A Lei Complementar nº 135, de 2010, inovou o ordenamento jurídico eleitoral, ao estabelecer várias hipóteses em que a decisão judicial tem plena eficácia, antes do trânsito em julgado, desde que proferida por órgão colegiado. As hipóteses são:
Art. 1º São inelegíveis:
I - para qualquer cargo:
d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:
1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;
2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;
3. contra o meio ambiente e a saúde pública;
4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;
5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;
6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;
7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;
8. de redução à condição análoga à de escravo;
9. contra a vida e a dignidade sexual; e
10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;
h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;
j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição;
l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena;
n) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, em razão de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar caracterização de inelegibilidade, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão que reconhecer a fraude;
p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão, observando-se o procedimento previsto no art. 22;
Art. 15. Transitada em julgado ou publicada a decisão proferida por órgão colegiado que declarar a inelegibilidade do candidato, ser-lhe-á negado registro, ou cancelado, se já tiver sido feito, ou declarado nulo o diploma, se já expedido.
Doutrina e jurisprudência começam a divergir sobre um tema:
A sanção eleitoral sem a exigência do trânsito em julgado fere o princípio da não culpabilidade antecipada?
Em resposta a relevante indagação, temos que estabelecer outras premissas:
Os políticos brasileiros não têm a coragem nem a condição ética necessária para transformar a legislação eleitoral mais eficaz no combate da corrupção eleitoral, portanto, cabe ao jurista e ao juiz no julgamento das ações fazer a interpretação que seja a mais adequada ao reforço dos instrumentos que são essenciais ao fortalecimento do regime democrático, quais sejam, as ações eleitorais que têm como principal escopo evitar que corruptos e políticos marginais direcionem as suas nebulosas atividades na administração da res pública.
Neste sentido, o Brasil que enseja entrar no primeiro mundo deve, urgentemente, responder a quatro simples perguntas:
1)É razoável um aspirante a um mandato eletivo, que tem vários processos criminais e ainda responde a várias ações civis públicas por improbidade administrativa em virtude de desvios de verbas públicas, ser elegível? Ou seja, ser um pretenso candidato a gerir os recursos oriundos do Estado?
2)A moralidade não seria a primeira característica a ser averiguada como condição de elegibilidade a um aspirante de um cargo público?
3)Há condições éticas mínimas necessárias para ocupar um cargo político?
4)O princípio do estado de inocência é o escudo fiel protetor dos políticos corruptos e um fator intransponível que permite a perpetuação de seres ímprobos no poder?
Para responder a tais indagações, deixo, ab initio, que não poderemos nos deter a nenhuma interpretação estritamente positivista, pois os nossos legisladores reconhecidamente "convenientes" jamais teriam interesse em patrocinar leis probas, é dizer, sem "furos" e que não pudessem levar a interpretações nefastas ou de conveniência duvidosas.
Há, na realidade, um conflito, entre o princípio da não culpabilidade antecipada e o do princípio da vida pregressa proba.
Um de índole processual penal defende que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". (Fundamento constitucional: art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.)
Outro de índole administrativo-eleitoral defende que a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na Administração direta ou indireta, deve ser considerada a conduta moral baseada na vida pregressa do pretenso candidato. (Fundamento constitucional: art. 14, § 9º, c.c. art. 37, todos da Constituição Federal.)
Tal conflito só pode ser resolvido pelo princípio da proporcionalidade:
O princípio da proporcionalidade é operado através da verificação, pelo juiz, de determinado caso concreto, no qual surja o conflito de dois interesses juridicamente protegidos. Em caso afirmativo, deverão estes interesses, postos em causa, ser pesados e ponderados. A partir daí estabelecer-se-ão os limites de atuação das normas, na verificação do interesse predominante. Deste modo, o magistrado, mediante minuciosa valoração dos interesses, decidirá em que medida deve-se fazer prevalecer um ou outro interesse, impondo as restrições necessárias ao resguardo de outros bens jurídicos.
