4. As novas roupas do Estado Brasileiro pós-68 e os novos ministros do STF
4.1. As vozes silenciadas
A pratica de cassação de mandatos e de perseguição de inimigos do regime não começou apenas em 1968. Ela já existia desde o início do regime.
Segundo levantamento de Marcos Figueiredo, entre 1964 e 1973 foram punidas, com perda de direitos políticos, cassação de mandato, aposentadoria e demissão, 4.841 pessoas, sendo maior a concentração de punidos em 1964, 1969 e 1970. Só o AI-1 atingiu 2.990 pessoas. Foram cassados os mandatos de 513 senadores, deputados e vereadores. Perderam os direitos políticos 35 dirigentes sindicais; foram aposentados ou demitidos 3.783 funcionários públicos, dentre os quais 72 professores universitários e 61 pesquisadores científicos. O expurgo nas forças armadas foi particularmente duro, dadas às divisões existentes antes de 1964. A maior parte dos militares, se não todos, que se opunham ao golpe foi excluída das fileiras. Foram expulsos ao todo 1.313 militares, entre os quais 43 generais, 240 coronéis, tenentes-coronéis e majores, 292 capitães e tenentes, 708 suboficiais e sargentos, 30 soldados e marinheiros. Nas policias militar e civil, foram 206 os punidos. O expurgo permitiu as forças armadas eliminar parte da oposição interna e agir com maior desembaraço no poder. (CARVALHO, 2005, p.164)
Entretanto, acirrou-se com o AI-5 a atinge de forma veemente o STF no início de 1969.
Em janeiro de 1969 três ministros do Supremo Tribunal Federal foram forçados a se aposentar: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. O presidente do Tribunal, ministro Gonçalves de Oliveira, renunciou em sinal de protesto. Usando o sexto Ato Institucional de l de fevereiro de 1969, Costa e Silva reduziu então o número de magistrados do Supremo de 16 para 11 e transferiu todos os delitos contra a segurança nacional ou as forças armadas para a jurisdição do Supremo Tribunal Militar e dos tribunais militares de categoria inferior. (SKIDMORE, 1988, p.167).
A mudança na constituição do STF inicia-se em 1965 com o AI-2 e continua com a aposentadoria de diversos ministros. Entretanto ela só irá se completar em 1969 com a aposentadoria compulsória de três ministros e o pedido de aposentadoria de outros dois. (GASPARI, 2002b, p. 233) Segundo Evandro Lins e Silva as aposentadorias em solidariedade apenas serviam para manter as aparências e não criar novos conflitos, pois seriam cinco os ministros aposentados.
Tabela 3 - Membros do STF no dia 31 de Março de 1964 | ||||
Nome |
Posse |
Saída |
Motivo da saída |
|
1 |
Alvaro Moutinho Ribeiro da Costa |
26/01/1946 |
05/12/1966 |
Aposentado por tempo de serviço |
2 |
Antonio Carlos Lafayette de Andrada |
01/11/1945 |
03/02/1969 |
Aposentou-se, supostamente, em protesto as medidas tomadas pelo regime militar e em razão de enfermidade |
3 |
Hahnemann Guimarães |
24//10/1946 |
20/09/1967 |
Aposentadoria por motivo de doença |
4 |
Luis Gallotti |
12/09/1949 |
16/08/1974 |
Aposentadoria por tempo de serviço |
5 |
Cândido Motta Filho |
13/04/1956 |
13/09/1967 |
Aposentadoria por tempo de serviço |
6 |
Antônio Martins Villas Boas |
13/02/1957 |
15/11/1966 |
Aposentadoria pó tempo de serviço |
7 |
Antônio Gonçalves de Oliveira |
10/02/1960 |
18/01/1969 |
Aposentou-se, supostamente, em protesto as medidas tomadas pelo regime militar |
8 |
Vitor Nunes Leal |
26/11/1960 |
16/01/1969 |
Aposentado compulsoriamente com base no AI-5 |
9 |
Pedro Rodovalho Marcondes Chaves |
14/04/1961 |
05/06/1967 |
Aposentado por cumprir mais de 45 anos de judicatura |
10 |
Hermes Lima |
11/06/1963 |
16/01/1969 |
Aposentado compulsoriamente com base no AI-5 |
11 |
Evandro Cavalcanti Lins e Silva |
14/08/1963 |
16/01/1969 |
Aposentado compulsoriamente com base no AI-5 |
Fonte: https://www.stf.jus.br/portal/ministro/ministro.asp |
Em relação ao Lafayette de Andrada, posso informar o seguinte: ouvi o ministro Luís Gallotti a informação de que ele não foi casado porque seu irmão, o deputado José Bonifácio, que era o líder da Câmara, assumiu com o governo o compromisso de colher o seu pedido de aposentadoria; de fato ele pediu aposentadoria. Em relação ao Gonçalves de Oliveira , também se dizia que não estava nas boas graças do governo, mas ele veio para Brasília e fez uma carta dizendo que deixava a Corte (...) (SILVA, 1997, p.400)
Ao final do período Costa e Silva somente 1 dos 11 ministros que adentraram no STF permaneceu. Depois de 1969 o único ministro remanescente era o que mais apoiou o regime militar, o ministro Luís Gallotti, o mesmo que permaneceria como presidente do STF durante os anos que se seguiriam. Todos os demais membros que tomaram posse antes de 1964 haviam deixado o STF. Os demais vestiam a toga feita do mais belo tecido da legalidade nua.
