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Do poder de polícia dos órgãos intergrantes do sistema brasileiro de defesa da concorrência na condução dos processos administrativos

31/07/2012 às 14:14
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A multa prevista no art. 26 da Lei n º 8.884/1994 goza de autonomia em relação ao resultado do julgamento a ser proferido pelo CADE. Se um ato de concentração submetido ao SBDC não é conhecido, ou é aprovado sem restrições, eventual multa aplicada por enganosidade ou retardamento no fornecimento de informações persistiria integralmente.

Introdução

A Ordem Econômica, segundo art. 170 da Constituição Federal, é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por escopo assegurar a todos existência digna em conformidade com os ditames da justiça social[1].

Verdadeiramente, a Carta da República de 05 de outubro de 1988, assim como a de 1934, trouxe uma regulação constitucional da atividade econômica, talvez ou certamente em referência ao movimento pós-positivista, fiel combatente do liberalismo exagerado e insensato.

Previu o texto constitucional diversos princípios a serem observados no campo da atividade econômica, dentre eles o da livre concorrência, em clara contraposição ou restrição ao fundamento basilar da livre iniciativa.

A diferenciação entre livre iniciativa e livre concorrência é ponto salutar para o desenvolvimento do tema sugerido, apesar de distante da conclusão a que chegará ao fim deste estudo.

Equivocam-se, ao que parece, aqueles que tratam como sinônimos a livre iniciativa e a livre concorrência, essa é a lição de Fernando Herren Aguillar:

“O princípio da liberdade de concorrência é o contraponto do princípio da liberdade de iniciativa e não seu sinônimo, como alguma doutrina acaba sustentando. O agente econômico é livre para empreender o que bem entenda, desde que não prejudique a liberdade, de outros agentes econômicos, de concorrer. Em sentido inverso, para que haja liberdade de concorrer é preciso que não se utilize em termos absolutos a liberdade de empreender, o que somente pode ser obtido mediante restrições a esta última”. (AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: Do Direito Nacional ao Direito Supranacional. 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 227/228).

Pois bem, a Lei Maior garante o exercício da livre iniciativa, ressalvando a necessidade de uma concorrência livre, justa e leal, a ser garantida por meio de Lei voltada ao combate do abuso do poder econômico[2].

A Lei nº 8.884/1994 regulou a assunto, tratando do controle de estruturas e da repressão aos ilícitos econômicos, em clara restrição à livre iniciativa.

A aplicação da citada Lei ficou a cargo do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), composto pela Secretaria de Direito Econômico (SDE), Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) e Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).


1. Breve exposição sobre a organização administrativa do SBDC

A Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) pertence ao Ministério da Fazenda, já a Secretaria de Direito Econômico (SDE) pertence ao Ministério da Justiça, ambas são responsáveis pela instrução dos processos que tramitam perante o SBDC.

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) é uma autarquia federal, dotada, portanto, de autonomia administrativa e financeira, constituindo-se em órgão judicante com jurisdição em todo território nacional[3]. O CADE é responsável pelo julgamento dos processos, podendo, no entanto, efetuar uma instrução complementar para melhor elucidação da questão posta sob sua análise.

Trata-se de uma engenharia que envolve a Administração direta e indireta da União, na qual os integrantes possuem atribuições complementares e as vezes não excludentes, a exemplo do que ocorre com a instrução dos feitos.

É neste campo surge a questão que o presente capítulo pretende desvendar, sendo necessário, contudo, desenvolver previamente sobre a doutrina do contempt of court.


2. Do contempt of court

O instituto do contempt of court surgiu para tutelar o exercício da atividade jurisdicional nos países da common law.

Trata-se da aplicação de métodos de coerção e/ou punição em reprimenda àqueles participes do processo que de alguma forma atentem contra a dignidade da justiça.

Vale lembrar que não há uma tradução específica para a expressão contempt of court, sendo entendida como desprezo à corte ou desacato ao tribunal.

Classifica-se o contempt of court em civil e criminal. O primeiro está relacionado com a desobediência às decisões judiciais, desafiando medidas coercitivas. O segundo tem relação com atos que vilipendiem a autoridade judicial, ocasionando sanções punitivas.

A perspectiva de ambos são diferentes, contempt civil visa coagir o cumprimento de uma decisão judicial, atuando para o futuro, já o contempt criminal tem por escopo a punição do faltoso, atuando de forma pretérita.

A confusão entre os conceitos do contempt civil e criminal, e a aplicação simultânea das duas medidas fez surgir uma nova espécie de contempt, denominada de contempt por descumprimento, passível de aplicação tanto como medida punitiva como medida coercitiva, independentemente da natureza do ato praticado.

