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Penhora do imóvel do fiador no contrato de locação.

Análise da (in)constitucionalidade do artigo 3º,VII, da Lei nº 8.009/1990

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10/04/2012 às 11:00
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Unidade 3

DA EXCEÇÃO À IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA PREVISTA NO ARTIGO 3º, INCISO VII, DA LEI 8.009/90 E SUA (IN)CONSTITUCIONALIDADE

Muito embora a lei 8.009/90 tenha previsto que a residência da entidade familiar deverá ser protegida de quaisquer execuções, esta mesma lei abarcou exceções, as quais já foram citadas na seção 1.2.3.

Uma delas é a possibilidade da penhora do único imóvel da entidade familiar, se foi assumida obrigação de fiador diante de contrato de locação. Essa exceção foi inserida pelo artigo 82 da lei 8.245/91, a Lei do Inquilinato.

A jurisprudência tem divergido quanto à constitucionalidade de tal dispositivo. Nessa unidade traremos alguns exemplos de decisões e de posicionamentos tomados pelos ministros do STF. Também, para efeitos de entendimento neste trabalho, faremos uma breve análise do termo “inconstitucionalidade”. Ainda, antes de adentramos ao exame propriamente dito da (in)constitucionalidade do referido dispositivo, estabeleceremos alguns critérios para a interpretação da norma, embasada nos conceitos já explicitados nas duas primeiras unidades.

3.1 CONCEITO DE (IN)CONSTITUCIONALIDADE

A inconstitucionalidade, para Celso Ribeiro Bastos (1997, p. 384),

É a circunstância de uma determinada norma infringir a Constituição, quer quanto ao processo a ser seguido pela elaboração legislativa, quer pelo fato de, embora tendo a norma respeitado a forma de criação da lei, desrespeitar a Constituição quanto ao conteúdo adotado.

Norberto Bobbio (1994, p. 54), nessa mesma linha de pensamento, ensina que o poder normativo não é ilimitado, sendo-lhe atribuído limite formal e material:

A observação desses limites é importante, porque eles delimitam o âmbito em que a norma inferior emana legitimamente: uma norma inferior que exceda os limites materiais, isto é, que regule uma matéria diversa da que lhe foi atribuída ou de maneira diferente daquela que lhe foi prescrita, ou que exceda os limites formais, isto é, não siga o procedimento estabelecido, está sujeita a ser declarada ilegítima e a ser expulsa do sistema.

Para Alexandre de Moraes, “controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a constituição, verificando seus requisitos formais e materiais” (2000, p. 579).

O órgão incumbido de exercer esse controle é o Poder Judiciário, seja por força da própria constituição[23], ou até mesmo pela sua precípua função de aplicar o direito[24]. Essa verificação poderá ser dar em vias de defesa ou de ação.

A via de defesa, ou de exceção, ocorre quando o interessado na declaração de inconstitucionalidade aguarda que a lei seja executada, para então defender-se, alegando a invalidade da lei no caso concreto. A declaração da inconstitucionalidade se dará, então, no curso do processo comum (BASTOS, 1997, p. 394, 404).

Jorge Miranda (2005, p. 56) define exceção como

uma iniciativa enxertada num processo já em curso, seja um meio de defesa indirecta propiciado ao réu (ou ao autor reconvinte) para obter a improcedência do pedido (ou da reconvenção), seja (ainda, de certa sorte) um instrumento ao dispor do Ministério Público.

Ainda, nas palavras de José Afonso da Silva (2001, p. 51), no controle por via de exceção, “qualquer interessado poderá suscitar a questão de inconstitucionalidade, em qualquer processo, seja de que natureza for, qualquer que seja o juízo”.

Já na via de ação, o objetivo é “expelir do ordenamento a lei ou ato normativo contrário à Constituição” (BASTOS, 1997, p. 403). Visa o “bom funcionamento da mecânica Constitucional” (BASTOS, p. 395).

Celso Ribeiro Bastos (1997, p. 395) sintetiza a diferença: “Em síntese, a via de ação tem por condão expelir do sistema a lei ou ato inconstitucionais. A via de defesa ou de exceção limita-se a subtrair alguém aos efeitos de uma lei ou ato com o mesmo vício”.

