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A desconsideração da personalidade jurídica na Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência).

Uma crítica pontual à opção do legislador

30/03/2012 às 17:06
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O modo como a desconsideração da personalidade jurídica está colocada na Lei 12.529/2011 representa um retrocesso. A desconsideração, no caso, deveria ser pelo simples inadimplemento da obrigação, como ocorre na Lei de Crimes Ambientais e no Código de Defesa do Consumidor.

Introdução

A Lei 12.529/2011, ao mesmo tempo em que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), tipifica as infrações à ordem econômica com as penas e sanções aplicáveis, e estabelece as formas de responsabilização[1].

Dentre estas, a referida lei prevê, no art. 34, a desconsideração da personalidade jurídica do infrator, em casos de abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, bem como, de falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. 

Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. 

Entendemos, todavia, que o legislador não foi feliz na opção feita para o texto da lei.


A teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

A desconsideração da personalidade jurídica foi uma teoria que teve início na Alemanha, com os estudos de Rolf Serick, ganhou força nos Estados Unidos e chegou ao Brasil em meados dos anos 60 pelas mãos do eminente comercialista Rubens Requião[2].

A idéia central dessa teoria era que, em razão de certos atos ou fatos jurídicos, poder-se-ia levantar o véu da personalidade da pessoa jurídica para alcançar os sócios que por trás dela se escondiam.

Nós sabemos que ao dotar uma sociedade de personalidade jurídica própria – o que se faz com a simples inscrição dela nos órgãos próprios[3] – ela passa a ser sujeito de direito e obrigações, passando a ter existência distinta de seus sócios (como dizia o art. 20 do revogado Código Civil brasileiro de 1916, não repetido no Código de 2002). Com isso, a sociedade passa a ter autonomia patrimonial e ser responsável pelas obrigações por ela assumidas[4].

Assim, especialmente nas sociedades de responsabilidade limitada, em princípio, os sócios não respondem pelas obrigações contraídas pela sociedade.

A teoria da desconsideração foi uma forma de tentar contornar essa irresponsabilidade dos sócios em relação às dívidas societárias.

É importante salientar que a desconsideração é apenas momentânea, num determinado processo, para atingir o patrimônio dos sócios. Cumprida a finalidade, a pessoa jurídica segue com sua personalidade intacta.


Teoria maior e teoria menor.

Duas teorias se formaram em torno da desconsideração.

A primeira, denominada teoria maior da desconsideração, é a que consagra os princípios clássicos da disregard doctrine, como proposta por Rolf Serick, na defesa de sua tese de doutorado na Universidade de Tübigen, em 1953[5].

Melhor elaborada, essa teoria condiciona a superação momentânea da separação patrimonial apenas se houver ocorrência caracterizada de fraude ou abuso na utilização da personalidade jurídica, cuja prova é ônus do credor[6].

Ela é a regra geral no sistema jurídico brasileiro. Para ser aplicada, haverá de ser provada, além da insolvência, a demonstração de desvio de finalidade (formulação subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (formulação objetiva da desconsideração). É a regra adotada, por exemplo, pelo artigo 50 do Código Civil.

Por outro lado, para a denominada teoria menor, de elaboração bem mais simples, a desconsideração será levada a efeito sempre que houver a insatisfação do crédito do credor da sociedade.

Acolhida em nosso sistema jurídico de maneira excepcional como, por exemplo, no Direito Ambiental, ela incidirá com a simples prova de insolvência da pessoa jurídica, independentemente de haver desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser repassado para o terceiro, devendo o ser pelos sócios ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa correta, ou seja, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte destes.

É, a guisa de exemplo, a teoria que se encontra presente no artigo 4º da Lei n.º 9605/98, que trata de crimes ambientais.

Podemos afirmar, destarte, quando em determinada relação jurídica não houver previsão legal para a desconsideração, o juiz deverá aplicar a Teoria Maior da Desconsideração. Por ser exceção à regra geral, a Teoria Menor, para ser aplicada, depende de expressa autorização legal[7].

O problema disso tudo é que, com a teoria maior, a prova do ato que autorizaria a desconsideração competia ao credor, o que tornava extremamente difícil a sua aplicação. Por conta disso, surgiu a segunda teoria, menos elaborada, em que o simples inadimplemento da obrigação, por si só, autorizaria a desconsideração.

A primeira teoria, a teoria maior, foi contemplada no novo Código Civil, no art. 50 e no caput do art. 28 do CDC.

CCivil:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

CDConsumidor:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

A segunda teoria, a teoria menor, foi abarcada no § 5º do art. 28 do CDC e no art. 4º da lei de Crimes Ambientais (lei 9605/98).

CDConsumidor:

Art. 28. ...

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Lei 9605/98:

Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.


A desconsideração da personalidade jurídica na lei 12.529/2011.

