Introdução
A sanção punitiva estudada neste comentário, com base no projeto do legislativo para um novo Código de Processo Civil, ora em discussão na Câmara dos Deputados (PL 8046/2010), não desconsidera o entendimento doutrinário de que nem sempre a ameaça de agravamento da situação do executado com a previsão de sanções patrimoniais leva à obediência da determinação judicial, seja porque o executado não possui condições efetivas de cumprir o comando, seja porque não foi suficientemente estimulado a cumpri-lo. Não ingressei no campo da denominada sanção premiativa ou sanção premial — da qual a dispensa de custas e honorários de advogado pelo pagamento espontâneo na Ação Monitória é, no diploma vigente, o exemplo clássico — embora reconheça a importância de aprofundamento futuro do exame prático sobre o tema.
As ciências humanas têm métodos de compreensão e de interpretação do sentido das ações, das práticas, dos comportamentos, das políticas, pois, sendo o homem objeto dessas ciências, é um ser histórico cultural que produz as instituições e o sentido delas. Tal sentido é o que precisa ser conhecido.1 Assim, os atos processuais que a legislação pune devem resultar de uniformidade no método adotado para conceituá-los, sob pena de só se tornarem sancionáveis quando literalmente descritos, o que prejudica a amplitude que a medida deve ter para garantir a eficácia da decisão até então descumprida, objetivo principal a ser alcançado
Cabe ao juiz prevenir e reprimir os atos atentatórios, aplicar medidas que assegurem o rigoroso cumprimento de ordem judicial e determinar o pagamento da multa cominada, mas a legislação precisa definir com clareza o campo da liberdade de atuação das partes interessadas e dos demais operadores do direito envolvidos, para que o jurisdicionado possa perceber em que momento sua ação ou omissão constitui regular exercício do direito de resistir; ou prejudica a eficiência da Justiça; ou, apenas, descumpre determinação judicial não mandamental. Não podemos esquecer que atitudes processuais exercidas de boa-fé podem estar inseridas na liberdade constitucional de fazer alguma coisa que independa de previsão legal, como por exemplo o descumprimento de decisão evidentemente nula.
A sanção civil destina-se a obter, através da punição patrimonial, um caminho curto para o cumprimento da decisão e para o ressarcimento de perdas e danos causados à parte contrária pelo litigante de má-fé. São distintas, portanto, as situações em que a desobediência constitui crime (tipicidade e culpabilidade), daquelas em que configurado ato ilícito civil ou, finalmente, em que o descumprimento pode ser classificado como resistência lícita. Esta avaliação preliminar precisa ser feita pelo Juiz do Cível, pois importa saber, também, se o dever descumprido coube à parte ou dependia da atuação do advogado. Este, embora sujeito exclusivamente aos estatutos da OAB, não se encontra isento de prejudicar interesse confiado ao seu patrocínio. No dizer de Michel Foucault ao descrever a Regra da Certeza Perfeita que, embora destinada ao Direito Penal, aplica-se aqui ao ilícito processual civil: “Que as leis que definem os crimes e prescrevem as penas sejam perfeitamente claras, a fim de que cada membro da sociedade possa distinguir as ações criminosas das ações virtuosas.”
Que razões preliminares distinguem os atos processuais que ensejam sanções civis daqueles que sugerem instauração de processo de outra natureza?
O qualificativo dado a determinados atos processuais considerando-os como atentatórios à dignidade da Justiça e a outros como atentatórios ao exercício da jurisdição não é suficiente para evidenciar a natureza jurídica da sanção admissível. Considere-se a diversidade das situações objetivas que podem ocorrer em um processo civil e perceberemos que as locuções qualificativas acolhidas pelo Projeto são imprecisas:
a) Atos graves que revelam o desapreço à autoridade, a indiferença ou, mais especificamente, o desacato, cometidos em qualquer fase do processo;
b) Descumprimento de Sentenças Mandamentais, em que o Juiz manda e não simplesmente declara ou condena;
c) Atos de má-fé que visem impedir a efetivação de Sentenças já proferidas, e restritos, portanto, à fase de cumprimento ou de execução das Sentenças Declarativas, Constitutivas ou Condenatórias;
d) Atos de má-fé, ou indiferentes, em que demonstrada a intenção de obstruir o andamento do processo;
e) Atos praticados no exercício abusivo das próprias razões, ainda inexistente Sentença, e, por isto, propriamente prejudiciais ao exercício da jurisdição, como o obstáculo criado às citações ou a retenção de documentos de interesse de ambas as partes;
f) Atos omissivos que configurem resistência ao dever de boa-fé processual;
g) Comportamentos que ferem a ética em geral e os de desrespeito à liturgia processual, como a cota indevida nos autos.