Para Paulo Bonavides (2000, p. 294),

O controle por via de exceção é de sua natureza o mais apto a prover a defesa do cidadão contra os atos normativos do Poder, porquanto em toda demanda que suscite controvérsia constitucional sobre lesão de direitos individuais estará sempre aberta uma via recursal à parte ofendida.

Distingue-se ainda a inconstitucionalidade por omissão, que segundo José Afonso da Silva (2001, p. 47), “verifica-se nos casos em que não sejam praticados atos legislativos ou administrativos requeridos para tornar plenamente aplicáveis normas constitucionais”.

A inconstitucionalidade do inciso VII, do artigo 3º. da lei nº. 8.009/90 vem sendo debatida em via de exceção, quando o fiador defende-se judicialmente, solicitando que seja desconstituída a penhora sobre seu imóvel invocando se tratar de bem de família, usando como argumentos a afronta ao princípio da isonomia e do direito fundamental à moradia. A jurisprudência tem se manifestado de forma divergente.

3.2 JURISPRUDÊNCIA

A jurisprudência estadual tem divergido quanto à constitucionalidade ou não da penhora do imóvel do locador.

A Primeira e a Segunda Câmara de Direito Civil têm decidido pela constitucionalidade do dispositivo, conforme exemplo de decisão extraída:

EMENTA: GRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE SENTENÇA. PENHORA DO IMÓVEL RESIDENCIAL DE propriedade DO FIADOR EM CONTRATO LOCATÍCIO. POSSIBILIDADE. ALEGAÇÃO DE impenhorabilidade DO BEM DE FAMÍLIA INCABÍVEL. RECURSO PROVIDO. Não gera qualquer dúvida de interpretação a redação do artigo 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, ao dispor com manifesta clareza que o imóvel residencial de propriedade do fiador em contratos de locação não é afetado pela impenhorabilidade oponível aos bens de família. Exegese diversa estará contrariando frontalmente texto expresso de lei como ainda violando princípio basiliar de hermenêutica, positivado no art. 4o da Lei de Introdução do Código Civil, porquanto inversa aos fins sociais orientadores da Lei 8.009/90 e oposta às exigências do bem comum, pois, se assim não for, o mercado imobiliário locatício entrará em curto espaço de tempo em colapso, tendo em vista que muito pouco ou nada servirá a tão decantada garantia pessoal fidejussória. Ademais, o direito social constitucional de moradia (artigo 6º, da CF) há de ser interpretado como garantia de acesso à habitação, sem prejuízo da possibilidade de incidência de ônus sobre o imóvel. (Agravo de instrumento nº. 2005.023582-8, Julgado em 31/01/2006, Relator: Des. Joel Dias Figueira Júnior).

A Terceira Câmara de Direito Civil opta pela inconstitucionalidade da penhora do único imóvel do locador:

EMENTA: PELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS À ARREMATAÇÃO - FIANÇA EM CONTRATO DE LOCAÇÃO - CONSTRIÇÃO EM BEM DE FAMÍLIA - IMPENHORABILIDADE - EXCEÇÃO PREVISTA NO ART. 3º, VII, DA LEI N. 8.009/90 - INCONSTITUCIONALIDADE - MORADIA - DIREITO CONSTITUCIONAL. A exceção à impenhorabilidade do bem de família prevista no inciso VII, do art. 3º, da Lei n. 8.009/90, constitui afronta à norma constitucional. Sendo assim, descabe autorizar a constrição do imóvel de família pertencente ao fiador do contrato locatício.[...]Com efeito, assegurando a Constituição Federal o direito social à moradia (art. 6º), a lei que tenha como fundamento exatamente o esvaziamento desse direito, deve ser considerada inconstitucional. Ademais, a famigerada exceção à regra traz previsão desarrazoada e antiisonômica, ao reconhecer a impenhorabilidade do bem de família do locatário, mas permitir a constrição do bem de família do fiador. (Apelação Cível nº. 2006.007602-1, Julgado em 20/07/2006, Relatora: Desa. Salete Silva Sommariva).

Decisão monocrática do Ministro Carlos Velloso em recurso extraordinário foi no sentido de inconstitucionalidade da norma.

EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE. Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora “por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”: sua não- recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido. (Recurso Extraordinário nº. 352.940, Julgado em 25/04/2005, Relator: Ministro Carlos Velloso).

Acórdão não unânime em recurso extraordinário no tribunal pleno foi palco de grande discussão em torno do tema ora apresentado. Os Ministros Eros Grau, Carlos Brito e Celso de Mello defenderam a inconstitucionalidade do dispositivo, sendo, porém vencidos pelos Ministros Nelson Jobim, Marco Aurélio, César Peluso, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie e Sepúlveda Pertence. Na ocasião, embora votando pela constitucionalidade, o Ministro Marco Aurélio pediu que se consignasse que, havendo questão constitucional, deveria ser ouvido o Procurador Geral da República.

EMENTA: FIADOR. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art.3º, inc. VII, da Lei nº 8.009/90, com a redação da Lei nº 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei nº 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República. (Recurso Extraordinário nº. 407.688-8, Julgado em 08/02/2006, Relator: Ministro Cézar Peluso).

Os ministros de voto vencido embasam seu posicionamento pela inconstitucionalidade da norma com base no direito fundamental social à moradia previsto no art. 6º da Constituição, e também no princípio da isonomia.

Extrai-se do acórdão as palavras do Ministro Eros Grau, referindo-se à uma possível afronta à isonomia:

Se o benefício da impenhorabilidade viesse a ser ressalvado quanto ao fiador em uma relação de locação, poderíamos chegar a uma situação absurda: o locatário que não cumprisse a obrigação de pagar aluguéis, com o fito de poupar para pagar prestações devidas em razão de aquisição de casa própria, gozaria da proteção da impenhorabilidade. Gozaria dela mesmo em caso de execução procedida pelo fiador cujo imóvel resultou penhorado por conta do inadimplemento das suas obrigações, dele, locatário.

[...]

Por fim, no que concerne ao argumento enunciado no sentido de firmar que a impenhorabilidade do bem de família causará forte impacto no mercado das locações imobiliárias, não me parece possa ser esgrimido para o efeito de afastar a incidência de preceitos constitucionais, o do artigo 6º e a isonomia. Não hão de faltar políticas públicas, adequadas à fluência desse mercado, sem comprometimento do direito social e da garantia constitucional. (Recurso Extraordinário nº. 407.688-8, Julgado em 08/02/2006, Relator: Ministro Cézar Peluso).

O ministro Carlos Britto, seguindo o voto do ministro Eros Grau, defende a indisponibilidade da moradia:

A partir dessas qualificações constitucionais, sobretudo aquela que faz da moradia uma necessidade essencial, vital básica do trabalhador e de sua família, entendo que esse direito à moradia se torna indisponível, é não-potestativo, não pode sofrer penhora por efeito de um contrato de fiação. Ele não pode, mediante um contrato de fiação, decair. (Recurso Extraordinário nº. 407.688-8, Julgado em 08/02/2006, Relator: Ministro Cézar Peluso).

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Dentre os ministros que defendem a constitucionalidade da norma, verificam-se as palavras do ministro Cesar Pelluso ao refutar a teoria de que a isonomia estaria sendo ferida pela lei infraconstitucional:

Nem parece, por fim, curial invocar-se de ofício o princípio isonômico, assim porque se patenteia diversidade de situações factuais e de vocações normativas – a expropriabilidade do bem do fiador tende, posto que por via oblíqua, também a proteger o direito social de moradia, protegendo direito inerente à condição de locador, não um qualquer direito de crédito. (Recurso Extraordinário nº. 407.688-8, Julgado em 08/02/2006, Relator: Ministro Cézar Peluso).

Defende ainda que, ao contrário de atacar o direito à moradia, propicia que a mesma se torne mais acessível:

A respeito, não precisaria advertir que um dos fatores mais agudos de retração e de dificuldades de acesso do mercado de locação predial está, por parte dos candidatos a locatários, na falta absoluta, na insuficiência ou na onerosidade de garantias contratuais licitamente exigíveis pelos proprietários ou possuidores de imóveis de aluguel. Nem, tampouco, que acudir a essa distorção, facilitando celebração dos contratos e com isso realizando, num dos seus múltiplos modos de positivação e de realização histórica, o direito social de moradia, é a própria ratio legis da exceção prevista no art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 1990. São coisas óbvias e intuitivas.(Recurso Extraordinário nº. 407.688-8, Julgado em 08/02/2006, Relator: Ministro Cézar Peluso).

