4 OBJETIVAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE E NÚMEROS RECENTES APRESENTADOS PELO STF
4.1 OBJETIVAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE
Conforme assevera APPIO, havia "um quase-consenso acadêmico, que atravessou gerações, no sentido de que os efeitos do controle concreto (difuso) eram produzidos somente entre as partes (inter partes)" [126]. O que podia se verificar é que o STF, assim como os demais tribunais, julgava olhando para o passado, buscando, no máximo, corrigir defeitos de procedimento no curso da ação ou a própria justiça (justiça corretiva ou comutativa) da decisão objeto do recurso em Brasília" [127]. Postura diversa da adotada no controle concentrado de constitucionalidade, pois neste o STF "olhava para o futuro" [128].
Assim, conforme fosse o tipo de processo em análise - controle concentrado ou controle difuso de constitucionalidade - a cada julgamento, o STF "tinha de se adaptar ao universo simbólico destas duas dimensões, muito embora, em ambos os casos tratasse de proteger a Constituição federal, assegurando-lhe uniformidade interpretativa" [129], sendo que "do ponto de vista qualitativo, não existe qualquer diferença entre uma decisão adotada no controle difuso da proferida no concentrado" [130].
Essa postura, no entanto, vem sendo modificada. Com os novos instrumentos criados pelo legislador - repercussão geral e súmulas vinculantes - e principalmente pela jurisprudência do STF, o recurso extraordinário vem ganhando características que eram apenas dos processos objetivos
Assevera MORAIS, que a principal característica desta mudança é a "caracterização da natureza objetiva do recurso extraordinário, o qual não deveria ser utilizado como mero instrumento de perseguição de direito subjetivos das partes no processo judicial, mas sim como meio constitucionalmente estipulado para a preservação da própria Constituição vigente" [131].
O já tratado grande volume de processos que chegam para julgamento pelo STF e a necessidade de providências pelo Senado Federal para que a decisão em controle difuso de constitucionalidade passasse a produzir efeitos erga omnes (art. 52, inciso X, da CF) "acabou avalizando uma tendência de maior objetivação do recurso extraordinário, que deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva" [132], sendo que "a mudança mais significativa e definitiva parece estar consubstanciada na eficácia das decisões que, em seu bojo, passaram a ser prolatadas" [133].
Nesse contexto, pode-se verificar que as bases para um controle difuso de constitucionalidade, com decisões que passam a ter eficácia geral e não restrita entre as partes, mesmo sem a interferência do Senado Federal, vêm sendo desenvolvidas legislativa, doutrinária e jurisprudencialmente.
Como anteriormente tratado, a repercussão geral do recurso extraordinário deve ser vista como um novo instrumento para que o STF possa atender efetivamente as peculiares exigências dos nossos tempos. Isso porque, através do julgamento de apenas um recurso extraordinário, este tribunal pode definir qual a melhor interpretação da Constituição e, com isso, dar segurança jurídica e tratamento isonômico aos jurisdicionados.
No recurso extraordinário, ressalte-se novamente, o que importa "não é o fundamento pelo qual cada um aponta existir ou não repercussão geral, mas sim o que efetivamente se discute no processo, isto é, em torno de quais teses a causa gira" [134]. Na síntese de REICHELT:
"Sob o manto da solidariedade social, impõem-se aos sujeitos do processo o dever de aceitar que o seu caso, em uma sociedade pautada por relações jurídicas massificadas, deve ser visto como um dentre diversos outros que apresentam o mesmo perfil. Combinados tais valores, tem-se que a decisão proferida no âmbito dos recursos extraordinários dotados de repercussão geral passa a ser vista como uma solução tão aceitável quanto a oferta de uma decisão individualizada para o caso que eles trouxeram a juízo" [135].
O mesmo se diz das súmulas vinculantes, que também contribuem com a abstrativização do controle difuso, "pois seu objetivo é pôr fim a controvérsias massificadas, isto é, acolher ou rejeitar teses jurídicas, servindo de paradigma para casos futuros" [136]. Trata-se, como já explanado, de instrumento utilizado em controle difuso de constitucionalidade no qual também existe, não raras vezes, reclamo por solução geral.
Uma vez editada nesse novo modelo jurídico, conforme sintetiza BATISTA JUNIOR, "ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei ou súmula vinculante" [137].
De tudo o que foi dito até o momento, tem-se que "a grande marca da abstrativização/objetivação do controle difuso é justamente a substituição do mero julgamento de casos concretos por julgamentos de teses jurídicas" [138], sendo que a possibilidade de uniformização da jurisprudência com esses julgamentos de teses jurídicas, "se apresenta, neste mesmo contexto histórico, como uma ferramenta indispensável para garantir racionalidade ao sistema recursal e, acima de tudo, para salvar o próprio Supremo" [139].
4.1.1 Decisões paradigmas da objetivação do controle difuso
A) Rcl. 4.335/AC:
Reclamação ainda não julgada, contudo, com decisão deferindo o pedido de medida liminar.
