Na capital da Paraíba, segundo divulgou o IBGE, apenas em três bairros de João Pessoa não houve quem se declarasse viver em união homoafetiva no recenseamento de 2010: em 95% dos bairros que compõem João Pessoa houve quem se declarasse viver em união estável com companheira ou companheiro do mesmo sexo.
Segundo os registros do IBGE, há em toda João Pessoa 718.919 domicílios. Destes, 396 apresentaram declaração de vida conjugal homoafetiva: "Dos 63 bairros de João Pessoa, 38 têm até cinco domicílios nestes moldes segundo a apuração."
Ocorre, porém, que na mesma Paraíba, em 19 de novembro de 2011 a Ong Movimento do Espírito Lilás (MEL) apurou que teria havido uma média mensal de 2 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais assassinados na Paraíba, somente nos oito dos 223 municípios da Paraíba: Em dez meses, 18 pessoas foram mortas no estado [afirmou o presidente do MEL, Renan Palmeira].
Dados compilados pelo histórico Grupo Gay da Bahia (BBG) dão conta que a Paraíba está em segundo lugar no ranking nacional de crimes cometidos com motivação homofóbica. O estado de Pernambuco ocupa o primeiro lugar com 19 crimes. A Bahia e São Paulo dividem a terceira posição, cada um com 17 homicídios.
Ainda segundo matéria publicada no sítio Gay 1 Brasil, integrantes da Ong MEL percorreram, por dois meses, às próprias expensas e em companhia de representantes da OAB, seccional da Paraíba, delegacias de 8 municípios do estado (Santa Rita, Sousa, Patos, Bananeiras, Campina Grande, Queimadas, Cabedelo e João Pessoa), levantando dados acerca dos delitos por motivação de ódio contra LGBTTs: “Não existe um levantamento oficial. Nós viajamos com recursos próprios para realizar a primeira parte do levantamento”, disse Renan Palmeira.
Fato. Até o ano passado, apenas se podia contar com o trabalho sistemático (e por muitos anos incompreendido) do antropólogo fundador do GGB e principal responsável pela iniciativa da reunião das notícias veiculadas na imprensa sobre crimes vitimando homossexuais, travestis e transexuais. Hoje, nem isso. O acadêmico Luiz Mott comunicou publicamente em dezembro de 2011 que não mais faria essa compilação dos crimes de natureza homofóbica praticados (impunemente) no Brasil: aviso pela última vez: transfiro à Secretaria de Direitos Humanos a responsabilidade pela manutenção do banco de dados sobre assassinatos de LGBT no Brasil.
Desde o início dessa catalogação, divulgada em agosto de 1981, no Boletim nº 1 do GGB (MOTT, 2011, pág. 11), o Grupo deixava explícito que ela era certamente incompleta. No entanto, nesses já mais de 17 anos que se tem podido contar com linhas de financiamento (nacionais, internacionais) para pesquisas e projetos, jamais qualquer Ong ou núcleo acadêmico de pesquisa teve a iniciativa de tomar a si a tarefa de aperfeiçoar aquela compilação. A única pesquisa que se tem notícia a monitorar o encaminhamento dado pelas instituições policiais e judiciárias aos delitos originários pelo ódio a LGBTTs foi realizada pelos antropólogos Sérgio Carrara e Adriana R. B. Vianna, do IMS/UERJ, e divulgada em 2004.
Segundo informam, os pesquisadores partiram de notícias veiculadas em jornais e, em seguida, buscaram localizar os seus desdobramentos nos arquivos da polícia e do Judiciário fluminenses. Foram encontrados “105 registros de ocorrência e 57 processos, envolvendo 108 vítimas do sexo masculino que apareceram na imprensa como homossexuais” (CARRARA e VIANNA, 2004, p. 366, nota 5). Parte do mesmo contexto no qual, em 1992, por exemplo, 92% dos homicídios foram arquivados no município do Rio de Janeiro (Soares et al apud CARRARA e VIANNA, 2004, p. 372, nota 9), aqueles 105 registros de ocorrência resultaram em apenas 57 processos. Dos 23 discutidos no artigo, 15 foram arquivados; em 5 houve condenações; e em 3, absolvição (CARRARA e VIANNA, 2004, p. 366, nota 5 e p. 372).