Destaque-se que além dos parâmetros genéricos, outros critérios precisam ser levados em conta no exame da sanção aplicável pelo Juiz do Cível e dizem respeito à espécie da determinação a ser cumprida pela parte: se pagamento de quantia certa (juros de mora); obrigação de fazer infungível; obrigação de fazer fungível; obrigação de não fazer; interrupção de atividade nociva; entrega de coisa determinada, ressarcimento de danos processuais efetivamente causados à parte credora.
Portanto, cabe ao Juiz do feito avaliar cada caso, independentemente de provocação da parte, tomando providências ou dando conhecimento à autoridade competente, ao constatar prática criminal.
Sobre os atos processuais definidos no Projeto como atentatórios à dignidade da Justiça.
O cidadão encontra-se diante de novos princípios destinados a fortalecer a efetividade do Processo Civil brasileiro, princípios estes que, no dizer do Ministro Luiz Fux na apresentação do Projeto elaborado pela Comissão, devem resgatar a crença no Judiciário e tornar realidade a promessa constitucional de uma justiça pronta e célere.
O dispositivo abrangente que define atos atentatórios à dignidade da Justiça repete o Parágrafo único do artigo 14 do CPC em vigor, que prevê, desde 2001, a aplicação de sanções penais, às partes que não cumpram com exatidão os provimentos mandamentais ou criem embaraços à efetivação de provimentos judiciais de natureza antecipatória ou final. Voltada agora para fortalecimento da tutela antecipada, a regra foi mantida no art. 80 do PL 8046/2010.
Dentro do conceito de que só se podem considerar como atentatórios à dignidade da Justiça aqueles atos que revelem má-fé e manifesto desapreço à autoridade em qualquer fase do processo e os praticados já na fase de cumprimento e execução das Sentenças, mas tendentes a obstar-lhes a efetividade, temos, no atual art. 600 do CPC o dispositivo que pune hipóteses mais representativas da resistência à execução. A omissão no cumprimento do dever, uma vez intimado o devedor, é punida com multa não superior a 20% do valor atualizado do débito em execução, e o dispositivo ressalva o cabimento de outras sanções de natureza processual ou material. A multa reverte em favor do credor e pode ser exigida na própria execução.
O art. 733 do PL 8046/2010 reproduz por inteiro o artigo 600 e incisos vigentes, renumerando-os e acrescentando o novo inciso III relativo aos embaraços criados pelo devedor à realização da penhora. A inserção deste inciso está ligada à configuração inovadora do § 6º do art. 857 do PL 8046/2011 que considera expressamente ato atentatório à dignidade da Justiça a suscitação infundada de vício do bem em leilão com o objetivo de ensejar a desistência do arrematante. Ao contrário da sistemática adotada nas demais sanções, o dispositivo não estabelece critérios percentuais nem sobre a destinação da multa.
Finalmente, o art. 736 do PL 8046/2010, estabelece que a cobrança de multa ou indenização decorrentes da litigância de má-fé ou de prática de ato atentatório à dignidade da Justiça será promovida no próprio processo de execução, em autos apensos, fórmula que, certamente, complicará quando se tratar da multa em favor da União ou do Estado como terceiro destinatário. Silencia sobre a cobrança de multa nos atos atentatórios ao exercício da jurisdição.
Outras sanções dependem de promoção do MP a quem, habitualmente, os pedidos em sede processual civil deverão ser encaminhados. Não se tem notícia de decretação da prisão no juízo cível — como sugerem alguns doutrinadores — pelo fato de a desobediência constituir crime continuado, em flagrante permanente.
A estranha qualificação como atentatório à dignidade da Justiça de um ato destituído de ofensividade.
O anteprojeto aprovado pela Comissão de Juristas estabeleceu procedimento inovador determinando que, antes de apresentada a contestação, deva ser realizada uma audiência em que o Juiz tentará fazer com que autor e réu cheguem a um acordo. Dessa audiência poderão participar conciliadores ou mediadores e, obrigatoriamente, o réu, cuja ausência injustificada qualificava como ato atentatório à dignidade da justiça. Não concluído acordo começará a correr o prazo para contestação. A disposição inscrita no art. 333 do PL 166 do Senado estabelecia no § 5º que o não comparecimento injustificado do réu seria considerado ato atentatório à dignidade da Justiça, passível de sanção processual.
