8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há algum tempo o art. 196 da Carta Magna tem sido objeto de interpretação por parte da doutrina constitucional brasileira. Posturas, algumas vezes contrárias, irradiam-se, quer no meio judiciário, quer no meio acadêmico. Tais postulados tencionam deliberar se, como e em que grau o direito fundamental à saúde se transforma em direito subjetivo público a prestações positivas do estado, passível de garantia por via judicial. As desarmonias da doutrina em relação ao âmbito de proteção da norma constitucional do direito à saúde advêm, sobretudo do caráter prestacional desse direito e da necessidade de harmonização do que se acordou denominar mínimo existencial e reserva do possível. Em face da dimensão objetiva, igualmente toma destaque a perspectiva dos direitos à organização e ao procedimento, que são aqueles direitos fundamentais que estão sujeitos, para sua concretização, de decisões estatais com vistas à criação e à conformação de órgãos e metodologia indispensáveis à sua realização.
Por esse ponto de vista salientamos as contribuições de Stephen Holmes e Cass Sunstein para o reconhecimento de que “todas as dimensões dos direitos fundamentais têm custos públicos”, dando expressivo realce ao tema da reserva do possível, especialmente ao evidenciar a escassez dos recursos e a necessidade de se fazerem escolhas alocativas, rematando, a partir da perspectiva das finanças públicas, que “levar a sério os direitos significa levar a sério a escassez”[31] (HOLMES & SUNSTEIN, 1999, p. 255). A vinculação de recursos econômicos para a realização dos direitos de caráter social conduz parte da doutrina a defender que os preceitos que consagram tais direitos adotam a feição de normas programáticas, dependentes, portanto, da formulação de políticas públicas para se tornarem exigíveis. Nesse sentido, também se defende que a intervenção do Poder Judiciário, ante a omissão estatal quanto à construção satisfatória dessas políticas, violaria o princípio da separação dos Poderes e o princípio da reserva do financeiramente possível.
É, pois, necessário ponderar que a prestação devida pelo Estado, em relação aos direitos sociais, modifica de acordo com o grau de necessidade de cada cidadão. Destarte, enquanto o Estado tem que dispor de certa quantia para prover e garantir a liberdade dos cidadãos globalmente, no caso de um direito social como a saúde, por outro lado, deve dispor de valores variáveis para arcar com as necessidades individuais de cada cidadão. Gastar mais recursos com uns do que com outros envolve, portanto, a adoção de critérios distributivos para esses recursos. Nesse sentido há quem diga que o Poder Judiciário, o qual tem como mister a plenitude da justiça no caso concreto, não reuniria condições, ao examinar determinada aspiração a um direito prestacional social, de analisar as reais conseqüências da destinação dos recursos públicos para uma parte, em detrimento do prejuízo do todo.
Por outro turno, há quem defenda a ação do Judiciário na consolidação dos direitos sociais, mormente no que diz respeito à saúde, argumentando que referidos direitos são indispensáveis para a manutenção da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, ao menos o mínimo existencial de cada um dos direitos não poderia deixar de ser elemento de análise judicial. Em consonância com esse paradoxo, realça Canotilho, “havemos de convir que a problemática jurídica dos direitos sociais se encontra hoje numa posição desconfortável”[32] (CANOTILHO, 1998, p. 347). Por fim, parece-nos ajuizado rematar que, problemas concretos deverão ser decididos levando-se em consideração todas as perspectivas que a questão dos direitos sociais envolve e que juízos de avaliação são forçosos nesse contexto de difíceis relações litigiosas entre princípios fundamentais e diretrizes políticas ou entre direitos individuais e direitos da coletividade.
9. REFERÊNCIAS
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Notas
[1] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
[2] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2007.
[3] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
[4] BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.
[5] ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales, Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
[6] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria Constitucional. 2. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1998.
[7] SCHÄFER, Jairo. Classificação dos Direitos Fundamentais: do sistema geracional ao sistema unitário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
[8] CALIENDO, Paulo. Reserva do possível, direitos fundamentais e tributação. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
[9] CANOTILHO, Joaquim José Gomes. “Metodologia Fuzzi” e “Camaleões Normativos” na problemática actual dos direitos econômicos, sociais e culturais. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.
[10] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
[11] SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito Constitucional Econômico: estado e normalização da economia. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2000.
[12] SEGADO, Francisco Fernandez. El Sistema Constitucional Español. Madrid: Dykinson, 1992.
[13] LUÑO, Antônio Enrique Pérez. Derechos Humanos, Estado de derecho y constituición. 4 ed. Madrid: Tecnos, 1988.
[14] LUÑO, Antônio Enrique Pérez. Derechos Humanos, Estado de derecho y constituición. 4 ed. Madrid: Tecnos, 1988.
[15] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet e MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011.
[16] Art. 6º, CF: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[17] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet e MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011.
[18] AgR-RE nº 271.286-8, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 12-09-2000.
[19] Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I...
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais.
[20] Art. 7º, IV, da Lei nº 8.080/1990.
[21] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet e MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011.
[22] KRELL, Andreas. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Fabris, 2003.
[23] BARCELLOS, Ana Paula. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
[24] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
[25] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet e MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011.
[26] STA 91/AL, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 5-3-2007.
[27] RE 195-192-3, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 22-2-2000.
[28] RE-AgR 255.627-1, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 21-11-2000.
[29] ADPF-MC 45/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 4.5.2004.
[30] RE 516671/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 6-4-2010.
[31] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York: W. W. Norton & Company, 1999.
[32] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria Constitucional. 2. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1998.