Os 23 processos analisados tratam de crimes de latrocínio (art. 157 do CP). Para melhor observar e discutir as sociodinâmicas presentes nesse tipo penal quando homossexuais (masculinos) são as vítimas, em contexto onde a homossexualidade é culturalmente desqualificada, Carrara e Vianna trabalham a partir da noção de “crimes de lucro”, proposta por Ramos e Borges em 2001. Estes autores definem “crimes de lucro” como formas de violência que visam a obtenção de algum ganho – chantagem, extorsão, por exemplo (RAMOS e BORGES, 2001, 75). Conseqüência da fixação dos homossexuais no lugar da abjeção e da ignomínia, a engendrar relações pautadas pela clandestinidade, predominaram, nos casos presentes nos autos examinados, a assimetria socioeconômica e geracional entre os assassinos e suas vítimas. Em diversos deles os criminosos foram apresentados como “garotos de programa”, embora igualmente tenha-se verificado exceções a essa característica geral (CARRARA e VIANNA, 2004, p. 367 e nota 7).
Depois de examinarem os 23 processos criminais autuados entre 1981 e 1989, tendo homossexuais masculinos como vítimas, Carrara e Vianna concluíram que os campos policial e judiciário penal (neste incluídos advogados, promotores e magistrados) mostravam-se fortemente influenciados pelas noções fixadas “por psiquiatras, sexólogos e médicos-legistas ao longo do século XX, segundo as quais a homossexualidade era compreendida como doença ou anomalia” (CARRARA e VIANNA, 2004, p. 366). Essa forma de representação da homossexualidade (“a gramática ativo-passivo”, aliada às noções das vítimas como seres “melancólicos”, “tristes”, “solitários”, “promíscuos”, adictos ao sexo, degenerados, anômalos) marcava de forma determinante os discursos dos profissionais de ambos os campos e, via de conseqüência, os modos de desempenho das funções investigativa e julgadora.
Por um lado, a sexualidade da vítima aparece majoritariamente vista no interior dessa moldura desqualificatória e culpabilizadora, enquanto que a dos agressores “nunca é problematizada de fato, uma vez que a capacidade de ser sexualmente ‘ativo’ os inclui na categoria mais geral de ‘homens’”, isto é, livres da classificação desqualificante de homossexuais (CARRARA e VIANNA, 2004, p. 381). Profundamente influenciados por tais representações sentenças ambivalentes foram produzidas:
Em pelo menos um dos casos, o assassinato do professor AVB, sua evocação com sucesso parece ter sido decisiva para a absolvição do réu confesso. Em um maior número de casos, ou porque a vítima não consegue ser inteiramente capturada nessa imagem ou porque para alguns juízes ela não justifica inocentar um assassino, os réus acabam condenados (CARRARA e VIANNA, 2004, p. 382).
Os achados dessa pesquisa nos levam à constatação de que, longe do ideal de neutralidade e imparcialidade difundido como sendo o seu modus operandi, o Judiciário na realidade de seu ofício cotidiano produziu decisões marcadamente influenciadas pelas pessoais representações da homossexualidade que seus agentes sejam portadores. Por ausência de pesquisas e dados estatísticos, não sabemos como o Judiciário e a polícia judiciária tem enfrentado tais crimes em épocas mais recentes.
No entanto, tendo em vista a espiral ascendente dos delitos motivados por essa representação desqualificadora e estigmatizante da homossexualidade, travestilidade e transgeneridade, é possível imaginar, igualmente, a continuidade da impunidade específica, no grande oceano de impunidade geral que nos caracteriza. Fator que atua como elemento estimulador, ao lado dos discursos reprovadores das homossexualidades, partindo de personalidades públicas como os Deputados Federais integrantes da chamada “Bancada Evangélica” (sic) e algumas autoridades eclesiásticas – católicas e evangélicas.
Na opinião da Senadora Marta Suplicy, de 1995 – quando ela apresentou o projeto de parceria civil homoafetiva -, até os dias atuais, “o Brasil retrocedeu e muito. O Judiciário avançou e o Executivo avançou [...], ele avançou corajosamente, quem se apequena, quem tem medo, é o Legislativo. O Legislativo não avança.” (FILHO, 2011).