Realmente, com frequência, o julgador depara com dilemas em que a solução de um problema processual implica o sacrifício de um valor conflitante com outro, não obstante ambos tenham proteção legal. Nesse caso, devemos valorar os princípios em conflito, estabelecendo, em cada caso, que direito ou prerrogativa deva prevalecer.
Na valoração dos princípios conflitantes, há duas afirmações a serem fixadas:
Primeira: "não permitir" que um pretenso candidato com vida pregressa reconhecidamente ímproba concorra a um cargo público viola o princípio do estado de inocência (modernamente há a denominação "princípio da não culpabilidade antecipada").
Segunda: "permitir" que um pretenso candidato com vida pregressa reconhecidamente ímproba concorra a um cargo público viola o princípio da vida pregressa proba.
Na solução do conflito, é preciso desvendar o seguinte paradigma: se quaisquer das soluções afrontarão direitos, qual a solução menos injusta, ou seja, qual a solução que, dentro das desvantagens, apresentará mais vantagem à solução do litígio, de modo que se dê a solução concreta mais justa?
O princípio da proporcionalidade exige também que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesado ou posto em perigo, e o bem de que pode alguém ser privado. Assim, não teria sentido proteger, em nome do estado de inocência, um pretenso corrupto em detrimento ao dano que o mesmo pode acarretar à res pública.
Foi justamente através de princípios que foi imposta a "fidelidade partidária" e foi reforçado em todo Brasil o combate ao nepotismo arraigado nos três poderes e será através de princípios que podemos defender de forma veemente que a moralidade é pressuposto básico de ascensão ou ingresso a qualquer cargo público.
Defende o Ministro José Augusto Delgado no artigo "Reflexões doutrinárias e jurisprudenciais sobre o art. 41-A da Lei nº 9.504/1997" que
A previsão do princípio da moralidade, de forma expressa e autônoma, na Constituição Federal, reforçou o entendimento de que qualquer atividade voltada para realizar fins estatais somente alcança aperfeiçoamento se for prestigiada pelo cumprimento das regras morais que lhe são impostas e pela vinculação à disciplina legislativa que lhe diz respeito.
Esse panorama impõe obrigatoriedade ao Poder Judiciário de examinar, do modo mais amplo possível, a conduta do agente que se candidata a qualquer cargo eletivo, a fim de verificar se a sua eleição para integrar o Poder Executivo ou Legislativo ocorreu em conformidade com os postulados democráticos, especialmente com os que consagram o respeito à dignidade humana, ao valor da liberdade do voto, à legalidade e à igualdade.
No círculo dessas ideias a serem seguidas pelo Poder Judiciário, deve preponderar o entendimento de que a carga valorativa a ser prestigiada nas relações jurídicas eleitorais, por influência das circunstâncias que estão presentes na situação em análise, deve ser a moral legitimada pelo próprio Direito, isto é, a que esteja contida na coerção de uma norma reconhecida como existente, válida, eficaz, efetiva e em harmonia com os desígnios da Constituição Federal.
Destaque-se a ementa do Recurso Ordinário nº 1.133 – RJ, em que o ex-Ministro do Tribunal Superior Eleitoral, José Delgado, ressalvou o seu entendimento pessoal:
A autorização constitucional para que Lei Complementar estabelecesse outros casos de inelegibilidade impõe uma condição de natureza absoluta: a de que fosse considerada a vida pregressa do candidato. Isto posto, determinou, expressamente, que candidato que tenha sua vida pregressa maculada não pode concorrer às eleições.
A exigência, portanto, de sentença transitada em julgado não se constitui requisito de natureza constitucional. Ela pode ser exigida em circunstâncias que não apresentam uma tempestade de fatos caracterizadores de improbidade administrativa e de que o candidato não apresenta uma vida pregressa confiável para o exercício da função pública.