Posteriormente o PL 8046/2010, fazendo readaptação do texto no art. 323, tornou o procedimento em audiência minucioso, e estendeu o conceito de ato atentatório também à hipótese de ausência do autor, passando o § 6º ao seguinte teor: “o não comparecimento injustificado do autor ou do réu é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento do valor da causa ou da vantagem econômica objetivada, revertida em favor da União ou do Estado.” A consideração das ausências como ato atentatório à dignidade da Justiça deve ter tido por objetivo enfatizar a importância da realização de audiência prévia.
Mas este § 6º do art. 323 contém disposições impróprias. Primeiro, ao fazer reverter a multa, indeterminadamente, em favor da União ou do Estado, pois sempre que o legislador pretender que determinada matéria seja regulada por disposição complementar, expressamente assim o requererá. Depois, ao incluir o autor no ato suscetível de multa, dando prosseguimento ao Processo. Ora, se para propor a ação é necessário ter legítimo interesse — como destacam a doutrina e o art. 17 do PL 8046/2010 — a ausência injustificada do autor à audiência de conciliação repercute na avaliação do seu interesse processual e, portanto, uma vez reconhecida a ausência injustificada, deveria ser decretado o indeferimento da inicial como estabelece o inc. III do art. 305 do PL 8046/2010. Importante destacar que se trata de ausência imotivada, sendo necessária, portanto, a abertura de prazo para justificação.
Sobre os descumprimentos a comandos judiciais definidos como atos atentatórios ao exercício da jurisdição.
Os atos e as omissões de má-fé, ou indiferentes, em que evidente o sentido de obstrução ao andamento do processo ou o exercício abusivo das próprias razões inserem-se na previsão do art. 14 do CPC vigente e encontram-se sancionados no art. 80 § 1º do PL 8046/2010, sob denominação de atos atentatórios ao exercício da jurisdição. A recomendação, hoje vigente, do simples poder de o Juiz aplicar a multa, passa a ser um dever expresso, quando a parte não cumprir com exatidão as decisões de caráter executivo ou mandamental ou criar embaraços à efetivação de pronunciamentos judiciais de natureza antecipatória ou final. Nada foi disposto, entretanto, sobre a gradação de aplicação da multa e sobre avaliação da gravidade ou não do descumprimento, mas apenas traçados limites gerais. Perdeu-se, neste ponto, a oportunidade de instrumentar o Juiz de forma clara quanto ao andamento dos processos.
Outros atos que possam revelar afronta à ética em geral ou simples desrespeito à liturgia processual mereceram medidas específicas como a intimação para devolução dos autos por excesso de prazo ou por retirada indevida no curso de prazo comum e a eliminação de anotações impróprias. Também reprimidos, embora não tenham sido classificados como configuradores de atentado ao exercício da jurisdição, o recurso ou a ação rescisória manifestamente incabíveis.
O quadro das demais sanções pecuniárias específicas no PL 8046/2010
O Projeto posto em discussão na Câmara dos Deputados com vistas à revogação do CPC vigente ? elaborado por um Comissão de Juristas e rediscutido pelo Senado, onde recebeu o Substitutivo ora em discussão na Câmara sob o nº PL 8046/2010 ? mantém um total desapreço à adoção de um método para definição e subsequente sanção processual ou material das ilicitudes ocorridas no curso do processo civil.
A dispersão se torna ainda mais evidente na fixação de valor das multas, indo da vinculação ao salário mínimo — vedada pelo art. 7, IV da Constituição Federal — à sanção, sem valor definido, quando se trata de determinar a exibição de documento pela parte contrária (Art. 386) ou por terceiro (Art. 366 § ún.). Com multas vinculadas ao salário mínimo são punidos o lançamento indevido de cotas marginais nos autos (Art. 169); a retenção injustificada do processo após intimação (Art. 202 §1º); o pedido indevido de citação por edital (Art. 227) e a litigância de má-fé nas causas de valor irrisório ou inestimável (Art. 84, § 3º).
Aos graves descumprimentos das decisões mandamentais nas execuções de entrega de coisa certa (Art. 763), de devolução de objeto custodiado na tutela de evidência (Art. 278) são atribuídas multas diárias, até que se efetive o cumprimento, mas quando se trata de execução da obrigação de fazer ou não fazer fundada em título judicial (Art. 780) está prevista uma multa periódica que significa não ser, necessariamente, diária. Do mesmo modo, é periódica a multa pelo não cumprimento espontâneo das sentenças de fazer, não entregar e não fazer (Art. 522 § 1º), mas será percentual no não cumprimento espontâneo, ou cumprimento insuficiente, das sentenças de pagar quantia certa (Art. 509 § 1º e 512).