A desconsideração prevista na Lei 12529/2011 está baseada na teoria maior, eis que exige a ocorrência de um ato concreto, a ser comprovado. É que o legislador condicionou a desconsideração à ocorrência de abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. E é aí que reside, no nosso ver, o equívoco na opção do legislador.

Explica-se: a teoria menor já está devidamente incorporada no nosso ordenamento jurídico. O CDC já a prevê. A lei dos crimes ambientais também.

O que nós temos aqui em muito se assemelha ao direito do consumidor ou ao direito ambiental.

A ordem econômica é um direito difuso, eis que a coletividade é a titular dos direitos jurídico protegidos pela lei (art. 1º, § único da Lei 12.529/2011). Logo, o que se está a proteger não é um direito individual, como ocorre no Código Civil, por exemplo.

A obrigação, no caso, não é uma obrigação negociável, vale dizer, originada de uma obrigação comercial. A ofensa à ordem econômica gera, por sua própria natureza, uma obrigação não negociável.

Essa diferença entre obrigações negociáveis e não negociáveis é importante quando se discute a teoria da desconsideração.

Deste modo, quando o credor for o fisco, o empregado, ou o consumidor, tem-se admitido em alguns casos a superação da autonomia patrimonial para responsabilizar diretamente os sócios da pessoa jurídica adotando-se os postulados da teoria menor.

Conforme define Fábio Ulhoa Coelho, “o princípio da autonomia patrimonial tem sua aplicação limitada, atualmente, às obrigações da sociedade perante outros empresários. Se o credor é empregado, consumidor ou o Estado, o princípio não tem sido prestigiado pela lei ou pelo juiz.”[8].

Dois principais motivos têm levado o legislador ou o julgador a não aceitar o princípio da autonomia patrimonial: 1) a fraude ou abuso no uso da pessoa jurídica, como forma de não cumprir as obrigações legais e contratuais e 2) a própria natureza da obrigação a que se sujeita a pessoa jurídica.

O primeiro diz respeito ao abuso de direito[9], caracterizado pelo uso indevido, abusivo ou fraudulento da pessoa jurídica. Na lição de Rizzato Nunes, “o resultado do excesso de exercício de um direito, capaz de causar dano a outrem”[10]. É caracterizado pela utilização ilegal da pessoa jurídica, para fins não prestigiados pelo bom direito. São os casos clássicos que autorizam a superação da personalidade jurídica para atingir os sócios, independentemente da origem do crédito.

O segundo tem relação com a própria natureza da contratação. É como imaginar que a autonomia patrimonial fosse inserida como uma cláusula geral dos contratos comerciais[11]. Logo, em todos os contratos mercantis, tal princípio deveria ser respeitado incondicionalmente e a forma pela qual os empresários obteriam garantia seria buscando aval ou fiança dos sócios. São as obrigações negociáveis, que estão totalmente sujeitas aos efeitos da personificação, incluindo-se aí a limitação da responsabilidade dos sócios.

Pelo mesmo raciocínio, contrariu sensu, nas obrigações não provenientes de um contrato empresarial, tal princípio não seria aplicado, tendo em vista tratar-se de obrigações não negociáveis[12], que não estarão sujeitas aos efeitos da personificação.

 Desta forma, as obrigações decorrentes dos contratos de trabalho, as obrigações tributárias e as originadas em um ato ilícito, bem como as decorrentes das relações de consumo e de meio ambiente, que não são objeto de ampla e livre pactuação, podem ser consideradas obrigações não negociáveis.

Desta forma, quando se tratar de obrigações negociáveis, deve-se aplicar a teoria maior. Se se tratar de obrigação não negociável, deve-se aplicar a teoria menor.


A infeliz opção do legislador: conclusão.

Evidente que a obrigação decorrente de ofensa à ordem econômica é uma obrigação não negociável. A empresa que é punida por isso e por qualquer razão não consegue cumprir a obrigação deve ter a sua personalidade jurídica desconsiderada para que a obrigação seja carreada aos seus sócios.

A desconsideração, no caso, deveria ser pelo simples inadimplemento da obrigação, conforme os postulados na teoria menor.

Daí porque não agiu bem o legislador ao determinar a aplicação da teoria maior na lei em comento.

Bastaria ao legislador adotar o que fez com a lei de crimes ambientais, ou então, repetir a redação do Código de Defesa do Consumidor, inclusive o seu § 5º, e estaria agindo com muito mais propriedade, em face do bem jurídico a ser protegido.

No entanto, o modo como a desconsideração da personalidade jurídica está colocada na Lei 12.529/2011 representa um retrocesso.

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Bibliografia

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial – vols. 1 e 2. São Paulo. Saraiva. 2003.

NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo. Saraiva. 2000.