O Ministro Joaquim Barbosa fala ainda do caráter relativo dos direitos fundamentais:

Entendo, porém, que esse não deve ser o desenlace da questão. Como todos sabemos, os direitos fundamentais não têm caráter absoluto. Em determinadas situações, nada impede que um direito fundamental ceda o passo em prol da afirmação de outro, também em jogo numa relação jurídica concreta. (Recurso Extraordinário nº. 407.688-8, Julgado em 08/02/2006, Relator: Ministro Cézar Peluso).

Tanto o argumento da afronta à isonomia quanto do direito fundamental à moradia serão tratados nesse presente estudo visando a verificação da constitucionalidade do dispositivo ensejador do conflito. Antes disso, porém, cabe a verificação dos parâmetros necessários à interpretação da norma.

3.3 INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

A hermenêutica[25] constitucional, por seu conteúdo aberto, exige uma maior interferência do poder judiciário e legislativo quando seu texto apresentar dúvidas na aplicabilidade. Muito embora se trate de Direito Constitucional, aplica-se o conteúdo da Lei de Introdução ao Código Civil, que determina que a aplicação da lei deverá atender os fins sociais a que ela se destina, e às exigências do bem comum.

Segundo Konrad Hesse (2001, p. 22), “a interpretação adequada é aquela que consegue concretizar de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação”.[26]

No mesmo sentido, Friedrich Muller (2005, p. 50) acredita que “não é possível descolar norma jurídica do caso jurídico por ela regulamentando nem o caso da norma. Ambos fornecem de modo distinto, mas complementar, os elementos necessários à decisão jurídica”.

Willis Santiago Guerra Filho (2002, p. 47) fala no direito como um sistema aberto:

Na verdade, o que parece ser mais coerente é uma concepção do direito não como um sistema fechado de proposições, representado pela idéia da codificação, ou, ao contrário, comoalgo exclusivamente judicial, voltado para a solução particular em cada caso concreto. Aquilo que mais se aproxima do ideal é um sistema aberto, reconhecidamente pontilhaod por lacunas a serem preenchidas pela decisão no caso concreto.

Uma das formas mais arraigadas na doutrina de se interpretar a norma quando a celeuma se encontra em um direito fundamental, é o princípio da proporcionalidade.

3.3.1 Princípio da Proporcionalidade

É o princípio da proporcionalidade um critério de dosimetria, uma justa medida de equilíbrio na conduta do jurista (CASTRO, 2003, 81). Tal princípio, segundo Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos (2006, p. 332),

Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema.

Paulo Bonavides (2000, p. 387) atenta para a aplicabilidade do princípio da proporcionalidade na interpretação constitucional:

Com efeito, o critério da proporcionalidade é tópico, volve-se para a justiça do caso concreto ou particular, se aparenta consideravelmente com a eqüidade e é um eficaz instrumento de apoio às decisões judiciais que, após submeterem o caso a reflexos prós e contras (Abwägung), a fim de averiguar se na relação entre meios e fins não houve excessos (Übermassverbot), concretizam assim a necessidade do ato decisório de correção.

Segundo a doutrina corrente, a verificação do princípio da proporcionalidade se dá sob três dimensões: da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.

Pela adequação, também chamada pela doutrina de idoneidade ou conformidade, exige-se que “toda restrição aos direitos fundamentais seja idônea para o atendimento de um fim constitucionalmente legítimo” (PEREIRA J., 2006, p. 324). Desta forma, há que se verificar se o fim objetivado pela restrição é legítimo perante o contexto constitucional.