Em 1969, sucederam-se novos Atos Institucionais e Emendas Constitucionais. O Ato Institucional nº 6, de 12 de fevereiro de 1969, atingiu novamente o Supremo Tribunal Federal, reduzindo de dezesseis para onze o número de ministros. Estendia novamente a jurisdição da Justiça Militar aos civis nos casos expressos em lei, para repressão de crimes contra a segurança nacional ou instituições militares, competindo ao Supremo Tribunal Militar julgar os governadores de Estado e seus secretários nos crimes acima referidos. Como de costume, excluíam-se de qualquer apreciação judicial todos os atos que infringissem o disposto no novo ato. (COSTA, 2006, p.172-3)
A partir do AI-6, três dos dezesseis ministros em exercício, Evandro Lins, Hermes Lima e Vítor Nunes Leal, foram aposentados compulsoriamente. O ministro Gonçalves de Oliveira renunciou ao cargo em solidariedade aos colegas demitidos e Lafayette de Andrada aposentou-se. Com a nomeação para o Supremo Tribunal de cinco ministros em 1965, quando o seu número fora aumentado de onze para dezesseis, as aposentadorias compulsórias dos três ministros nomeados por Jânio Quadros e João Goulart, a renúncia do ministro Gonçalves de Oliveira, as aposentadorias dos ministros Antônio Carlos Lafayette de Andrada em 1969, Antônio Martins Vilas Boas em 1966, Pedro Rodovalho Marcondes Chaves e Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa em 1967, e a redução do Tribunal novamente para onze ministros, o Supremo encontrava-se em 1969 quase totalmente renovado. As vagas foram preenchidas por ministros da confiança do regime. (COSTA, 2006, p.173)
Apesar de todos os ministros terem mudado, alguns ministros que foram nomeados pelo regime militar ainda tinham alguma sanidade. Aliomar Baleeiro fez um belo debate sobre a razoabilidade do Recurso Ordinário Criminal 1.152 de 1972 no qual um padre teria criticado o governo em sua igreja em Altinópolis para meia dúzia de “gatos pingados” e não estaria cometendo guerra psicológica contra o governo. O recurso foi indeferido vencido Baleeiro, com uma afirmação do Ministro Alckmin acusando o padre de sim criar guerra psicológica através da via social. (LOPES, 2009, p.629 e Ss). As decisões tornaram-se tão vazias e ridículas que o STF perdeu toda a sua credibilidade. Todos viam que estava nu, mesmo que mantivesse a pose.
4.2. Novos Ministros: os nomeados e os aliados do regime.
Abaixo segue a lista dos ministros do STF nomeados pelos presidentes militares.