_____. Curso de direito do consumidor. São Paulo. Saraiva. 2004.

REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial – vols. 1 e 2. São Paulo. Saraiva. 1991.

SALES, Fernando Augusto de Vita Borges de. Novos rumos do Direito Empresarial brasileiro: a Lei nº 12.529/2011 e a defesa da concorrência. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3141, 6 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21030>. Acesso em: 27 mar. 2012.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico – vols. I a IV. Rio de Janeiro. Forense. 1991.


Notas

[1] Sobre a Lei 12.529/2011 ver artigo de nossa autoria, Novos rumos do Direito Empresarial brasileiro: a Lei nº 12.529/2011 e a defesa da concorrência. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3141, 6 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21030>.

[2] Para maiores detalhes sobre a história dessa teoria, ver Rubens Requião, Curso de direito comercial, vol. 1, p. 283.

[3] Código Civil, arts. 45 e 985.

[4] Ver Código Civil, art. 52, sobre a proteção dos direitos da personalidade da pessoa jurídica.

[5] Ver, a respeito: Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, p. 283 e Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 2, p. 36.

[6] Conforme entendimento jurisprudencial, “cabe ao exequente a prova da conduta faltosa do sócio” (publicado em RT 501/140, e citado por Amador Paes de Almeida, no seu livro Execução de Bens dos Sócios, p. 183).

[7] Conforme salienta Fábio Ulhoa Colho, “não se deve esquecer das hipóteses em que a desconsideração da autonomia da pessoa jurídica prescinde da ocorrência da fraude ou de abuso de direito. Somente diante do texto expresso da lei poderá o juiz ignorar a autonomia da pessoa jurídica, sem indagar da sua utilização com fraude ou abuso de direito.” (Desconsideração da Personalidade Jurídica, p. 63).

[8]Curso de Direito Comercial, vol. 2, p. 20.

[9] Conforme definição de De Plácido e Silva, abuso de direito é “o exercício anormal ou irregular do direito, isto é, sem que assista a seu autor motivo legítimo ou interesse honesto, justificadores do ato, que, assim, se verifica e se indicado como praticado cavilosamente, por maldade ou para prejuízo alheio.” (op. cit., vol. I e II, p. 16).

[10]Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, p. 355.

[11] Conforme lição de Fábio Ulhoa Coelho, “ao preceituar a irresponsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade (ou sua limitação), o direito estaria, segundo essa visão, como que criando uma cláusula geral de contrato, inerente às negociações entabuladas com a pessoa jurídica.” (Curso de Direito Comercial, vol. 2, p. 21).

[12] Tal distinção é formulada por Fábio Ulhoa Coelho, no seu Curso de Direito Comercial (vol. 2, p. 21): “cabe distinguir as obrigações da sociedade empresária em dois tipos: as negociáveis e as não negociáveis. No primeiro tipo, encontram-se as dívidas sociais originadas de tratativas desenvolvidas, com maior ou menor liberdade, entre as partes de um negócio jurídico. Alcançam, grosso modo, os créditos disciplinados pelo direito civil e comercial, como são os documentados em títulos cambiais ou em contratos mercantis. Já as obrigações não negociáveis têm a sua existência definida na lei, ou não são, por outros motivos, objeto de ampla e livre pactuação entre o credor e a sociedade devedora. Incluem-se neste último grupo as obrigações tributárias e as derivadas de ato ilícito, por exemplo.” (grifos do original).

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Sobre o autor
Fernando Augusto Sales

Advogado em São Paulo. Mestre em Direito. Professor da Universidade Paulista - UNIP, da Faculdade São Bernardo - FASB e do Complexo de Ensino Andreucci Proordem. Autor dos livros: Direito do Trabalho de A a Z, pela Editora Saraiva; Súmulas do TST comentadas, pela Editora LTr; Manual de Processo do trabalho; Novo CPC Comentado; Manual de Direito Processual Civil; Estudo comparativo do CPC de 1973 com o CPC de 2015; Comentários à Lei do Mandado de Segurança e Ética para concursos e OAB, pela Editora Rideel; Direito Ambiental Empresarial; Direito Empresarial Contemporâneo e Súmulas do STJ em Matéria Processual Civil Comentadas em Face do Novo CPC, pela editora Rumo Legal; Código Civil comentado [em 3 vols], Manual de Direito do Consumidor, Direitos da pessoa com câncer, Direito Digital e as relações privadas na internet, Manual da LGPD, Manual de Prática Processual Civil; Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Limitada nas Relações de Consumo, Juizados Especiais Cíveis: comentários à legislação; Manual de Prática Processual Trabalhista e Nova Lei de Falência e Recuperação, pela editora JH Mizuno.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALES, Fernando Augusto. A desconsideração da personalidade jurídica na Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência).: Uma crítica pontual à opção do legislador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3194, 30 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21404. Acesso em: 22 nov. 2024.

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