saraiva); Crimes Ambientais (Saraiva); Crimes contra a Dignidade Sexual (Saraiva); Prisões Cautelares, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Restritivas (Saraiva); dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCÃO, Renato. Fiança: pagar ou não pagar? Eis a questão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3067, 24 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20498. Acesso em: 25 abr. 2024.

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