A dimensão da necessidade determina que o legislador deva escolher, para o atingimento dos fins desejados, o meio menos oneroso. A doutrina também denomina esse critério de princípio da exigibilidade, indispensabilidade, da menor ingerência possível, da intervenção mínima. Ou seja, a restrição ao direito fundamental somente será admitida se não houver outra forma de se resolver o problema em questão. Para Jorge Miranda (1993, p. 218), “a necessidade supõe a existência de um bem juridicamente protegido e de uma circunstância que imponha intervenção ou decisão; equivale a exigibilidade desta intervenção ou decisão”.

Segundo o critério da proporcionalidade em sentido estrito, deve-se fazer uma análise comparativa entre a restrição do direito fundamental e a realização do fim objetivado. Em outras palavras, é verificar se a concretização da norma compensa a afetação do direito fundamental. Segundo José Joaquim Gomes Canotilho (2002, p. 270), “meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objectivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim”. Ainda, nas palavras de Jane Reis Gonçalves Pereira (2006, p. 346), “uma restrição a direitos fundamentais é constitucional se pode ser justificada pela relevância do princípio cuja implementação é buscada por meio de intervenção”.

Willis Santiago Guerra Filho (2002, p. 88) sintetiza o conceito da tríplice verificação da proporcionalidade:

uma medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e, finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superarem as desvantagens, para a efetivação global dos direitos fundamentais. (GUERRA Filho, 2002, p. 88)

A ponderação mencionada por José Joaquim Gomes Canotilho, trata-se de uma análise axiológica da norma jurídica:

O vocábulo ponderação tem sido usado para designar, de forma genérica, as diversas operações hermenêuticas consistentes em sopesar bens, valores, interesses, normas ou argumentos. Em sentido estrito, a ponderação pode se definida, de forma esquemática, como a técnica de decisão pela qual o operador jurídico contrapesa, a partir de um juízo dialético, os bens e interesses juridicamente protegidos que se mostrem inconciliáveis no caso concreto, visando determinar qual deles possui maior peso, e identificar a norma jurídica abstrata que há de prevalecer como fundamento da decisão adotada.(PEREIRA J., 2006, p. 220)

Para Daniel Sarmento (2001, p. 57) o princípio da proporcionalidade

[...] desempenha um papel extremamente relevante no controle de constitucionalidade dos atos do poder público, na medida em que ele permite de certa forma a penetração no mérito do ato normativo, para aferição de sua razoabilidade[27] e racionalidade, através da verificação da relação custo-benefício da norma jurídica, e da análise da adequação entre o seu conteúdo e a finalidade por ela perseguida.

Estabelecidos todos os conceitos e critérios necessários, passaremos agora à análise fática e jurídica do artigo 3º, inciso VII da Lei nº. 8.009/90, em relação ao princípio da isonomia e ao direito fundamental social à moradia.

3.4 ANÁLISE DO DISPOSITIVO EM RELAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA

Conforme já se estabeleceu nesse estudo, o cerne do princípio da igualdade está em tratar os iguais igualmente, e os iguais desigualmente. Resta saber, e esse é o um dos objetivos desse estudo, se fiador e locatário podem ou devem ser tratados como desiguais.

Para José Afonso da Silva (2001, p. 227), existem duas formas de uma norma ser inconstitucional pela ofensa à isonomia:

Uma consiste em outorgar benefício legítimo a pessoas ou grupos, discriminando-os favoravelmente em detrimento de outras pessoas ou grupos em igual situação. (...) A outra forma de inconstitucionalidade revela-se em se impor obrigação, dever, ônus, sanção ou qualquer sacrifício a pessoas ou grupos de pessoas, discriminando-as em face de outros na mesma situação que, assim, permaneceram em condições mais favoráveis.

Segundo José Joaquim Gomes Canotilho (2002, p. 428), “o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária. O arbítrio da desigualdade seria condição necessária e suficiente da violação do princípio da igualdade”.

Necessário, então, efetuar-se a análise do tratamento dispensado pelo artigo 3º, inciso VII, da Lei nº. 8.009/90 ao fiador no contrato de locação, e o seu atendimento ao princípio da isonomia.