Em se tratando de processos crimes, o ordenamento jurídico coloca à disposição do acusado o direito de trancar a ação penal por ausência de justa causa para o oferecimento da denúncia. Em se tratando de acusação de prática de ilícitos administrativos, improbidade administrativa, o fato pode ser provisoriamente afastado, no círculo de ação ordinária, por via de tutela antecipada, onde pode ser reconhecida a verossimilhança do direito alegado.
Hoje, com notória proliferação de políticos desonestos causando incomensuráveis danos ao erário público, o juiz jamais pode afirmar que desconhece a vida pregressa ímproba de um pretenso candidato, pois a própria Lei nº 64/1990 autoriza [01] que o Juiz ou Tribunal, forme a sua convicção pela livre apreciação da prova, atendendo aos fatos e às circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mencionando, na decisão, os que motivaram seu convencimento, ou seja, no Direito Eleitoral, o clássico paradigma de "o juiz está adstrito aos autos" é substituído por um moderno com fito de prestar eficácia social às diretrizes dos preceitos constitucionais, qual seja, "o juiz está adstrito ao mundo das eleições".
No mesmo sentido, certa vez, o ex-Ministro do TSE, Torquato Jardim, profetizou com maestria:
O que faz a norma, ao tutelar valores fundamentais à eficácia social do regime democrático representativo, é exigir do Juiz sua imersão total no meio social e político no qual exerça seu mister; é impor-lhe vivência com a realidade sociológica e as nuances do processo político que, por intermédio do direito positivo com as peculiaridades inerentes à imparcialidade de decisão do Judiciário, deve ele, provocado na forma da lei, controlar, com o fim de assegurar a normalidade e a legitimidade das eleições e o interesse público de lisura eleitoral. Não lhe permite a norma pretender ignorar o que dos autos não conste; ao contrário, exige-lhe a lei, que instrumente a realidade legal e a eficácia social da Constituição, que acompanhe ele a vida social e política de sua comunidade. De distante e pretensiosamente diferente observador da cena à sua volta, torna-se o julgador, por imposição legal, um "spectateur engagé" – na feliz expressão com que se descreveu a vida intelectual de Raimond Aron. [02]
Nesse contexto, razão assiste a Djalma Pinto [03] quando afirma que a exigência de trânsito em julgado de condenação para simples aferição de improbidade, em última análise, significa prestigiá-la estimulando os governantes desonestos a persistirem na sua sina, tornando impotente a ordem jurídica para enfrentá-los, como se o Direito pátrio, no limiar do terceiro milênio, não dispusesse de mecanismo para dar satisfação aos seus legítimos destinatários: o povo brasileiro. Povo este desiludido e desencantado com as soluções propostas sempre tendentes à preservação dos direitos políticos dos comprovadamente sem probidade.
No julgamento do Registro de Candidatura nº 2.401 do TRE-RJ a Juíza Jacqueline Lima Montenegro também defendeu a desnecessidade do trânsito em julgado para considerar inelegível o pretenso candidato, e destacando:
(...) o momento histórico-social em que vivemos não se coaduna com interpretações restritivas dos comandos principiológicos autoaplicáveis, contidos na Contituição. Vivemos momentos em que se assanham rumores de desenvolvimento de agentes públicos com toda sorte de infrações penais, alguns deles com fortes indícios de realidade, de modo que não me parece que o legislador constituinte tenha querido ficar adstrito à ideia de tornar inelegível apenas aqueles que já contam com sentença penal condenatória.
Insta acentuar que o princípio da não culpabilidade antecipada é natureza processual penal e as instâncias processual penal e eleitoral são diversas e não vinculativas. Podemos citar dois exemplos desta total independência das disciplinas:
a)Um presidente do Brasil já teve os direitos políticos cassados no âmbito político-eleitoral e no processo criminal, fazendo uso dos princípios da não culpabilidade antecipada que fundamenta o in dubio pro reo, foi absolvido pelo STF.
b)No âmbito político-eleitoral, é possível a cassação de mandatos apenas baseado na ausência do decoro parlamentar, como aconteceu no escândalo do mensalão, em que alguns dos cassados ainda estão sendo processados criminalmente.
