Anteriormente à Lei 12.403/11, ao receber um auto de prisão em flagrante, em regra, o juiz apenas analisava os requisitos formais do ato e, não encontrando nenhum obstáculo, limitava-se a homologá-lo, sem adentrar no mérito da necessidade da mantença da prisão cautelar.
Diante desta situação, tornava-se possível que um individuo permanecesse preso durante todo o processo tão somente por força da prisão em flagrante: bastava a não formulação do pedido de liberdade provisória por parte da defesa, o que não era raro de acontecer em razão da hipossuficiência financeira da maioria dos criminosos brasileiros.
Entretanto, em uma perspectiva mais garantista e em conformidade com a Constituição Federal, alguns magistrados concediam ex officio a liberdade provisória no caso de não estarem presentes os requisitos do artigo 312 do CCP, ou seja, aqueles que autorizam o decreto da prisão preventiva. Outrossim, também se concedia liberdade provisória ao indivíduo que, já antevendo futura condenação, seria beneficiado com substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou, então, teria regime inicial de cumprimento de pena diverso do fechado. Em suma, não seria proporcional manter a segregação cautelar daquele que, no caso de futura condenação, não ficaria encarcerado. Foi o que se chamou de princípio da homogeneidade.
Com a entrada em vigor da Lei 12.403/11, a possibilidade do agente ficar preso tão somente por força da prisão em flagrante desapareceu. Esta modalidade prisional deixou de ser uma prisão cautelar para ser, segundo a maioria da doutrina, uma prisão precautelar. Segundo a reforma, deve o juiz, obrigatoriamente, ao receber o auto de prisão em flagrante, verificar a presença dos pressupostos da prisão preventiva. Ausentes, não há como o agente permanecer preso. É um procedimento que se coaduna com as extinções da prisão por pronúncia e da prisão por sentença condenatória recorrível, porquanto o legislador vem seguindo a tendência de apenas permitir a prisão antes do trânsito em julgado apenas quando for estritamente necessário. E essa necessidade é aferida a partir da presença dos requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal.
Nesta esteira, diz o artigo 310 do Código de Processo Penal: ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá: relaxar a prisão ilegal, conceder a liberdade provisória, como ou sem fiança, converter a prisão em flagrante em prisão preventiva ou, então, aplicar uma medida cautelar diversa da prisão.
Outrossim, também restou positivado o princípio da homogeneidade acima explicado, porquanto não é possível mais, em regra, que o agente primário tenha prisão preventiva decretada quando o crime não tiver pena privativa de liberdade superior a 4 anos (artigo 313, I, do Código de Processo Penal).
A grande questão que surge, no entanto, é sobre a possibilidade da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva de ofício pelo juiz, mormente porque essa mesma reforma trazida pela Lei 12.403/11, conforme se extrai do artigo 311 do CPP, proíbe que o juiz decrete a prisão preventiva de ofício na investigação policial, ou seja, antes de iniciada a ação penal. Nesses casos, só é possível quando houver representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público.
A maioria da doutrina, neste momento, ainda recente a reforma, parece inclinar pela posição que permite ao juiz converter de ofício a prisão em flagrante em prisão preventiva, diante da inércia do delegado de polícia ou do promotor de justiça. A alegação é mais uma interpretação literal do artigo 310, II, do Código de Processo Penal que não traz nenhuma vedação expressa ou instrução mais detalhada de como deve ser feita a conversão.
Com a devida venia, discordo deste raciocínio, apresentando alguns argumentos contrários a esta posição, que, a princípio, como já dito, parece ser majoritária.
Primeiramente, o auto de prisão em flagrante nada mais é do que uma das formas de se inaugurar o inquérito policial e, assim, a decretação da prisão preventiva de ofício pelo magistrado nesta fase viola a regra do artigo 311 do CPP que permite esse tipo de segregação cautelar exofficio apenas no curso do processo. Ou seja, é necessário ter em mente que o auto de prisão em flagrante é uma fase inaugural da investigação policial e, durante o curso desta, a prisão preventiva só pode ser concretizada mediante representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público. Não se pode separar o vínculo que a prisão em flagrante tem com o inquérito policial. É necessário, portanto, harmonizar o artigo 310 com as regras trazidas pelo artigo 311, todas previstas no mesmo diploma legal.
