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O Supremo Tribunal Federal e o regime militar de 1964

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03/12/2011 às 08:27

Resumo:


  • O Supremo Tribunal Federal (STF) passou por transformações profundas durante o regime militar iniciado em 1964, especialmente após o Ato Institucional Número Dois (AI-2), que alterou a composição da Corte e o número de ministros.

  • Os ministros nomeados pelo regime militar eram alinhados com a União Democrática Nacional (UDN) e favoreciam as decisões do governo, diminuindo a autonomia do STF e a eficácia do Estado de Direito.

  • Decisões como a que concedeu anistia a agentes do Estado que cometeram tortura durante a ditadura militar, e o debate sobre a redemocratização e a função do STF na nova Constituição de 1988, evidenciam a influência do passado autoritário na Corte Suprema brasileira.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5. Nu ou mal vestido?

5.1. Uma nova Constituição, uma nova democracia, os mesmos ministros no STF.

A nova constituição não trouxe de imediato novos ministros para o STF. A estrutura permanecia inalterada. Trouxe, porém, novos poderes e novas funções. A Constituição de 1988 reestruturou o poder judiciário dando-lhe nova feição de autonomia.

A Constituição de 1988 manteve basicamente a estrutura do Supremo Tribunal Federal, herdada do passado. Ampliava, porém, sua competência no terreno constitucional, criando o mandado de injunção e alargando o rol das autoridades e instituições autorizadas a propor ação de inconstitucionalidade, admitida até mesmo nos casos de omissão. Retirou- lhe, porém, a função que o Tribunal desempenhara desde a sua criação, de aplicação do direito federal infraconstitucional, que passou para a alçada do Superior Tribunal de Justiça, criado nessa ocasião. De suas atribuições saíram também a representação de interpretação e a avocatória, mas, em contrapartida, atribuiu-se-lhe competência para julgar originariamente as causas que interessam direta ou indiretamente à magistratura (COSTA, 2006, p.185-6)

Novos personagens também começaram a aparecer. Alguns ministros nomeados foram alvos de perseguição política durante o regime militar. Outros eram aliados ou discípulos dos ministros do regime militar. É o caso do presidente César Peluso:

Ele teve um tio arcebispo, com quem morou por muitos anos. Foi seminarista por conta disso, e acalentou o desejo de ser papa. Mas desistiu e em 1962 foi cursar direito numa faculdade católica de Santos. “Eu achava que comunista comia criancinha e apoiei os militares”, disse. “Foi um erro do qual me arrependi.” Peluso não tem nem mestrado nem doutorado. Começou os dois, mas não os concluiu. No doutorado inconcluso, seu orientador foi Alfredo Buzaid, ministro da Justiça da ditadura e juiz do Supremo. “Uma ótima pessoa”, é a sua opinião. (CARVALHO, L MAKLOUF, 2010b)

Peluso situa seu arrependimento do apoio à ditadura antes do Ato Institucional nº 5. Gosta de contar sobre sua atuação pró-direitos humanos em presídios abarrotados, quando era corregedor auxiliar do Tribunal de Justiça de São Paulo. Disse que uma vez fez um relatório “violentíssimo” contra o delegado Sérgio Fleury, o torturador, a quem chamou de “famigerado”, sendo posteriormente obrigado a cortar o termo por ordem superior. (CARVALHO, L MAKLOUF, 2010b)

Algumas nomeações de Ministros ainda são duvidosas. Conforme o Art. 101. da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 “O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada” (BRASIL, 1988). Aonde está o requerido notável saber jurídico se boa parte dos ministros tem formação acadêmica duvidosa? Muitos sequer têm estudos avançados de pós-graduação. Da mesma forma pode-se questionar a reputação ilibada.

O Supremo é das poucas cortes superiores do mundo a ter ministros condenados pela Justiça. O caso mais recente é o do ministro Dias Toffoli, condenado no Amapá a devolver 420 mil reais aos cofres públicos por contrato ilegal entre seu escritório e o governo do Estado. O ministro recorreu da sentença e, em junho, foi absolvido na segunda instância. O outro caso, em que os valores são muito maiores, é o do ministro Eros Grau. Ele exerceu grande parte do mandato sob a vigência uma sentença que o condenou a devolver 2,7 milhões de reais ao erário paulista por contratos ilegais com o Metrô. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a).

A tradição de usar o STF como marionete do poder executivo parece ter permanecido durante a democracia pós-1988.

De uns mais, de outros menos, Márcio Thomaz Bastos foi o avalista de todos os oito ministros que Lula indicou e o Senado referendou. Para quem reclama da qualidade da atual corte, ele diz: “O presidente Lula quis fazer um Supremo arejado, mais aberto e voltado para a nação, ao invés de um em fim de carreira, voltado para si próprio. Um Supremo capaz de experimentar, com todos os riscos inerentes a isso, até o risco de Brasília estranhar.” Deu um breque, pensou e continuou: “O mecanismo de indicação é muito bom, desde que o Senado cumpra o seu dever de escrutinar e investigar os indicados. É isso que faz funcionar o sistema de pesos e contrapesos. Mas isso não tem existido, infelizmente.” (CARVALHO, L MAKLOUF, 2010b)

Talvez o ministro mais polêmico de todos nesse aspecto da reputação ilibada seja Marco Aurélio de Mello. Iniciando-se por sua nomeação por seu primo o presidente Fernando Collor, o mesmo que sofreu impeachment. Note-se que Marco Aurélio exerce atualmente a presidência do TSE. Porém, de tudo que se poderia falar sobre o ministro, o relato sobre um possível Impeachment de sua função de presidente do STF em 2001 é interessante.