Segundo José Afonso da Silva (2001, p. 227), existem duas formas de uma norma ser inconstitucional pela ofensa à isonomia:

Uma consiste em outorgar benefício legítimo a pessoas ou grupos, discriminando-os favoravelmente em detrimento de outras pessoas ou grupos em igual situação. (...) A outra forma de inconstitucionalidade revela-se em se impor obrigação, dever, ônus, sanção ou qualquer sacrifício a pessoas ou grupos de pessoas, discriminando-as em face de outros na mesma situação que, assim, permaneceram em condições mais favoráveis.

Na primeira unidade estabelecemos as classificações e elementos dos contratos. Verificou-se que contrato de locação é um contrato bilateral, oneroso, comutativo, típico, consensual, principal e pessoal, e que tem por objeto a locação de um imóvel mediante prestação de alugueres. O contrato de fiança é um contrato unilateral, gratuito, comutativo, típico, consensual, acessório e pessoal, e que tem por objeto garantir o adimplemento da obrigação assumida em outro contrato, dito principal.

Ambos os contratos, então, igualam no sentido em que são típicos, consensuais, comutativos e pessoais. Ou seja, possuem previsão em lei, aperfeiçoam-se pelo simples consentimento, as partes sabem todos os direitos e obrigações decorrentes, e por fim, tais obrigações são devidas pelo próprio contratante.

Em contra-ponto, diferem-se em outros aspectos. A fiança somente gera obrigação ao fiador, enquanto que no contrato de locação a obrigação é gerada a todos os contratantes. O contrato de fiança somente existe enquanto perdurar o contrato de locação, e dele depende sua validade. Ainda, no contrato de fiança, sendo unilateral, somente se compromete o fiador, ao contrário do contrato de locação, onde o patrimônio de todos os contratantes está envolvido.

A maior diferença, porém, está no objeto do contrato. Enquanto que no contrato de locação o objeto é a própria prestação, no contrato de fiança o objeto se trata da garantia de que o devedor irá cumprir com sua obrigação. Conforme Pontes de Miranda (1984, p. 91), “o fiador não promete pagar se o devedor principal não paga, nem promete pagar em lugar do devedor principal. Promete o adimplemento pelo devedor principal”.

Trouxemos anteriormente palavras de José Joaquim Gomes Canotilho, onde o mesmo fez menção à verificação da arbitrariedade da diferenciação A discriminação deve, portanto, para efeitos de inconstitucionalidade, ser infundada. Esse também é o pensamento de José Afonso da Silva (2001, p. 227):

 [...] tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional.

Sendo o objeto do contrato seu elemento fundador, sem o qual não existiria o acordo de vontades, fiador e devedor possuem obrigações assaz diferentes. Dessa forma, estando locatário e fiador em situações jurídicas diversas, o “princípio constitucional que proclama a igualdade de todos perante a lei é respeitado, na medida em que todos os locatários, sem distinção, são iguais perante a lei, da mesma forma como o são todos os fiadores.” (BARROS, 1997, p. 200).

O que caberia verificar no presente caso é se o princípio da isonomia não poderia ser invocado em outro plano: na interpretação dos direitos de sub-rogação atribuídos ao fiador. Considerando-se que o fiador se sub-roga nos direitos do credor, possui os mesmos direitos, ações e garantias que o credor possuir (VENOSA, 2003a, p. 274), e isso poderia incluir o benefício da exceção à impenhorabilidade. Desta forma, a aplicabilidade da isonomia não estaria em tornar o dispositivo inconstitucional, porém em oportunizar ao fiador a possibilidade de possuir no seu direito de regresso, o mesmo benefício que foi dado ao credor da dívida principal.

Porém, como o objetivo deste trabalho está em verificar a legalidade da penhora do imóvel do fiador no contrato de locação, sem nos aprofundarmos em outras questões, concluímos pelo entendimento de que o dispositivo em questão não fere o princípio isonômico, no sentido em que a desigualdade no tratamento do fiador e do devedor principal é pertinente à natureza dos próprios contratos que regem a relação jurídica efetivada entre os dois.

3.5 ANÁLISE DO DISPOSITIVO EM RELAÇÃO AO DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA

Trata-se a moradia de um direito fundamental social de grande relevância, uma vez que garante ao indivíduo uma existência digna, enquanto pessoa. O problema da habitação no país é assustador quando se verifica a quantidade de pessoas que não possuem uma moradia digna.

