A Lei nº. 12.650, de 17 de maio de 2012, alterou o Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, com a finalidade de modificar as regras relativas à prescrição dos crimes praticados contra crianças e adolescentes. Também conhecida como “Lei Joanna Maranhão”, uma alusão à esportista brasileira, integrante da equipe olímpica de natação, que noticiou perante a imprensa, em fevereiro de 2008, um caso de vitimização sexual, quando contava com tenros nove anos de idade, crimes que teriam sido praticados por seu então treinador da modalidade desportiva.
De acordo com a novatio legis, o artigo 111, do Código Penal, que cuida dos termos iniciais da prescrição antes de transitar em julgado a sentença final, passou a vigorar acrescido do seguinte inciso V: “nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal”.
Ao que tudo indica, o legislador penal atuou de modo a concretizar o mandado de criminalização preconizado no artigo 227, parágrafo quarto, da Constituição da República Federativa do Brasil, in verbis: “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”. Sobre o tema ANTONIO CARLOS DA PONTE leciona que: "os mandados de criminalização indicam matérias sobre as quais o legislador ordinário não tem a faculdade de legislar, mas a obrigatoriedade de tratar, protegendo determinados bens ou interesses de forma adequada e, dentro do possível, integral" (PONTE, Antonio Carlos da. Crimes Eleitorais. 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 152).
A prescrição, como ensina BASILEU GARCIA, “é a renúncia do Estado a punir a infração, em face do decurso do tempo” (GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, tomo II, p. 368). O Código Penal disciplina duas modalidades de prescrição: (i) prescrição da pretensão punitiva e; (ii) prescrição da pretensão executória.
A prescrição da pretensão punitiva, por sua vez, de acordo com nossa lei penal, se divide em: (i) prescrição da pretensão punitiva propriamente dita ou abstrata; (ii) prescrição da pretensão punitiva retroativa e; (iii) prescrição da pretensão punitiva intercorrente.
Destaca-se que a prescrição da pretensão punitiva propriamente dita ou abstrata é aquela que se opera antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória para acusação, sendo que seu lapso temporal regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, consoante a tabela prevista no artigo 109, do Código Penal.
Nunca é demais lembrar que a contagem dos prazos prescricionais deve seguir a regra prevista no artigo 10, do Código Penal, devido à natureza em questão deste instituto (causa extintiva da punibilidade – artigo 107, inciso IV, do Código Penal). Assim sendo, para efeitos de contagem de prescrição penal, o dia do começo deve ser incluído no cômputo do prazo.
Consoante o disposto no artigo 111, do Código Penal, com a redação dada pela Lei n. 12.650, de 17 de maio de 2012, o prazo prescricional, a depender da hipótese, começa a correr: (i) do dia em que o crime se consumou (inciso I); (ii) no caso de tentativa, do dia em que cessou a atividade criminosa(inciso II); (iii) nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência (inciso III);
(iv) nos de bigamia e nos de falsificação ou alteração de assentamento do registro civil, da data em que o fato se tornou conhecido (inciso IV) e; (v) nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar dezoito anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal (inciso V).
Primeiramente, convém esclarecer que neste inciso V adotou-se como critério o conceito de “crianças e adolescentes”, definido no artigo 2º, da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Este parâmetro não necessariamente coincide com o conceito penal de “vulnerável”, adotado pela Lei n. 12.015, de 07 de agosto de 2009, que alterou o Título VI da Parte Especial do Código Penal, como se observa na redação dos artigos 217-A usque 218-B, do Código Penal.
Além disso, verifica-se que o novo dispositivo somente tem aplicação quando as condutas delituosas versarem sobre crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos no Capítulo II do Título VI do Código Penal (de acordo com sua atual sistematização) ou em legislação especial, sobretudo aqueles previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (artigos 241-A usque 241-D, da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990).
Cumpre salientar que com a ressalva da parte final do inciso V, o legislador penal criou uma condição para que este novo termo inicial seja levado em consideração. É dizer: se a ação penal for proposta em momento anterior à data em que a vítima completou dezoito anos, deve ser considerado como termo inicial do prazo prescricional um daqueles marcos previstos no inciso I, II ou III, do mesmo dispositivo, uma vez que a pretensão punitiva já restou exercida.
Este novo termo inicial pode nos levar a situações no mínimo inusitadas. Na tentativa de se demonstrar alguns problemas que esta inovação legislativa pode ter criado, tomaremos como exemplo uma conduta praticada contra uma criança de nove anos de idade capitulada no artigo 218-A do Código Penal. De acordo com o caput do artigo 109 do Código Penal, devemos tomar como base para o cálculo do prazo da prescrição da pretensão punitiva propriamente dita o máximo da pena pena privativa de liberdade abstratamente cominada para o crime, ou seja, quatro anos.
Assim sendo, o predito prazo prescricional será de oito anos (artigo 109, inciso IV, do Código Penal). No caso aventado, se não for proposta a ação penal em momento anterior àquele em que a vítima completar dezoito anos, de acordo com o inciso V do artigo 111, o prazo prescricional (oito anos) somente passará a correr a partir da data em que ela completar a maioridade, sendo que, em última análise, o Estado terá cerca de dezessete anos para exercer sua pretensão punitiva.
Por outro lado, neste mesmo caso exemplificativo, e se a ação penal fosse proposta quando a vítima contasse com dezessete anos de idade? Ora, conforme preceitua o inciso V do artigo 111, como a ação penal já foi proposta, o prazo prescricional começou a correr da data em que o crime se consumou, ou seja, na época em que a vítima contava com nove anos de idade. Assim sendo, aos dezessete anos de idade, em sendo transcorridos mais de oito anos, certamente a prescrição já teria se operado, fato que levaria a extinção da punibilidade do fato praticado pelo agente.
Este caso hipotético suscitado, salvo melhor juízo, é o primeiro caso em nossa legislação penal em que se tem notícia do fato de que a prescrição poderia ocorrer em casos em que a pretensão punitiva foi exercida muito antes do que em uma segunda oportunidade, quando o prazo prescricional estaria muito longe de restar vencido.
A nova lei penal, a depender do caso concreto, pode violar o princípio da razoabilidade, além de desarmonizar o sistema criado pela Lei n. 12.015, de 07 de agosto de 2009, que já havia definido que nos crimes definidos nos Capítulos I e II do Título VI do Código Penal, procede-se mediante ação penal de iniciativa pública incondicionada, se a vítima é menor de dezoito anos ou pessoa vulnerável, estabelecendo-se assim, especial proteção.
Por derradeiro, conclui-se que a Lei n. 12.650, de 17 de maio de 2012, por tratar de matéria relativa à causa extintiva da punibilidade, prolongando os prazos para a persecução penal, deve seguir o princípio da irretroatividade da lei penal maléfica, não retroagindo para alcançar fatos pretéritos a sua publicação.
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