O assunto que o deixa apreensivo é um segredo do Supremo Tribunal Federal: em 2001, quando era o presidente da corte, três ministros pelejaram para levá-lo ao impeachment, no Senado, única instância que pode afastar um ministro do Supremo Tribunal Federal. A ameaça de destituição ocorreu porque Marco Aurélio alterou o conteúdo de uma decisão colegiada. Era um pedido de habeas corpus para um oficial da Aeronáutica flagrado, com outros colegas, com 33 quilos de cocaína no momento da decolagem de um avião da Força Aérea Brasileira, no Recife. Como relator do caso, Marco Aurélio levou o hábeas corpus a julgamento da Segunda Turma. Votou pela concessão, obtendo a unanimidade dos dois ministros presentes, o presidente da Turma, Néri da Silveira, e Nelson Jobim. (CARVALHO, L. MAKLOUF, 2010a)

Recentemente a polêmica atingiu a postura do STF como corte constitucional que deveria zelar pelos Direitos Humanos e tratados de Direito internacional. Em especial questiona-se a abrangência da anistia aos funcionários de Estado que cometeram crimes de tortura acobertados pelo regime militar.

Em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a Lei de Anistia se aplica também aos agentes do Estado que cometeram os crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de presos políticos durante a ditadura militar. O relator do processo, ministro Eros Grau, acolheu parecer do Procurador Geral da República e da Advocacia Geral da União, expressando interesses de certos setores do Governo, e votou pela improcedência da ação movida pela OAB. A Lei 6683 de 1979, a chamada Lei da Anistia, concedeu anistia aos crimes políticos. E tortura não é, e nunca foi, crime político. A rigor, não se trata de revisão da Lei da Anistia. Nenhuma lei no Brasil jamais estendeu anistia para crimes de tortura. São crimes contra a humanidade praticados por agentes públicos ao arrepio da lei, uma vez que os governos militares nunca reconheceram a tortura como ato oficial de Estado. (VIEIRA, 2010).

Justificativa de Eros Roberto Grau para a concessão de anistia para todos, inclusive servidores públicos que praticaram tortura, é a de que a Emenda Constitucional 26 de 1985 teria abrangido todos os servidores públicos.

Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares.

§ 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais. (BRASIL, Emenda constitucional nº 26)

A abrangência de significado dado a expressão “crime político ou conexos” leva a crer que qualquer crime cometido durante o regime militar possa enquadrar-se a hipótese. Eros justifica que não é possível criar uma dicotomia entre crimes cometidos pela resistência ao regime e pelos subordinados do regime. O grande pacto de pacificação feito pela anistia teria encerrado para sempre o assunto de crimes da ditadura militar. Justifica ainda que

(...) a decisão pela improcedência da presente ação não exclui o repúdio a todas as modalidades de tortura, de ontem e de hoje, civis e militares, policiais ou delinquentes. (GRAU, Voto do Ministrro relator na ADPF 153)

Apesar da promessa, a verdade é que os crimes de tortura cometidos por agentes do Estado durante a ditadura nunca serão repudiados ou punidos. O pacto não foi feito por todos e o sentimento de impunidade e injustiça das vítimas do regime e seus parentes tem certeza que o STF veste togas que os deixam nus. É puro argumento vazio. Retórico. Simbólico. Palavras vazias, jogadas ao vento.

5.2. Polemizando: idéias para uma nova corte constitucional.

Depois de tudo que foi visto e exposto algumas idéias talvez auxiliem a pensar o STF em nosso tempo. Apreciemos inicialmente as idéias de Dallari para o STF:

Três delas têm seguidores: que o STF vire uma corte constitucional, que os indicados sejam escolhidos preliminarmente por votação direta da comunidade jurídica, e só depois pelo presidente e pelo Congresso, e que os ministros tenham mandato de dez ou quinze anos. A quarta, que considera tão ou mais importante que as outras, é singular: tirar o Supremo de Brasília e levá-lo de volta ao Rio. “A proximidade com o centro político é muito prejudicial”, disse o professor aposentado da Universidade de São Paulo, fazendo cafuné no pescoço do bichano. “Na Alemanha, a Corte Constitucional fica a muitos quilômetros de Berlim”, exemplificou. (CARVALHO, L MAKLOUF, 2010b)

O STF deveria sim se tornar uma corte constitucional e não um tribunal que julga milhares de processos por ano. O STF também poderia sim ser eleito. Parece razoável que os membros sejam pessoas do mundo jurídico, entretanto, não vejo porque restringir a votação apenas aos membros da comunidade jurídica. O medo da democracia fez do Brasil um país mais autoritário. Enquanto não experimentamos democracia mais ampla mantemos o sistema viciado e o problema central do aparelhamento do judiciário ao executivo. Talvez seja hora de radicalizar a demanda de democracia.