Não obstante já se tenha dito que se trata de uma norma de “cunho programático” e que possua eficácia jurídica, mesmo que limitada[28], muito ainda falta para que atinja seus reais objetivos, principalmente no que tange à tarefa prestacional do Estado, uma vez que “a efetivação dos direitos sociais é, indiscutivelmente, mais complexa do que a das demais categorias”. (BARROSO, 2006, p. 103)

O instituto do bem de família visa resguardar a família de execuções por dívidas que possam lhe excutir seu único bem imóvel e acessórios, de forma a garantir que seu direito à moradia não seja violado.

A Lei do inquilinato visa propiciar que as pessoas não possuidoras de um bem imóvel possam locá-lo de quem o tem. E o proprietário desse imóvel precisa ter a garantia de que a prestação pela locação lhe seja paga, pois disso também, muitas vezes, lhe provém sua subsistência. Caio Mario da Silva Pereira (2006a, p. 302), ao comentar a lei do inquilinato, menciona que a lei anterior, que protegia em demasiado o locatário, “estava em verdade contribuindo para o aumento do déficit habitacional, já que não incentivava os proprietários a alugarem os seus imóveis”.

Sérgio Iglesias Nunes de Souza (2004, p. 272) manifestou-se no mesmo sentido, ressaltando ainda o fato de que a fiança é uma obrigação prestada voluntariamente:

[...] tal medida não objetivou cercear o direito à moradia do fiador (nem mesmo haveria condições para tal, pelo já exposto, por ser direito de personalidade[29]). Na realidade, a lei visou a proteger e estimular o mercado imobiliário e facilitar a realização dos contratos locatícios. Servem tais contratos como estímulo do exercício da moradia, mas ao mesmo tempo garantem a dívida aos locadores. Logo, retira-se o exercício de habitação do fiador sobre o bem dado em garantia, para o adimplemento da obrigação que livremente afiançou. Essa medida legislativa visa justamente à facilitação da aquisição de novas moradas à coletividade, por meio do instituto da locação, dando-se cumprimento ao fim da norma, mas respeitando-se também o pacto celebrado entre as partes. [30]

Temos então, que o direito à moradia poderia estar sendo violado ou garantido por uma mesma norma, porém com efeitos a classes diferentes: locadores, locatários e fiadores.

Na análise desse aspecto controvertido, poderíamos afirmar que existe uma colisão de direitos fundamentais. Segundo Wilson Antônio Steinmetz (2001, p. 139),

Há colisão de direitos fundamentais quando, in concreto, o exercício de um direito fundamental por um titular obstaculiza, afeta ou restringe o exercício de um direito fundamental de um outro titular, podendo tratar-se de direitos idênticos ou de direitos diferentes.

Não obstante a visível importância dos direitos fundamentais, os mesmos nem sempre possuem caráter absoluto, sendo, portanto, limitáveis. Esse é o sentido proposto por Norberto Bobbio (2004, p. 61), quando afirma que o “valor absoluto” somente é cabível em situações nas quais existam “direitos fundamentais que não estão em concorrência com outros direitos igualmente fundamentais”. Prossegue o raciocínio do autor:

É preciso partir da afirmação óbvia de que não se pode instituir um direito em favor de uma categoria de pessoas sem suprimir um direito de outras categorias de pessoas.

[...]

Nesses casos, que são a maioria, deve-se falar de direitos fundamentais não absolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles encontra, em certo ponto, um limite insuperável na tutela de um direito fundamental, mas concorrente. (BOOBIO, 2004, p. 61)

A partir desse conceito de relatividade dos direitos fundamentais, é possível afirmar que pode haver restrições ao direito fundamental provocadas pela colisão com outro direito fundamental, ou com o direito fundamental de outrem.

É em virtude dessa colisão que urge chamar à tona o princípio da proporcionalidade. Para tanto, façamos a análise de seus sub-princípios.

