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O Supremo Tribunal Federal e o regime militar de 1964

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03/12/2011 às 08:27
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3.3 A ditadura sem retorno

O governo militar aos poucos perdia força popular. O que ficou comprovado nas eleições de 1966.

Em 1966, houve eleições estaduais, e o governo foi derrotado em cinco estados, inclusive os estratégicos Rio de Janeiro e Minas Gerais. Em retaliação, setores militares radicais exigiram novas medidas repressivas. (CARVALHO, 2005, p.161).

E o Supremo continuava a ser a válvula de escape as demandas sociais. Ameaçados constantemente de cassação alguns ministros (Silva, 1997, p.383) não tinham como reagir.

Entre 1964 e 1968, em virtude das intervenções nos Estados, da prisão de um grande número de cidadãos, da suspensão e demissão de funcionários e da cassação de mandatos de governadores, deputados e vereadores, o Supremo viu-se inundado por pedidos de habeas corpus e mandados de segurança. Vários atos institucionais e emendas à Constituição complicaram o quadro jurídico, tornando a posição do Tribunal cada vez mais insustentável. Além de tudo, promulgada a Constituição de 1967, novas emendas e atos institucionais viriam cercear mais ainda sua atuação. (COSTA, 2006, p.168).

A resistência armada também gerou outro problema para a instituição da legalidade.

A partir do aparecimento da guerrilha, no entanto, não só a tortura foi usada contra presos políticos como a pena de morte foi instituída e vários presos foram mortos ou desapareceram sem deixar traços. A lei assegurava ao acusado plena defesa. Concedia habeas corpus sempre que alguém sofresse ou se achasse na iminência de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder. Mas os habeas corpus ficariam suspensos em casos de "crime contra a segurança nacional". (COSTA, 2006, p.170).

A nova constituição de 1967, autoritária em essência, dificultava ainda mais o trabalho do STF. Porém a arbitrariedade explicita seria difundida com o AI-5 em dezembro de 1968. Factualmente uma decisão do Congresso e a insistência do STF na postura liberal opuseram-se a linha dura das forças armadas. Alguns historiadores apontam o discurso Lysistrata de Márcio Moreira foi o estopim para o AI-5.

A situação estava nesse pé quando sobreveio um desafio completamente inesperado. Começou com um discurso na Câmara dos Deputados praticamente despercebido, mas que logo se tornaria questão de vida ou morte. Em fins de agosto e princípio de setembro de 1968 Márcio Moreira Alves, o ex-jornalista agora deputado e combativo crítico do governo, pronunciou uma série de discursos denunciando a brutalidade policial (como na recente repressão aos estudantes em Brasília) e a tortura de presos políticos. Ele sugeriu que os pais protestassem contra o regime militar impedindo que seus filhos assistissem à parada de Sete de Setembro, dia da Independência. Alves propôs a "Operação Lysistrata", durante a qual as mulheres brasileiras, como as suas antepassadas na comédia de Aristófanes, boicotariam seus maridos até que o governo suspendesse a repressão. Os leitores de jornais que viram a notícia acharam graça e nada mais do que isto. O próprio Alves disse depois que a proposta não passou de um chiste, já que a verdadeira crítica ao governo estava em suas duras invectivas contra a tortura e a penetração econômica estrangeira. (...) Mas os militares se fixaram no conselho do deputado às suas mulheres. O "discurso Lysistrata" foi reproduzido e enviado a todos os quartéis do país, deixando lívidos os oficiais que o liam. Afinal, punha-se em dúvida sua honradez e ameaçava-se sua virilidade. Os três ministros militares exigiram que o Congresso suspendesse as imunidades parlamentares de Márcio Alves para que ele fosse processado por insulto às forças armadas (infração da Lei de Segurança Nacional). (...)Márcio Moreira Alves e Hermano Alves (nenhum parentesco), outro deputado com pontos de vista semelhantes, cuja imunidade o presidente também desejava suspender, trabalharam eficientemente seus colegas. Votar pela suspensão 'das imunidades, eles diziam, converteria o Congresso em uma instituição pouco respeitável. Os dois deputados também se prevaleceram da culpa dos parlamentares por não haverem combatido o autoritarismo em momentos cruciais desde 1964. (...)A votação do caso Márcio Moreira e Hermano Alves configurou-se como a mais importante desde 1964. A 10-11 de dezembro os militares da linha dura foram surpreendidos com nova causa para alarme: o Supremo Tribunal ordenara a libertação de 81 estudantes, inclusive os principais líderes das marchas no Rio, que estavam presos desde julho. Todos os jornalistas em Brasília sabiam que o ministro da Justiça Gama e Silva tinha um novo Ato Institucional pronto em sua gaveta. Estaria ele blefando para impressionar o Congresso? A Câmara realizou a votação em 12 de dezembro. Para surpresa de muitos e revolta dos linhas-duras, o pedido do governo foi rejeitado por 216 a 141 (com 15 abstenções). Seguiu-se verdadeiro pandemônio no plenário da Câmara. Alguém começou a cantar o hino nacional e todos fizeram o mesmo. Os deputados congratulavam-se mutuamente por sua coragem. A emoção de haverem desafiado os militares era contagiante. Mas Márcio Alves sabia que era agora o inimigo público número um. Rapidamente abandonou o recinto da Câmara e desapareceu clandestinamente rumo ao exílio. (SKIDMORE, 1988, p. 161-)