A questão do tempo de mandato não parece ser algo central, porém não é tolerável ministros que permaneçam menos de 5 anos na corte. Esse modelo de nomeação de curta duração é obviamente desvantajoso ao Estado e segue interesses meramente pessoais. Por fim, a mudança da sede do STF pode até ser interessante, porém seu retorno para o Rio de Janeiro não parece uma solução. Retirar a corte do centro político para o centro da mídia nacional não é colocado em local neutro. Além do que, hoje, existem novas formas de pressão exercida por novos meios de comunicação.

De qualquer sorte, propostas de mudanças são sempre válidas quando pensadas a partir da experiência histórica.

O STF precisa urgentemente ser vestido com os mais belos tecidos da democracia e da legalidade. Como defensor do Estado de Direito que talvez um dia foi ou poderá ser.

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6. Referências

BRASIL. (1988). Constituição da República federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 15 de Julho de 2011.

BRASIL. (1985). Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_anterior1988/emc26-85.htm>, Acesso em 15 de Julho de 2011.

CARVALHO, José Murilo de. 2005. Cidadania no Brasil: O longo caminho. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

CARVALHO, Luiz Maklouf. (2010a). Data Venia, o Supremo. Picuinhas se imiscuem em decisões importantes, assessores fazem o serviço de magistrados, ministros são condenados em instâncias inferiores, um juiz furta o sapato do outro – como funciona e o que acontece no STF. Disponível em: <https://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-47/questoes-juridicas/data-venia-o-supremo> . Acessado em 9 de Agosto de 2011. São Paulo.

CARVALHO, Luiz Maklouf. (2010b). O Supremo, quosque tandem? A indicação dos juízes, os pedidos de vistas, os conflitos de interesse, o ativismo e as disputas entre ministros – a agenda de dificuldades do STF. Disponível em: <https://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-48/questoes-juridicas/o-supremo-quosque-tandem> . Acessado em 9 de Agosto de 2011. São Paulo: 2010b.

COSTA, Emília Viotti da. (2006) O supremo tribunal federal e a construção da cidadania. 2ª ed. São Paulo: Editora da UNESP.

GASPARI, Elio. (2002a). A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras.

GASPARI, Elio. (2002b) A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. (2011) História do Direito. Miguel Arraes no Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/10636/historia-do-direito-miguel-arraes-no-supremo-tribunal-federal>. Acesso em: 15 de julho de 2011.

GRAU, Eros Roberto. (2011). Voto do Ministro Relator na Argüição de Descumprimento de preceito fundamental número 153, proferido em 28 de Abril de 2010. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf> Acesso em: 10 de Agosto de 2011.

HABERT. Nadine. 2001. A década de 70. Apogeu e crise da ditadura militar brasileira. 3ª ed. São Paulo: Ática.

LOPES, Jose Reinaldo de Lima; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo; ACCA, Thiago dos Santos. 2009. Curso de História do Direito. 2ª ed. São Paulo: Método.

PAES. Maria Helena Simões. 1997. A década de 60. Rebeldia, contestação e repressão política. 4ª ed. São Paulo: Editora Ática.

RODRIGUES, Leda Boechat. 2002. História do Supremo Tribunal Federal. Tom. 4. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

SILVA, Evandro Lins e. 1997. O salão dos passos perdidos: depoimento ao CPDOC. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Ed. FGV.

SKIDMORE, Thomas. 1988. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. (Tradução Mario Salviano Silva). Rio de Janeiro: Paz e Terra.

VIEIRA, Liszt. (2010) Legitimação judicial da tortura. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4617>, Acesso em: 15 de Julho de 2011.


THE BRAZILIAN SUPREME COURT AND THE MILITARY REGIME OF 1964

Abstract: The Brazilian Supreme Court has undergone profound changes during the military regime that began in 1964. From the AI-2 there were significant changes in the number of members and as part of its justice. During this time, little by little, the characteristics of the country's Supreme Court has changed and due to the restriction effected by the executive. So the Supreme Court largely lost their strength and even co-opted the military regime played a secondary role in the face of authoritarianism installed. The most significant moment in this direction was when one of its members are supposed to revolt and throw the robe on the bench in protest against their colleagues who decided in favor of restricting their own functions. Rethinking this period is essential to imagine the possibilities of the Brazilian Supreme Court in times when one learns to live democracy in Brazil, or at least learn to rethink the role of the Brazilian Supreme Court as the defender of the rule of law and the Constitution.

Key words: History of the Judiciary, Military regime, Brazilian Supreme Court.

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Sobre o autor
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. O Supremo Tribunal Federal e o regime militar de 1964. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3076, 3 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20557. Acesso em: 25 dez. 2024.

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