Por fim, para constar, classifica-se também o instituto em análise em direto e indireto. Direto é aquele praticado no tribunal. Indireto, por via de conseqüência, é aquele praticado fora dele.


3. Do paralelo entre contempt of court previsto em alguns dispositivos do Código de Processo Civil e os instrumentos de condução processual previstos na Lei nº 8.884/1994

O art. 26, caput, da Lei nº 8.884/1994 estabeleceu uma multa por enganosidade e/ou por ato atentatório à dignidade dos órgãos que compõem o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), in verbis:

Art. 26. A recusa, omissão, enganosidade, ou retardamento injustificado de informação ou documentos solicitados pelo CADE, SDE, Seae, ou qualquer entidade pública atuando na aplicação desta lei, constitui infração punível com multa diária de 5.000 Ufirs, podendo ser aumentada em até vinte vezes se necessário para garantir sua eficácia em razão da situação econômica do infrator. (Redação dada pela Lei nº 9.021, de 30.3.95).

As razões do dispositivo são claras, e traduzem-se na preocupação do legislador em prever instrumento hábil capaz de garantir a instrução dos processos perante o CADE, a SEAE e a SDE.

É que a instrução do processo no âmbito da concorrência cabe aos integrantes do SBDC, diferentemente do que ocorre no processo civil, cujo ônus da prova incumbe a quem alega (Art. 333 do CPC).

Para exemplificar, abaixo inc. IX do art. 7º da Lei nº 8.884/1994:

Art. 7º Compete ao Plenário do CADE:

IX - requisitar informações de quaisquer pessoas, órgãos, autoridades e entidades públicas ou privadas, respeitando e mantendo o sigilo legal quando for o caso, bem como determinar as diligências que se fizerem necessárias ao exercício das suas funções;

A multa prevista do art. 26 da Lei nº 8.884/1994 guarda relação com o art. 461 do Código de Processo Civil, na medida em que visa dar efetividade às decisões do órgão judicante (CADE), e porque não dizer dos órgãos de instrução do SBDC (SEAE e SDE), quando da requisição de documentos.

Para reforçar o paralelismo invocado, e com igual propriedade, impende mencionar o parágrafo único do art. 14 do CPC, que assim dispõe:

Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: (Redação dada pela Lei nº 10.358, de 27.12.2001)

V - cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.(Incluído pela Lei nº 10.358, de 27.12.2001)

Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado. (Incluído pela Lei nº 10.358, de 27.12.2001).

O dispositivo construiu uma espécie de contempt of court punitivo, decorrente do poder atípico de polícia do magistrado. A multa prevista por ato atentatório ao exercício da jurisdição possui o mesmo fundamento da multa prevista no art. 26 da Lei 8.884/1994, no que se refere à enganosidade perpetrada pelo administrado, e o mais importante a se destacar é que o poder de polícia da SDE, do CADE e SEAE é típico, e, portanto, o conteúdo do art. 26 da Lei de Concorrência não causa nenhum espanto.


4. Da autonomia das decisões fundamentadas no contempt of court

A multa prevista no art. 26 da Lei n º 8.884/1994 goza de autonomia em relação ao resultado do julgamento a ser proferido pelo CADE, assim, se, por exemplo, um ato de concentração submetido ao SBDC não é conhecido, ou é aprovado sem restrições, eventual multa aplicada por enganosidade ou retardamento no fornecimento de informações persistiria integralmente.

Não reconhecer esta autonomia seria o mesmo que negar eficácia aos parágrafos 3º e 4º do art. 461 do Código de Processo Civil, no caso de sentença contrária aos interesses da parte beneficiada pela tutela específica concedida in initio litis.

Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994).

§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994).

§ 4º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994). (grifo nosso).

Impende relembrar que a multa prevista por ato atentatório ao exercício da jurisdição é autônoma, com substrato no poder de instrução e passível de inscrição em dívida ativa, independentemente do resultado da demanda, neste diapasão, a multa prevista no art. 26 da Lei 8.884/94 goza das mesmas características, conforme arts. 60 e 61 da retro mencionada Lei.  

Em acórdão proferido no Recurso Especial nº 984.249/DF, julgado pela Primeira Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, ficou arraigado entendimento de que multas aplicadas pelo CADE decorrente de infrações formais independem da aprovação ou não do Ato de Concentração pelo Plenário da Autarquia.