No canal de denúncias de violações dos direitos humanos instituído pelo Governo federal em janeiro de 2011, após seis meses o Módulo LGBT (disque 100) ostentava 560 reclamações – o que representa 3 por dia. Desse total, 20% se originaram em São Paulo. O Presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis e Transexuais – ABGLT –, Toni Reis, afirma tratar-se de um número muito elevado e grave, principalmente tomando em referência o fato de que o número da central de denúncia ainda não era de amplo conhecimento do público-alvo. Em novembro de 2011 o serviço contabilizava 1.067 denúncias. Destas, foram apuradas 3.455 violações. No topo aparecem a violência psicológica, com 46,5% e a discriminação, com 29,41% (DISQUE, 2011). A Ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, divulgou nota afirmando que “a situação é urgente e merece toda a nossa atenção para a promoção de um ambiente de paz e respeito à diversidade” (GAY1, 21/07/2011).
Alie-se a este quadro a capacidade que tem demonstrado o bloco evangélico para submeter todo o Congresso à sua peculiar visão de mundo e impedir que o Legislativo Federal cumpra sua função e regulamente a Constituição da República, fixando as sanções decorrentes das práticas discriminatórias em razão de orientação sexual e identidade de gênero. Na atual legislatura, a Frente Parlamentar Evangélica (um fenômeno sui generis, em se tratando de país laico) contabiliza 66 deputados “cristãos”, de um total de 513, o que equivale dizer que 447 são laicos. No Senado, de um total de 81, somente 3 buscam impor sua pessoal visão religiosa sobre a nação, enquanto que 78 seguem os preceitos constitucionais da separação entre estado e religião (GERALD, 2012). Embora tão minoritários, tais parlamentares vem conseguindo aparelhar e impor a paralisia de todo o Congresso Nacional no tocante ao reconhecimento e proteção dos Direitos Humanos ao segmento de cidadãos composto por travestis, transexuais, gays, lésbicas e bissexuais. Ao imporem sua visão de mundo sobre o Legislativo, terminam por impô-la sobre toda a nação, afrontando o princípio republicano da laicidade.
Enquanto o Congresso Nacional brasileiro se deixa pautar pelas pessoais convicções religiosas de sua diminuta parcela (66 deputados e 3 senadores), são passados 24 anos desde que a Constituição estabeleceu o princípio da não discriminação, independentemente do motivo. No curso desse tempo, o mundo civilizado tem cada vez mais reconhecido as homossexualidades enquanto uma modalidade de orientação sexual e avançado na efetividade da cidadania isonômica em relação aos heterossexuais. Personalidades como o Secretário Geral da ONU Ban Ki-moon; a Secretária de Estado dos EUA, Hilary Clinton; e a Presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, já se manifestaram publicamente em defesa dos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Travestis, Transexuais.
A Alta Comissária da ONU, Navy Pillay, tem chamado atenção dos governos nacionais para o continuado aumento dos crimes homofóbicos e os exortado a tomarem medidas para acabar com a discriminação e com o preconceito baseado na orientação sexual ou na identidade de gênero. Segundo Pillay, “Ninguém tem o direito de tratar um grupo de pessoas como sendo de menor valor, menos merecedores ou menos dignos de respeito” (ONU, 2011).
Em sete de fevereiro do corrente ano o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em sentença unânime proferida no caso Vejdeland e outros v. Suécia, declarou que o direito à liberdade de expressão não pode estar a serviço da intolerância, da promoção do ódio e da estigmatização: Fases de conteúdo discriminatório, ofensivas aos homossexuais como grupo, representam imputações graves e danosas, ainda que não haja incitamento direto a crimes de ódio. Para a Corte Européia, a discriminação fundada na orientação sexual é tão ofensiva quando aquela baseada em “raça, origem e cor” (VEJDELAND, 2012).