Tabela 4 – Ministros nomeados pelo regime militar entre 1964-1984 | ||||
Nome |
Entrada |
Saída |
Nomeado por / Observações |
|
1 |
Adalício Coelho Nogueira |
16/11/1965 |
24/02/1972 |
Castelo Branco. Preferiu não assumir a presidência do STF por motivos pessoais em 1969. |
2 |
José Eduardo do Prado Kelly |
16/11/1965 |
18/01/1968 |
Castelo Branco. Eleito diversas vezes deputado era ligado a UDN. Foi aposentado a pedido via decreto. |
3 |
Carlos Medeiros Silva |
16/11/1965 |
18/06/1966 |
Castelo Branco. Foi Procurador Geral da República de Juscelino Kubitschek. Aposentou-se a pedido para exercer o cargo de Ministro da Justiça do governo Castelo Branco. Principal redator da Constituição de 1967. |
4 |
Aliomar de Andrade Baleeiro |
16/11/1965 |
02/05/1975 |
Castelo Branco. Deputado estadual pela UDN. Exerceu a presidência entre 1971-1973 quando se afastou por problemas cardíacos. |
5 |
Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello |
16/11/1965 |
03/01/1975 |
Castelo Branco. Deputado federal pela UDN. Procurador-Geral da República de Castelo Branco, defensor o regime militar dentro do STF. Exerceu a presidência do STF em 1969-71 no auge da repressão que se seguiu ao AI-5. |
6 |
Eloy José da Rocha |
22/08/1966 |
03/06/1977 |
Castelo Branco. Presidiu o STF entre 1973 e 1975. |
7 |
Djaci Alves Falcão |
01/02/1967 |
26/01/1989 |
Castelo Branco. Presidiu o STF entre 1975 e 1977. |
8 |
Adaucto Lucio Cardoso |
14/02/1967 |
10/03/1971 |
Castelo Branco. Membro da UDN e forte opositor de Vargas. Após o julgamento da Reclamação nº 849, decidiu solicitar aposentadoria. |
9 |
Raphael de Barros Monteiro |
23/06/1967 |
03/05/1974 |
Costa e Silva. Irmão do civilista Washington de Barros Monteiro, Falecendo no exercício do cargo. |
10 |
Moacyr Amaral Santos |
06/10/1967 |
25/07/1972 |
Costa e Silva. Principais autores de direito processual no Brasil. |
11 |
Themistocles Brandão Cavalcanti |
06/10/1967 |
14/10/1969 |
Costa e Silva. Aposentado por idade. |
12 |
Carlos Thompson Flores |
16/02/1968 |
27/01/1981 |
Costa e Silva. Presidente do STF de 1977-79. |
13 |
Olavo Bilac Pinto |
03/06/1970 |
09/02/1978 |
Garrastazu Médici. Membro atuante da UDN, no período anterior ao regime e durante o início do regime militar. Também foi presidente da Câmara dos Deputados. |
14 |
Antonio Neder |
16/04/1971 |
10/06/1981 |
Garrastazu Médici. Preencheu a vaga de Adauto Lucio Cardoso. Presidente do STF entre 1979-81. |
15 |
Francisco Manoel Xavier de Albuquerque |
17/04/1972 |
22/02/1983 |
Garrastazu Médici. Foi Procurador Geral da República entre 1969-72, durante o auge da repressão do AI-5. Foi presidente do STF entre 1981-1983. |
16 |
José Geraldo Rodrigues de Alckmin |
03/10/1972 |
06/11/1978 |
Garrastazu Médici. Morreu no exercício do Cargo. |
17 |
João Leitão de Abreu |
24/05/1974 |
11/08/1981 |
Ernesto Geisel. Chefe de gabinete do Ministro da Justiça Men de Azambuja Sá do governo de Castelo Branco. Exerceu ministério de Estado extraordinário no governo Médici. |
18 |
João Baptista Cordeiro Guerra |
16/09/1974 |
16/03/1986 |
Ernesto Geisel. Presidente do STF entre 1983-85. |
19 |
José Carlos Moreira Alves |
18/06/1975 |
22/04/2003 |
Ernesto Geisel. Chefe do Gabinete do Ministro da Justiça entre 1970 e 1971. Foi Procurador Geral da República entre 1972-75. Presidente do STF entre 1985-87. Instalou a Assembléia Nacional Constituinte. |
20 |
Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto |
03/06/1975 |
09/12/1981 |
Ernesto Geisel. |
21 |
Pedro Soares Muñoz |
21/06/1977 |
05/11/1984 |
Ernesto Geisel. |
22 |
Décio Meirelles de Miranda |
22/06/1978 |
02/09/1985. |
Ernesto Geisel. Foi Procurador Geral da República entre 1967-69 auge do período repressivo do AI-5. |
23 |
Luiz Rafael Mayer |
13/12/1978 |
14/03/1989 |
Ernesto Geisel. Exerceu funções de assessoria jurídica aos governos militares. |
24 |
Clovis Ramalhete Maia |
27/03/1981 |
25/02/1982 |
João B. Figueiredo. Autor de diversos estudos sobre legislação federal (inclusive sobre censura) e da Constituição de 1967. |
25 |
Firmino Ferreira Paz |
11/06/1981 |
17/07/1982 |
João B. Figueiredo. Foi Procurador Geral da República durante o período militar. |
26 |
José Néri da Silveira |
01/09/1981 |
24/04/2002 |
João B. Figueiredo. Presidente do STF entre 1989-91. |
27 |
Alfredo Buzaid |
22/03/1982 |
20/07/1984 |