“ADMINISTRATIVO. DEFESA DA CONCORRÊNCIA. OPERAÇÃO DE CONCENTRAÇÃO DE EMPRESAS. APROVAÇÃO PELO CADE. PRAZO PARA APRESENTAÇÃO DOS DOCUMENTOS. TERMO INICIAL. DATA DA EFETIVAÇÃO DO ATO JURÍDICO COM EFICÁCIA VINCULATIVA. SENTIDO DA LEI Nº 8.884/94 (ART. 54, § 4º) E DA RESOLUÇÃO Nº 15/98 - CADE (ART. 2º). INOBSERVÂNCIA DO PRAZO. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA DE NATUREZA FORMAL (ART. 54, § 5º), CUJA TIPICIDADE OU CONSUMAÇÃO INDEPENDEM DA LEGITIMIDADE DA DOCUMENTAÇÃO APRESENTADA OU DA APROVAÇÃO DA OPERAÇÃO PELO CADE. RECURSO PROVIDO.”

(STJ – Primeira Turma – REsp 984.249/DF – Relator: Ministro José Delgado – Relator para Acórdão: Ministro Teori Albino Zavascki – Sessão de julgamento ocorrida em 03/03/2009 – Acórdão publicado no DJe em 29/06/2009)

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A jurisprudência agasalha o entendimento aqui defendido, o que faz crer que as multas aplicadas pelo CADE ou pelos demais órgãos do SBDC gozam de autonomia, não estando sua execução vinculada ao resultado do julgamento dos processos, seja no controle de estruturas, seja no controle de condutas.


Conclusão

Na introdução foi dito que a diferenciação entre livre iniciativa e livre concorrência seria importante para a conclusão do tema proposto.

Pois bem, a livre concorrência é preservada por meio do controle de estruturas e por meio do controle de condutas, entretanto, para que esse controle seja efetivado, mister se faz proporcionar ao administrado o devido processo legal, com as garantias a ele inerentes, tendo em vista que esta atividade de controle decorre do poder de polícia, e restringe direito fundamental, a saber, a livre iniciativa.

Os órgãos integrantes do SBDC atuam na defesa do interesse público, respaldados principalmente na Lei nº 8.884/1994, que para garantir um uma melhor instrução dos feitos perante o CADE, autarquia judicante, garantiu-lhe poderes de regulamentação nos arts. 7º, XIX[4] e 51[5], no ideal claro de sustentar uma ideal aplicação do poder de polícia. Ressalta-se que os permissivos legais não tratam de poder regulatório, mais de poder de regulamentação para fiel execução da Lei.

É bom dizer que a Lei do “Super CADE” foi aprovada (PL 3.937/2004), estando pendente de sanção pela Presidente da República, no entanto, as ponderações feitas neste trabalho servem inalteradas para o novo texto, sendo necessário fazer duas ressalvas, a SDE vai ser absorvida para a estrutura do CADE, e a SEAE passará a exercer outras atribuições no âmbito do Ministério da Fazenda.


Bibliografia:

AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: Do Direito Nacional ao Direito Supranacional. 1ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula; PEREIRA, Jane Reis Gonçalves; SARMENTO, Daniel; NETO, Cláudio Pereira de Souza. A nova interpretação constitucional: Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2004.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 15ª ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.

FIGUEREDO, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocência Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2007.


Notas

[1]“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios”. (art. 170, caput, da Constituição Federal).

[2]“§ 4º A Lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. (§ 4º do art. 170, da Constituição Federal).

[3]“Art. 3º O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), órgão judicante com jurisdição em todo o território nacional, criado pela Lei nº 4.137, de 10 de setembro de 1962, passa a se constituir em autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com sede e foro no Distrito Federal, e atribuições previstas nesta lei”. (art. 3º da Lei 8.884/1994).

[4] XIX - elaborar e aprovar seu regimento interno dispondo sobre seu funcionamento, na forma das deliberações, normas de procedimento e organização de seus serviços internos, inclusive estabelecendo férias coletivas do Colegiado e do Procurador-Geral, durante o qual não correrão os prazos processuais nem aquele referido no § 6º do art. 54 desta lei. (Redação dada pela Lei nº 9.069, de 29.6.95)

[5] Art. 51. O Regulamento e o Regimento Interno do CADE disporão de forma complementar sobre o processo administrativo.

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Sobre o autor
Roberto Inácio de Moraes

Procurador Federal em exercício na Procuradoria Federal Especializada junto ao CADE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Roberto Inácio. Do poder de polícia dos órgãos intergrantes do sistema brasileiro de defesa da concorrência na condução dos processos administrativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3317, 31 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22328. Acesso em: 23 dez. 2024.

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