Já o segundo argumento diz respeito a uma violação ao sistema acusatório, acolhido pela Constituição Federal. É que o juiz deve se abster ao máximo de tomar comportamentos que coloquem em dúvida sua imparcialidade e, nessa esteira, não resta qualquer dúvida, de que a conversão da prisão preventiva ex officio, ainda sem um processo iniciado, é um ato que o afasta da imparcialidade que deve nortear sua atuação na a persecução penal, sobretudo, mais uma vez frisando, antes de iniciada a ação penal.
Provavelmente foi pensando assim que o legislador extirpou a possibilidade do juiz decretar ex officio a prisão provisória, ainda durante o inquérito policial, como era autorizado antes da reforma da Lei 12.403/11.
Não é por outro motivo que diversas passagens na legislação processual penal brasileira como as que permitem ao juiz, sem ter sido previamente provocado, a produzir provas na fase do inquérito, a requisitar de instauração de inquérito policial e a decretar a interceptação telefônica ainda durante as investigações são duramente criticadas pela doutrina. Não é por outro motivo também que o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de diversos artigos da Lei 9.034/95 (Lei de Combate ao Crime Organizado), na Adin 1570-2, que ofendiam a imparcialidade do magistrado.
Em resumo, toda postura do juiz que coloque em xeque sua imparcialidade deve ser repelida.
Então, realizada uma prisão em flagrante, qual seria então o procedimento adequado? Seguindo tudo o que foi exposto alhures, a conversão do flagrante em preventiva, ou mesmo a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, só podem ser aplicadas se houver prévia representação da autoridade policial ou prévio requerimento do Ministério Público. Desse modo, antes de deliberar sobre o flagrante, o magistrado deve ouvir o Ministério Público, o qual não deverá se limitar a analisar a formalidade da prisão, mas sim adentrar no mérito e se manifestar acerca da necessidade da segregação cautelar (ou de aplicação de medida cautelar diversa da prisão), expondo os motivos. Caso o Ministério Público fique inerte, o juiz, então, não terá outra alternativa a não ser conceder a liberdade provisória.
Talvez seja exatamente por isso, para que o Ministério Público se manifeste acerca da necessidade da decretação da prisão provisória ou outra medida cautelar, que o legislador alterou o artigo 306, caput, do Código de Processo Penal introduzindo a obrigação de que a prisão em flagrante seja também comunicada imediatamente ao Parquet.
Não se está incentivando a impunidade, como alguns podem crer. Aliás, nesse ponto, não se pode perder de vista o caráter instrumental da prisão preventiva que jamais pode ter conotação de castigo, sendo ela, como toda medida de natureza cautelar, apenas um artifício para garantir o correto andamento do processo. E ninguém melhor que o Ministério Público, que é o titular da ação penal, saberá o exato momento em que haverá necessidade de se decretar a prisão preventiva.
Resumindo: de um lado, a favor da conversão do flagrante em preventiva de ofício, aqueles que se prendem à literalidade do artigo 310, II, do CPP (posição que parece ser majoritária nesse momento); já de outro lado, considerando o auto de prisão em flagrante apenas uma fase inaugural do inquérito policial e fazendo-se uma interpretação harmônica dos artigos 306, 310, II, e 311, caput, conjugando-os com o sistema acusatório adotado pela Constituição Federal de 1988, está a posição daqueles que defendem a impossibilidade de conversão ex officio da prisão de flagrante em prisão preventiva, sendo necessário prévio requerimento do titular da ação penal ou representação da autoridade policial.
Para finalizar, uma única questão que pode parecer tormentosa é a situação do tráfico de drogas (e também dos crimes hediondos em geral para alguns) já que há dúvida sobre a possibilidade de concessão de liberdade provisória para aqueles que o praticam. Nesse caso, se adotada a corrente daqueles que entendem constitucional a vedação da liberdade provisória, haverá uma exceção, decorrente da lei (artigo 44, caput, da Lei 11.343/06), e será possível a conversão do flagrante em prisão preventiva de ofício. Mas o que se vislumbra hoje é a tendência dos tribunais superiores em afastar qualquer tipo de prisão ex lege,sendo sempre imprescindível a presença dos requisitos que autorizam a prisão preventiva (STJ, HC 135.422/GO, julgado em 27/09/2011). Desse modo, seguindo a tendência, mesmo para o tráfico de drogas (e para os hediondos em geral), a conversão do flagrante em prisão preventiva de ofício pelo magistrado está vedada.