Trata-se de reclamação proposta em face de decisão de juiz da Vara de Execuções Penais. Todos os reclamantes cumpriam pena em regime fechado em decorrência da prática de crime hediondo. Apresentaram reclamação com base no julgamento do HC nº 82.959, que reconheceu a inconstitucionalidade da determinação da Lei de Crimes Hediondos que proibia a progressão de regime de cumprimento de pena nestes crimes, na qual solicitaram que o entendimento esposado naquele julgamento fosse também a eles aplicado. O Juiz, entretanto, indeferiu o pedido, sob a alegação de no controle difuso de constitucionalidade a decisão produziria efeitos apenas inter partes.
Na ocasião do julgamento do Habeas Corpus, o STF não havia se pronunciado se o novo precedente teria efeito erga omnes, o fazendo somente em data posterior, quando do início do julgamento da Reclamação nº 4.335 [140].
Na análise do pedido de liminar nesta reclamação, o Min. Gilmar Mendes embasou-se na nova interpretação do STF no sentido de excluir a exigência da comunicação ao Senado Federal para atribuição de efeitos erga omnes às decisões de controle difuso. Sendo assim, deferiu o pedido.
Conforme destaca CÔRTES, "pode-se observar a tendência à admissibilidade, pelo STF, da reclamação para todos os que demonstrarem prejuízo resultante da contrariedade de decisão tomada em controle difuso. Ou seja, mesmo quem não foi parte no processo principal (decisão tido por desrespeitada) teria legitimidade para ingressar com reclamação alegando a contrariedade à decisão do STF" [141].
B) Ag. Reg. ADI 4.071/DF:
"Agravo regimental. Ação direta de inconstitucionalidade manifestamente improcedente. Indeferimento da petição inicial pelo Relator. Art. 4º da Lei nº 9.868/99. 1. É manifestamente improcedente a ação direta de inconstitucionalidade que verse sobre norma (art. 56 da Lei nº 9.430/96) cuja constitucionalidade foi expressamente declarada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, mesmo que em recurso extraordinário. 2. Aplicação do art. 4º da Lei nº 9.868/99, segundo o qual "a petição inicial inepta, não fundamentada e a manifestamente improcedente serão liminarmente indeferidas pelo relator". 3. A alteração da jurisprudência pressupõe a ocorrência de significativas modificações de ordem jurídica, social ou econômica, ou, quando muito, a superveniência de argumentos nitidamente mais relevantes do que aqueles antes prevalecentes, o que não se verifica no caso. 4. O amicus curiae somente pode demandar a sua intervenção até a data em que Relator liberar o processo para pauta. 5. Agravo regimental a que se nega provimento". (STF. Plenário. Ag. Reg. na ADI 4.071-5. Rel. Min. Menezes Direito. Julgado em 22/4/2009).
Neste caso, houve o indeferimento da petição inicial de um ação direta de inconstitucionalidade sob o argumento de que a questão teria sido exaustivamente debatida e decidida no julgamento os recursos extraordinários de nº 377.457/PR e 381.964/MG, ambos de relatoria do Min. Gilmar Mendes e julgados em 17/9/2008.
A matéria envolvida dizia respeito ao conflito aparente entre lei ordinária e lei complementar, o qual deveria ser analisado não pelo critério da hierarquia, mas pela natureza da matéria regrada. Assim, no julgamento daqueles recursos, o STF entendeu que "a isenção prevista na Lei Complementar nº 70/91 configurava norma de natureza materialmente ordinária, razão pela qual, muito embora aprovada sob a forma de lei complementar, com quorum qualificado de votação no Congresso Nacional, considerou válida a sua revogação por lei ordinária, determinada pelo art. 56 da Lei nº 9.430/96" [142].
C) RE 579.951-4/RN:
"ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. VEDAÇÃO NEPOTISMO. NECESSIDADE DE LEI FORMAL. INEXIGIBILIDADE. PROIBIÇÃO QUE DECORRE DO ART. 37, CAPUT, DA CF. RE PROVIDO EM PARTE. I - Embora restrita ao âmbito do Judiciário, a Resolução 7/2005 do Conselho Nacional de Justiça, a prática do nepotismo nos demais Poderes é ilícita. II - A vedação do nepotismo não exige a edição de lei formal para coibir a prática. III - Proibição que decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal. IV - Precedentes. V - RE conhecido e parcialmente provido para anular a nomeação do servidor, aparentado com agente político, ocupante, de cargo em comissão" (STF. Plenário. RE 579.951-4/RN. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Julgado em 20/8/2008).
Este é indicado pela doutrina como mais um caso onde a decisão do STF extravasou o quadro fático da lide selecionada como representativa da controvérsia. Trata-se de discussão sobre o nepotismo, levada ao STF através de recurso extraordinário interposto contra acórdão que entendeu não existir qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade na nomeação de irmão de vereador como secretário de saúde, e irmão do vice-prefeito como motorista.