Em nenhum dos dois casos supracitados houve violação ao princípio que a doutrina clássica denomina "presunção do estado de inocência", por quê?
Porque temos de fazer uma divisão:
a)princípio da não culpabilidade antecipada (ou presunção do estado de inocência) é direcionado ao processo penal (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória), aqui, o bem jurídico tutelado é a liberdade individual.
b)Princípio da vida pregressa proba é destinado ao Direito Eleitoral. O bem jurídico tutelado é de natureza coletiva, destarte, de interesse de todos, para os quais é primordialmente salutar que as res pública esteja protegida de criminosos e indivíduos ímprobos.
Djalma Pinto, [04] ao comentar o item "registro de pessoa sem idoneidade" afirma:
Ao deferir-se o registro de pessoa indiciada, denunciada ou condenada pela prática de crime grave, cuja autoria e materialidade estejam bem demonstradas, nega-se efetividade ao princípio que exige vida pregressa compatível com a magnitude da representação popular. O fato de tornar-se a decisão, que o concede, irrecorrível não transforma, entretanto, em elegível o infrator. A comprovada atuação à margem da lei, por razões inexplicáveis, mesmo contrariando a Constituição, pode até não ser levada em consideração, deferindo-se, então, o registro. Jamais subtrai, porém, a condição de inelegível ao cidadão registrado que a Lei Maior desautoriza o reconhecimento de elegibilidade, em decorrência das comprovadas ilicitudes por ele cometidas. É que os comprovadamente marginais não perdem a condição de infratores em decorrência do registro de suas candidaturas. A Constituição mantém-se violada. Como consequência da incorreta aplicação do Texto constitucional, a população acaba perplexa com o perfil de muitos dos eleitos. O Parlamento não é reformatório para infrator, é preciso uma compreensão de todos nesse sentido. Não tem obviamente a atribuição de acolher acusado da prática de crimes contra a Administração, daí por que somente cidadãos dignos, sem conta a acertar com a Justiça, devem a ele ter acesso.
Defendemos a prevalência do princípio da vida pregressa proba e ainda entendemos que nenhuma liberdade pública é absoluta, portanto, quando se percebe que a moralidade é tutelada como princípio coletivo, deve-se impor o sacrifício do interesse estritamente individual, assim, entre um princípio que pode se tornar uma armadura blindada com escopo de proteger atividades imorais e ilícitas, atentando frontalmente as bases de um verdadeiro Estado democrático de Direito, deve prevalecer que defende a moralização das atividades dos homens públicos, qual seja, o princípio da vida pregressa proba.
Em síntese, anoto que só fazendo uso do princípio da vida pregressa proba e da coragem de todos que integram a justiça eleitoral poderemos elidir do cenário político os seres ímprobos como forma de construir uma democracia plena em que a moralidade, a dignidade da pessoa humana e a cidadania sejam os pressupostos básicos de um verdadeiro Estado democrático.
Com a última palavra o Supremo Tribunal Federal que deve aceitar como relevantes os argumentos supracitados e julgar constitucional a lei da probidade (Lei da Ficha Limpa) ou elidir de uma só vez a esperança do povo brasileiro de termos políticos comprometidos com a moralidade administrativa.
Notas
- . Art. 7º, parágrafo único.
- . Ministro Torquato Jardim, do TSE, no Recurso nº 9.354, Porto Alegre/RS, Acórdão nº 13.428, Revista de Jurisprudência do TSE, v. 6, nº l, p. 332.
- . Djalma Pinto. Elegibilidade no Direito brasileiro. São Paulo: Atlas, 2008.
- . Djalma Pinto. Elegibilidade no Direito brasileiro. São Paulo: Atlas, 2008, p. 45.