João B. Figueiredo. Ministro da Justiça do Regime Militar nos anos de chumbo entre 1969 e 1974. Muitos o apontam como tolerante a tortura e responsável pela organização da censura no Brasil do período. Ardente defensor dos militares. |
28 |
Oscar Dias Corrêa |
16/04/1982 |
17/01/1989 |
João B. Figueiredo. Foi o Ministro da Justiça do Governo José Sarney por 9 meses. |
29 |
Aldir Guimarães Passarinho |
16/08/1982 |
22/04/1991 |
João B. Figueiredo. |
30 |
José Francisco Rezek |
10/03/1983 04/05/1992 |
14/03/1990 05/02/1997 |
João B. Figueiredo. Renunciou o cargo para exercer o cargo de Ministro das Relações Exteriores do Brasil no governo Collor. Voltou ao STF permanecendo até 1997. Tornou-se juiz da Corte internacional de Justiça em Haia. |
31 |
Sydney Sanches |
13/08/1984 |
26/04/2003 |
João B. Figueiredo. Presidiu o impeachment de Collor e participou da Comissão que elaborou a CF 88 no que tange ao judiciário |
32 |
Luiz Octavio Pires e Albuquerque Gallotti |
20/11/1984 |
27/10/2000 |
João B. Figueiredo. Foi Presidente do Tribunal de Contas da União durante o Regime militar. |
Fonte: https://www.stf.jus.br/portal/ministro/ministro.asp |
Só deixaram totalmente o plenário do STF os membros nomeados pela ditadura militar em 2003 com a aposentadoria de Sydney Sanches. Até 1991 eram maioria e até o ano 2000, doze anos após a constituição de 1988, ainda permaneciam 4 ministros nomeados por militares.
4.3. O Supremo e a redemocratização de 1988: um tópico curto
Em razão da configuração formulada pelo regime militar a transição a democracia não teve participação significativa do poder judiciário. Outras foram tiveram maior influência e participação na transição.
Alem do MDB e da Igreja Católica, duas outras organizações se afirmaram como pontos de resistência ao governo militar. A primeira delas foi a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Criada em 1930 por decreto do governo, a OAB de inicio sofreu oposição da maioria dos advogados, que tinham organização propria, o Instituto dos Advogados do Brasil, criado em 1843. Concebida dentro do espírito corporativo, a OAB significava para eles perda de liberdade e de autonomia. Mas aos poucos ela conseguiu atrair advogados influentes e se firmou como representante da classe. Sua posição em relação ao movimento de 64 foi de inicio ambivalente, dividindo-se seus membros entre o apoio e a oposição. À medida que o regime se tornava mais repressivo, a OAB evoluiu para uma temida oposição. A partir de 1973, no entanto, assumiu oposição aberta. Muitos advogados e juristas continuaram, naturalmente, a prestar seus serviços ao governo, redigindo os atos de exceção, defendendo-os, assumindo postos no Executivo. Vários juristas de prestigio ocuparam o Ministério da justiça. (CARVALHO, 2005, p.185-6)
No campo jurídico a grande contribuição foi da OAB.
(...) a Ordem dos Advogados do Brasil começou a se manifestar, juntando às manifestações da Igreja os seus protestos contra a tortura, a detenção arbitrária e o desaparecimento de prisioneiros políticos. Em 1974, a OAB reuniu-se no Rio de Janeiro, com o propósito de levar o governo a restaurar o habeas corpus e revogar o AI-5. Tal atitude provocou reação negativa de setores militares contrários à abertura.. (COSTA, 2006, p.180)
A OAB, no entanto, em parte por convicção, em parte por interesse profissional, caminhou na direção oposta. O interesse profissional era óbvio, na medida em que o estado de exceção reduzia o campo de atividade dos advogados. O AI-5, como vimos, excluía da apreciação judicial os atos praticados de acordo com suas disposições. As intervenções no Poder judiciário também desmoralizavam a justiça como um todo. Os juizes eram atingidos diretamente, mas, indiretamente, igualmente os advogados eram prejudicados. Muitos membros da OAB, porem, agiam também em função de uma sincera crença na importância dos direitos humanos. A V Conferencia anual da Ordem, realizada em 1974, foi dedicada exatamente aos direitos humanos. A OAB tornou-se daí em diante uma das trincheiras de defesa da legalidade constitucional e civil. Como represália, o governo tentou retirar sua autonomia, vinculando-a ao Ministério do Trabalho, mas sem êxito. Em 1980, seu presidente foi alvo do atentado em que perdeu a vida uma secretaria. O prestigio político da OAB atingiu o auge em 1979, quando seu presidente, Raimundo Faoro, foi cogitado como candidato da oposição a presidência da República. (CARVALHO, 2005, p.186)