Segundo FUCK, "ao julgar o RE 579.951/RN (rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 24.10.2008), o Plenário não decidiu apenas sobre os casos de nepotismo de motorista terceirizado e de secretária municipal, mas de todos os cargos de administração pública municipal, estadual e federal, do Judiciário, do Legislativo e do Executivo" [143].
D) RE 565.714-1/SP:
"CONSTITUCIONAL. ART. 7º, INC. IV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. NÃO-RECEPÇÃO DO ART. 3º, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI COMPLEMENTAR PAULISTA N. 432/1985 PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. INCONSTITUCIONALIDADE DE VINCULAÇÃO DO ADICIONAL DE INSALUBRIDADE AO SALÁRIO MÍNIMO: PRECEDENTES. IMPOSSIBILIDADE DA MODIFICAÇÃO DA BASE DE CÁLCULO DO BENEFÍCIO POR DECISÃO JUDICIAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO (STF. Plenário. RE 565.714-1/SP. Rel. Min. Cármen Lúcia. Julgado em 30.04.2008)".
Neste recurso extraordinário, Policiais Militares do Estado de São Paulo pediam a condenação da Fazenda Paulista na obrigação de utilizar como base de cálculo do "adicional de insalubridade o valor total da remuneração recebida (por eles), entendido como o valor total do somatório do padrão RETP e todas as vantagens pagas" ou, alternativamente, a condenação da Fazenda à obrigação "consistente em utilizar como base de cálculo do adicional de insalubridade o valor do padrão somado ao RETP dos vencimentos dos autores" [144]. O cerne da questão foi a recepção, ou não do art. 3º da lei complementar paulista nº432/1985, que previa, in verbis: "O adicional de insalubridade será pago ao funcionário ou servidor de acordo com a classificação nos graus máximo, médio e mínimo, em percentuais de, respectivamente, 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento), que incidirão sobre o valor correspondente a 2 (dois) salários mínimos".
Segundo FUCK, no julgamento deste recurso, o STF decidiu além das partes, declarando a inconstitucionalidade da utilização do salário-mínimo como base de cálculo ou indexador de vantagem para os empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho, e para os servidores públicos da três esferas, "ainda que tenha mantido a aplicação do salário-mínimo até que nova legislação, ou acordo coletivo, estabelecesse outra base de cálculo e indexador - e não apenas para os policiais militares do Estado de São Paulo que estavam representados no recurso extraordinário" [145].
4.2. NÚMEROS APRESENTADOS PELO STF APÓS A EXIGÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL E EDIÇÃO DE SÚMULAS VINCULANTES
Conforme o Relatório 2010, apresentado pelo STF [146], a aplicação criteriosa da repercussão geral e a edição de súmulas vinculantes, além dos demais institutos citados no item "2.1" deste trabalho, já apresentam incontáveis frutos desde sua inserção no sistema jurídico brasileiro. O julgamento de um recurso em controle difuso de constitucionalidade, refletindo seus efeitos nas demandas cuja questão constitucional é a mesma, tem reduzido consideravelmente o número de processos que chegam para análise pela Suprema Corte.
Verifica-se que foram distribuídos 41.098 processos ao STF em 2010, sendo que os números apresentados em 2007 eram de uma distribuição de 106.128 feitos. Assim, em 2010 houve uma média de 342 processos/mês para cada Ministro, em detrimento de 884 processos/mês em 2007.
Neste relatório consta que "os números no STF revelam um desempenho extremamente animador em termos de resposta aos apelos da sociedade por mais efetividade na prestação jurisdicional" [147].
Finalizado o exercício de 2010, o STF chegou "à marca de 88.701 feitos em tramitação, que equivale a uma redução de 9,6% em relação ao ano de 2009 e um fato histórico para o Tribunal, que, depois de onze anos, alcança um acervo processual abaixo de 90 mil processos" [148].
Segundo consta no relatório, "os bons resultados alcançados pelo STF em 2010 decorrem, em grande parte, da aplicação da sistemática da Repercussão Geral, que possibilitou, em pouco mais de três anos, a mudança do perfil dos julgamentos do Tribunal. Desde 2007, houve redução de 38% no número de recursos extraordinários e agravam de instrumento que chegam à Corte" [149].
Em 2007, foram autuados 100.880 agravos de instrumento e recursos extraordinários, sendo distribuídos 99.224. Em 2008, este número diminuiu para 64.944 autuados e 61.665 distribuídos. No ano de 2009, foram 52.683 autuados e 35.739 distribuídos. Por fim, no ano de 2010, foram 63.186 recursos autuados e apenas 31.539 recursos distribuídos.
Verifica-se que os resultados almejados com a criação dos novos institutos estão sendo alcançados, podendo o STF, com isso, fortalecer o seu papel constitucional, aprimorando o processo decisório e unificando o entendimento acerca das matérias relevantes.