Durante painel na 19ª Reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, realizada em Genebra em 07 de março de 2012, as práticas discriminatórias relacionadas com a orientação sexual e identidade de gênero integrava a agenda de discussões. A alta comissária dos Direitos Humanos da ONU, Navi Pillay, mencionou o modus operandi dessa violência específica: "Temos relatórios sobre homens gays atacados por agressores que gritavam insultos homofóbicos e sobre outros mortos na rua, lésbicas submetidas a estupros coletivos, às vezes descritos como ''estupros corretivos'': "Pessoas transexuais agredidas sexualmente e apedrejadas até a morte, com os corpos tão desfigurados que era quase impossível reconhecê-las. E também temos informação sobre o abuso cometido em celas de delegacias e prisões", acrescentou Pillay (EFE, 2012). Suponho ser desnecessário destacar que os tipos de violências referidos por Pillay são profundamente familiares e frequentes em nosso Brasil. Em vídeo apresentado durante a sessão, o Secretário Geral Ban Ki-moon voltou a se manifestar contra a discriminação e violência baseadas na orientação sexual e identidade de gênero:
"A todos aqueles que são lésbicas, gays, bissexuais ou transexuais, permitam-me dizer que vocês não estão sós. Sua luta contra a violência e a discriminação é uma luta conjunta. Qualquer ataque sobre vocês é um ataque sobre os valores universais".
Ban Ki-moon acrescentou ainda que esse segmento social sofre discriminação nos empregos, escolas e hospitais, assim como ataques pessoais que incluem a violência sexual (ONU, 2012).
Até mesmo Cuba, país que nas primeiras décadas de sua revolução executou política de violenta repressão e mesmo assassinato contra travestis, gays e lésbicas, manifestou-se contrária à discriminação por motivo de orientação sexual e identidade de gênero. Seu delegado à reunião, Juan Antonio Quintanilla, declarou: “todo ato de discriminação ou violência contra qualquer pessoa é condenável, injustificado e ilegal, incluindo aqueles sustentados em motivos como raça, cor, sexo, orientação sexual, idioma ou religião” (PRENSA LATINA, 2012).
No Brasil, a além da ministra dos direitos humanos e da ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres, o Ministro de nosso tribunal constitucional, Carlos Ayres Britto, já se pronunciou publicamente sobre a violência e a discriminação sofrida por esse segmento social. Em sua opinião, trata-se de uma "prática que chafurda no lamaçal do ódio". Britto também defendeu a tipificação dessa conduta (entrevista ao jornal Folha de São Paulo, em 04/07/2011).
Diante de semelhante conjuntura, uma pergunta surge, inevitável:
– Seguirão os representantes do povo brasileiro a permitir que se repita a mesma história verificada durante a luta contra a escravidão, quando Brasil figurou na história como o último país a abolir aquela infâmia?
– Quantos mais precisarão ser assassinados e espancados?
Referências:
BARROS, Ana Claudia. Bahia começa 2012 liderando ranking de assassinatos de homossexuais. Terra Magazine, 20/01/2012. Disponível em: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5569036-EI6578,00-Bahia+comeca+com+numero+recorde+de+assassinatos+de+homossexuais.html
CARRARA, Sérgio e VIANNA, Adriana R. B. “As vítimas do Desejo”: Os tribunais cariocas e a homossexualidade nos anos 1980. In: PISCITELLI, Adriana, GREGORI, Maria Filomena e CARRARA, Sérgio (orgs.). Sexualidades e Saberes: Convenções e Fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p. 365-383.
COLAÇO, Rita. PLC 122/2006: O Parlamento, o Executivo, os Direitos Humanos, o fisiologismo e o obscurantismo religioso e cultural. Disponível em:
http://comerdematula.blogspot.com/2011/12/plc-1222006-o-parlamento-o-executivo-os.html
DISQUE Direitos Humanos. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. http://www.sedh.gov.br/clientes/sedh/sedh/2011/12/22-dez-2011-orcamento-2012-para-populacao-lgbt-sera-64-maior-em-relacao-a-2011
EFE, Agência. Países islâmicos abandonam debate na ONU sobre liberdade sexual. UOL notícias, 07/03/2012. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2012/03/07/paises-islamicos-abandonam-debate-na-onu-sobre-liberdade-sexual.htm
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