Pela adequação, verifica-se que o fim almejado é constitucional, uma vez que visa a proteção da moradia. A medida normativa é adequada ao fim almejado, ou seja, viabiliza à família não possuidora de uma moradia própria que esta a obtenha através de um contrato de locação. Conforme o raciocínio de Silvio de Salvo Venosa (2006, p. 372), o legislador entendeu que de outra forma se “restringiria as possibilidades de fiança em locação, uma vez que os fiadores deveriam apresentar patrimônio suficiente, excluindo o imóvel da residência”. Nesse contexto, ainda, vale levantar o exposto por Jane Reis Gonçalves Pereira (2006, p. 330) quanto ao sub-princípio da adequação: “[...] os Tribunais devem invalidar decisões legislativas apenas naqueles casos em que se revelem manifestamente inadequadas para a obtenção dos fins colimados”.

Com relação ao segundo aspecto do princípio da proporcionalidade, a necessidade ou exigibilidade, sua apreciação invoca uma análise axiológica dos bens envolvidos, uma vez que a norma oferece proteção jurídica à moradia em um aspecto, enquanto lhe imprime restrição em outro. Em casos como esse, a verificação da necessidade da restrição ao direito fundamental é de tal abstração que deve ser remetida ao sub-princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que pressupõe um maior juízo de ponderação.[31]

Na análise do princípio da proporcionalidade em sentido estrito busca-se, através de uma comparação, verificar se apesar de existir uma restrição a um direito fundamental, os fins atingidos pela norma sejam importantes a ponto de ensejar a relevância de tais restrições. Para essa análise há que se fazer uma “atribuição de pesos”:

[...] de um lado, a mensuração quantitativa concreta do grau de restrição do direito restringido e de promoção da finalidade buscada, e de outro, a valoração da importância material que os bens jurídicos em jogo ostentam no sistema constitucional. (PEREIRA J., 2006, p. 347)

A mensuração quantitativa trata da intensidade da restrição (peso concreto), e a importância material verifica a valoração do bem resguardado (peso abstrato). Ainda segundo Jane Reis Gonçalves Pereira, o peso abstrato está ligado ao grau de fundamentalidade do direito.

Seguindo esse raciocínio, precisaríamos pesar qual direito em confronto possui maior peso, para então ponderar se a restrição imposta é viável. Ocorre que no âmbito desse estudo o problema se torna de uma complexidade ímpar por se tratar de uma antinomia entre um mesmo direito, porém com reflexos diferentes a duas classes.

Assim sendo, e seguindo os parâmetros ditados pelo princípio da proporcionalidade, chegaríamos a um ponto em que precisaríamos optar sobre qual bem jurídico possui maior relevância: o direito à moradia do fiador, ou o direito à moradia do locatário (ou ainda do locador, se consideramos o aluguel como sua única renda). Tal opção se tornaria impossível sem se incorrer em análise valorativa, não condizente com a cientificidade deste trabalho.

Optando-se por valorar a moradia do fiador, em detrimento da garantia do locatário e conseqüente dificuldade na obtenção da moradia pelo locador, estaríamos considerando a norma inconstitucional. Optando-se, porém, pela maior importância da viabilização da moradia do locatário, com possíveis conseqüências ao fiador, a norma seria considerada constitucional.

Para não se deixar, porém, subsistir a antinomia jurídica, poder-se-ia adotar uma terceira opção: a consideração de que nesse conflito de direitos existe um empate. Essa opção abraçaria o princípio da liberdade da ação do legislador. Para Robert Alexy (Apud PEREIRA J., 2006, p. 357), tal princípio “impõe que o legislador democrático seja, na melhor medida possível, quem tome as decisões importantes para a comunidade”.

 Em outro aspecto, poderíamos ainda chamar o método hermenêutico concretizador de Konrad Hesse (2001, p. 22) onde “a interpretação adequada é aquela que consegue concretizar de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.

São verificações, porém, que não pertencem ao objetivo desse estudo. Mas vale sua menção para a análise futura da aplicação da norma.

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Sobre a autora
Cristiane Eing Dequigiovani

Oficial de Justiça na Justiça Comum Estadual de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DEQUIGIOVANI, Cristiane Eing. Penhora do imóvel do fiador no contrato de locação.: Análise da (in)constitucionalidade do artigo 3º,VII, da Lei nº 8.009/1990. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3205, 10 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21475. Acesso em: 18 nov. 2024.

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