Em limites percentuais “sobre o valor da causa” foram estabelecidas sanções pelos embargos declaratórios manifestamente protelatórios (Art. 980); pela litigância de má-fé (Art. 84); pela falta à audiência inicial de conciliação (Art. 323 § 6º); no comando genérico sobre o descumprimento das decisões executivas ou mandamentais (Art. 803 §§ 1º e 2º); o reembolso de despesas e honorários pagos pelo réu excluído por ser parte ilegítima (Art. 328) e mais, sem qualquer justificativa, o depósito em caução pela interposição da Ação Rescisória (Art. 921). Destaque-se que a multa pela interposição manifestamente inadmissível do Agravo Interno havia sido prevista inicialmente no Senado, mas foi excluída na redação final do Substitutivo.
Multa percentual, também, foi estabelecida para suprir a mora do pagamento parcelado concedido nos embargos do devedor (Art. 872)
Conclusão
É indiscutível que o aperfeiçoamento dos controles da Administração Pública criou novas oportunidades e meios facilitadores da efetividade da tutela civil, tais como as informações autorizadas na internet ou privativas dos juízes; a penhora on line; o acesso aos registros de propriedades móveis e às declarações de renda; os arquivos judiciais disponibilizados, mas é sobretudo através do conhecimento e do uso adequado de instrumentos processuais que a comunidade jurídica alcançará não somente a desejável presteza, mas a efetividade desta tutela.
Merece destaque, neste ponto, a pertinente observação do perfil traçado por Luiz Roberto Barroso em O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas, onde o autor comenta que, mesmo diante dos amplos poderes conferidos ao julgador no exercício da jurisdição civil ordinária, o típico juiz brasileiro, sem que isto importe em desmerecimento, acomoda-se no princípio da iniciativa da parte, descurando do impulso oficial que lhe cabe dar. O princípio do impulso processual está preservado no art. 2º do PL 8046 aqui comentado. O doutrinador ainda aprofunda a observação ao lembrar que mesmo quando da produção de provas úteis ou indispensáveis à demonstração dos fatos, é comum constatar-se inocultável descompromisso com o resultado final do processo e a realização efetiva de justiça. A crítica aqui exposta comprova a outra face da mesma moeda: se de um lado se exige um método coerente na lei para que o jurisdicionado cumpra com pontualidade as decisões judiciais; de outro há que se esperar que os julgadores mantenham o foco no impulso oficial que lhes cabe exercer e que tais objetivos permaneçam claros em seus provimentos.
Cabe, portanto, ao novo regime processual, adotar um método fundamentado de sanção pecuniária, organizando o sistema e evitando que se tenha um conjunto de punições dispersas, ora em favor das partes, ora em favor do Estado, começando por:
1. Eliminar as qualificações irrelevantes e indiscriminadas de atos atentatórios à dignidade da justiça e atos atentatórios ao exercício da jurisdição;
2. Determinar expressamente que o Juiz do cível encaminhe ao MP, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, os atos processuais em que configuradas infrações penais permanentes;
3. Estabelecer sanções punitivas de multa diária enquanto não cumprida a determinação judicial de fazer infungível ou não fazer, ou de entregar coisa determinada, em qualquer fase do processo, sempre ouvida antes a parte obrigada;
4. Deixar ao arbítrio do Juiz e à construção da jurisprudência a fixação das sanções punitivas ou uso de meios que obtenham o mesmo resultado pretendido, quando comprovadas a má-fé, o dolo processual, o descumprimento da obrigação de fazer fungível e o não cumprimento espontâneo de obrigação de pagar, independentemente da apuração conexa dos prejuízos causados à parte contrária;
5. Transferir às entidades competentes aplicação de sanções administrativas aos atos dos procuradores praticados no processo em desacordo com a legislação própria;
6. Desenvolver, juntamente com estudos de outras áreas do conhecimento especializado, uma avaliação mais ampla sobre a eficiência da sanção premiada ou sanção premial, ampliando-a se positiva.
7. Tornar obrigatória a aplicação da pena acessória (astreinte) incorporada à sentença e consistente na fixação da multa por dia de atraso no atendimento da condenação principal transitada em julgado.
Referências:
BARROSO, Luiz Roberto – O Direito Constitucional e a efetividade das suas normas – RENOVAR, 6ª ed. 2002, pag. 127
CAVALHEIRO, Juliana Silbernagel de Moura- Sanções Premiativas - EMERJ 2010
CHAUÍ, Marilena – Convite à Filosofia – Editora Ática: São Paulo, 12ª ed., 2000, pág. 158/159
FOUCAULT, Michel – Vigiar e Punir – trad. De Raquel Ramalhete – Petrópolis, Vozes, 26ª ed., 2002, pág.80
FUX, Luiz – O descumprimento das decisões judiciais e a criminalização do processo civil – Rev. de Dir. Renovar