Assim o governo cai no momento mais negro da ditadura militar no Brasil. (Cf. HABERT, 2001, p.10)

Nova retomada autoritária aconteceu em 1968. Nesse ano, voltaram a mobilizar-se contra o governo alguns setores da sociedade, sobretudo os operários e os estudantes. Duas greves marcaram a retomada das manifestações operarias. Os estudantes saíram as ruas em grandes marchas pela democratização, e um deles, Edson Lufs, foi morto em uma das manifestações. Tendo a Câmara dos Deputados negada permissão para processar um de seus membros, que fizera um discurso considerado ofensivo às forças armadas, o governo editou novo ate institucional em dezembro. O Ato Institucional no 5 (AI-5) foi o mais radical de todos, o que mais fundo atingiu direitos políticos e civis. O Congresso foi fechado, passando o presidente, general Costa e Silva, a governar ditatorialmente. Foi suspenso o hábeas corpus para crimes contra a segurança nacional, e todos os atos decorrentes do AI-5 foram colocados fora da apreciação judicial. (CARVALHO, 2005, p.161-2)

O poder judicial, cada vez mais aparelhado ao governo e sem poder, passou a figurar apenas como uma estúpida roupa de Estado de Direito num Estado nu.

A 13 de dezembro de 1968, o governo do presidente Costa e Silva baixou o Ato Institucional n a 5, outorgando ao presidente da República poderes excepcionais que lhe permitiriam atuar na ordem institucional sem apreciação do Judiciário. Dessa forma, o Ato se sobrepôs mais uma vez à Constituição vigente. Justificava-se o Ato em nome da ordem, segurança e tranqüilidade, do desenvolvimento econômico e cultural, da harmonia política e social do país, "comprometido por processos subversivos e de guerra revolucionária". (COSTA, 2006, p.171)

Ficava, ainda, suspensa a garantia de habeas corpus nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Excluíam-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com esse Ato Institucional. (COSTA, 2006, p.172)

Era o fim do Estado de Direito no Brasil.


4. As novas roupas do Estado Brasileiro pós-68 e os novos ministros do STF

4.1 As vozes silenciadas.

A pratica de cassação de mandatos e de perseguição de inimigos do regime não começou apenas em 1968. Ela já existia desde o início do regime.

Segundo levantamento de Marcos Figueiredo, entre 1964 e 1973 foram punidas, com perda de direitos políticos, cassação de mandato, aposentadoria e demissão, 4.841 pessoas, sendo maior a concentração de punidos em 1964, 1969 e 1970. Só o AI-1 atingiu 2.990 pessoas. Foram cassados os mandatos de 513 senadores, deputados e vereadores. Perderam os direitos políticos 35 dirigentes sindicais; foram aposentados ou demitidos 3.783 funcionários públicos, dentre os quais 72 professores universitários e 61 pesquisadores científicos. O expurgo nas forças armadas foi particularmente duro, dadas às divisões existentes antes de 1964. A maior parte dos militares, se não todos, que se opunham ao golpe foi excluída das fileiras. Foram expulsos ao todo 1.313 militares, entre os quais 43 generais, 240 coronéis, tenentes-coronéis e majores, 292 capitães e tenentes, 708 suboficiais e sargentos, 30 soldados e marinheiros. Nas policias militar e civil, foram 206 os punidos. O expurgo permitiu as forças armadas eliminar parte da oposição interna e agir com maior desembaraço no poder. (CARVALHO, 2005, p.164)

Entretanto, acirrou-se com o AI-5 a atinge de forma veemente o STF no início de 1969.

Em janeiro de 1969 três ministros do Supremo Tribunal Federal foram forçados a se aposentar: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. O presidente do Tribunal, ministro Gonçalves de Oliveira, renunciou em sinal de protesto. Usando o sexto Ato Institucional de l de fevereiro de 1969, Costa e Silva reduziu então o número de magistrados do Supremo de 16 para 11 e transferiu todos os delitos contra a segurança nacional ou as forças armadas para a jurisdição do Supremo Tribunal Militar e dos tribunais militares de categoria inferior. (SKIDMORE, 1988, p.167).

A mudança na constituição do STF inicia-se em 1965 com o AI-2 e continua com a aposentadoria de diversos ministros. Entretanto ela só irá se completar em 1969 com a aposentadoria compulsória de três ministros e o pedido de aposentadoria de outros dois. (GASPARI, 2002b, p. 233) Segundo Evandro Lins e Silva as aposentadorias em solidariedade apenas serviam para manter as aparências e não criar novos conflitos, pois seriam cinco os ministros aposentados.

Tabela 3 - Membros do STF no dia 31 de Março de 1964
  Nome Posse Saída Motivo da saída
1 Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa 26/01/1946 05/12/1966 Aposentado por tempo de serviço
2 Antonio Carlos Lafayette de Andrada 01/11/1945 03/02/1969 Aposentou-se, supostamente, em protesto as medidas tomadas pelo regime militar e em razão de enfermidade
3 Hahnemann Guimarães 24//10/1946 20/09/1967 Aposentadoria por motivo de doença
4 Luis Gallotti 12/09/1949 16/08/1974 Aposentadoria por tempo de serviço
5 Cândido Motta Filho 13/04/1956 13/09/1967 Aposentadoria por tempo de serviço
6 Antônio Martins Villas Boas 13/02/1957 15/11/1966 Aposentadoria pó tempo de serviço
7 Antônio Gonçalves de Oliveira 10/02/1960 18/01/1969 Aposentou-se, supostamente, em protesto as medidas tomadas pelo regime militar
8 Vitor Nunes Leal 26/11/1960 16/01/1969 Aposentado compulsoriamente com base no AI-5
9 Pedro Rodovalho Marcondes Chaves 14/04/1961 05/06/1967 Aposentado por cumprir mais de 45 anos de judicatura
10 Hermes Lima 11/06/1963 16/01/1969 Aposentado compulsoriamente com base no AI-5
11 Evandro Cavalcanti Lins e Silva 14/08/1963 16/01/1969 Aposentado compulsoriamente com base no AI-5
Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/ministro.asp
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Em relação ao Lafayette de Andrada, posso informar o seguinte: ouvi o ministro Luís Gallotti a informação de que ele não foi casado porque seu irmão, o deputado José Bonifácio, que era o líder da Câmara, assumiu com o governo o compromisso de colher o seu pedido de aposentadoria; de fato ele pediu aposentadoria. Em relação ao Gonçalves de Oliveira , também se dizia que não estava nas boas graças do governo, mas ele veio para Brasília e fez uma carta dizendo que deixava a Corte (...) (SILVA, 1997, p.400)

Ao final do período Costa e Silva somente 1 dos 11 ministros que adentraram no STF permaneceu. Depois de 1969 o único ministro remanescente era o que mais apoiou o regime militar, o ministro Luís Gallotti, o mesmo que permaneceria como presidente do STF durante os anos que se seguiriam. Todos os demais membros que tomaram posse antes de 1964 haviam deixado o STF. Os demais vestiam a toga feita do mais belo tecido da legalidade nua.

Em 1969, sucederam-se novos Atos Institucionais e Emendas Constitucionais. O Ato Institucional nº 6, de 12 de fevereiro de 1969, atingiu novamente o Supremo Tribunal Federal, reduzindo de dezesseis para onze o número de ministros. Estendia novamente a jurisdição da Justiça Militar aos civis nos casos expressos em lei, para repressão de crimes contra a segurança nacional ou instituições militares, competindo ao Supremo Tribunal Militar julgar os governadores de Estado e seus secretários nos crimes acima referidos. Como de costume, excluíam-se de qualquer apreciação judicial todos os atos que infringissem o disposto no novo ato. (COSTA, 2006, p.172-3)

A partir do AI-6, três dos dezesseis ministros em exercício, Evandro Lins, Hermes Lima e Vítor Nunes Leal, foram aposentados compulsoriamente. O ministro Gonçalves de Oliveira renunciou ao cargo em solidariedade aos colegas demitidos e Lafayette de Andrada aposentou-se. Com a nomeação para o Supremo Tribunal de cinco ministros em 1965, quando o seu número fora aumentado de onze para dezesseis, as aposentadorias compulsórias dos três ministros nomeados por Jânio Quadros e João Goulart, a renúncia do ministro Gonçalves de Oliveira, as aposentadorias dos ministros Antônio Carlos Lafayette de Andrada em 1969, Antônio Martins Vilas Boas em 1966, Pedro Rodovalho Marcondes Chaves e Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa em 1967, e a redução do Tribunal novamente para onze ministros, o Supremo encontrava-se em 1969 quase totalmente renovado. As vagas foram preenchidas por ministros da confiança do regime. (COSTA, 2006, p.173)

Apesar de todos os ministros terem mudado, alguns ministros que foram nomeados pelo regime militar ainda tinham alguma sanidade. Aliomar Baleeiro fez um belo debate sobre a razoabilidade do Recurso Ordinário Criminal 1.152 de 1972 no qual um padre teria criticado o governo em sua igreja em Altinópolis para meia dúzia de “gatos pingados” e não estaria cometendo guerra psicológica contra o governo. O recurso foi indeferido vencido Baleeiro, com uma afirmação do Ministro Alckmin acusando o padre de sim criar guerra psicológica através da via social. (LOPES, 2009, p.629 e Ss). As decisões tornaram-se tão vazias e ridículas que o STF perdeu toda a sua credibilidade. Todos viam que estava nu, mesmo que mantivesse a pose.

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Sobre o autor
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. O Supremo Tribunal Federal e o regime militar de 1964. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3076, 3 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20557. Acesso em: 19 mai. 2024.

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