5. DA INCONSTITUCIONALIDADE POR VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 5º, XXIII E 186, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – FUNÇÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE
5.1 – Da Função Ambiental da Propriedade
Com o advento da nova ordem constitucional, o conceito da função da propriedade modificou-se, abandonando-se a visão privada do Código Civil de 1916, alcançando-se uma ótica social, conforme expressamente disposto no artigo 5º, XXIII, da Constituição Federal:
“Art. 5º. ...
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;”
Como corolário desta função social, surge também a necessidade de que a propriedade atenda sua função ambiental, exigência esta feita expressamente em relação à propriedade rural no artigo art. 186, I e II, da CF:
“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;”
Ressalte-se que a Propriedade como instituto jurídico teve radicalmente alterada sua estrutura, pois além de incorporar em seu conteúdo a função social, uniu-se em vínculo placentário à tutela ambiental. Em outras palavras, o respeito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado constitui premissa básica para o atendimento da função social da propriedade, mormente quando diretamente relacionado à proteção da vida humana (GOMES, Luís Roberto O Princípio da Função Social da Propriedade e a Exigência Constitucional de Proteção Ambiental. In Revista de Direito Ambiental n. 17, Revista dos Tribunais, p. 170).
Portanto, tratando-se de propriedade rural, a mesma deve cumprir a sua função ambiental constitucionalmente prevista.
5.2 – Dos Institutos das Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal como Materialização Intrínseca da Função Ambiental da Propriedade Rural Privada
Que a propriedade rural deve cumprir sua função ambiental não restam dúvidas. Contudo, o que se impõe questionar é o conteúdo desta responsabilidade em cumprir sua “função ambiental”.
Ocorre que os principais institutos relativos à função ambiental da propriedade rural previstos pela legislação infraconstitucional – e que vem implementar e dar eficácia prática ao princípio constitucional acima exposto – são os institutos da Reserva Legal e da Área de Preservação Permanente.
Foram estes dois institutos, previstos em nosso ordenamento pátrio desde o Código Florestal de 1934 (Decreto-lei n. 23.793, de 23/01/1934), que sempre deram esta característica de função ambiental neste tipo de propriedade.
Na doutrina moderna, a efetiva implementação da função ambiental da propriedade pelos institutos da Reserva Legal e Área de Preservação Permanente também foram pontuados pelo hoje Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Antônio Herman Benjamim:
“Em linhas gerais, nenhum dos dispositivos do Código Florestal consagra, aprioristicamente, restrição que vá além dos limites internos do domínio, estando todos constitucionalmente legitimados e recepcionados; demais disso, não atingem, na substância, ou aniquilam o direito de propreidade. Em ponto algum as APPs e a Reserva Legal reduzem a nada os direitos do proprietário, em termos de utilização do capital representado pelos im´poveis atingidos. Diante dos vínculos que sobre elas incidem, tanto aquelas como esta aproximam-se muito da modalidade moderna de propriedade restrita, restria, sim, mas nem por isso menos propriedade.” (Refelxões sobre a hipertrofia do direito de propriedade na tutela da reserva legal e das áreas de preservação permanente, Revista de Direito Ambiental n. 4, Ed. RT, p. 56)
Este também é o entendimento de Paulo Affonso Leme Machado ao tratar do instituto da Reserva Legal:
“A Reserva Legal Florestal tem sua razão de ser na virtude da prudência, que deve conduzir o Brasil a ter um estoque vegetal para conservar a biodiversidade. Cumpre, além disso, o princípio constitucional do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. Importa dizer que cada proprietário não conserva uma parte de sua propriedade com florestas somente no interesse da sociedade ou de seus vizinhos, mas primeiramente no seu próprio interesse.” (Direito Ambiental Brasileiro, Ed. Malherios, 15ª Ed., p. 755)
Na jurisprudência a aplicação destes dois institutos também sempre foram reconhecidos como a faceta prática do cumprimento da função social ou ambiental da propriedade rural. Confira-se em acórdão paradigma do Superior Tribunal de Justiça:
“ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. ARTS. 16 E 44 DA LEI Nº 4.771/65. MATRÍCULA DO IMÓVEL. AVERBAÇÃO DE ÁREA DE RESERVA FLORESTAL. NECESSIDADE.
1. A Constituição Federal consagra em seu art. 186 que a função social da propriedade rural é cumprida quando atende, seguindo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, a requisitos certos, entre os quais o de "utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente"
2. A obrigação de os proprietários rurais instituírem áreas de reservas legais, de no mínimo 20% de cada propriedade, atende ao interesse coletivo.
3. A averbação da reserva legal configura-se, portanto, como dever do proprietário ou adquirente do imóvel rural, independentemente da existência de florestas ou outras formas de vegetação nativa na gleba.
4. Essa legislação, ao determinar a separação de parte das propriedades rurais para constituição da reserva florestal legal, resultou de uma feliz e necessária consciência ecológica que vem tomando corpo na sociedade em razão dos efeitos dos desastres naturais ocorridos ao longo do tempo, resultado da degradação do meio ambiente efetuada sem limites pelo homem. Tais consequências nefastas, paulatinamente, levam à conscientização de que os recursos naturais devem ser utilizados com equilíbrio e preservados em intenção da boa qualidade de vida das gerações vindouras (RMS nº 18.301/MG, DJ de 03/10/2005).
5. A averbação da reserva legal, à margem da inscrição da matrícula da propriedade, é conseqüência imediata do preceito normativo e está colocada entre as medidas necessárias à proteção do meio ambiente, previstas tanto no Código Florestal como na Legislação extravagante. (REsp 927979/MG, DJ 31.05.2007)
6. Recurso Especial provido.”
(STJ - REsp 821083 / MG RECURSO ESPECIAL 006/0035266-2 – Relator Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 25/03/2008 e publicado em 09/04/2008) |
Por estes motivos é que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a Reserva Legal não é uma mera abstração matemática, devendo ser devidamente caracterizada e demarcada dentro da propriedade, sob pena de ferir-se o Código Florestal (MS 23.370-2 Goiás, de 16/12/99: “A ‘reserva legal’, prevista no art. 16, § 2º, do Código Florestal, não é quota ideal que possa ser subtraída da área total do imóvel rural, para o fim do cálculo de sua produtividade (cf. L. 8.629/93, art. 10, IV), sem que esteja identificada na sua averbação” e MS 22.688-9 Paraíba, de 03/02/99: “A reserva legal não é uma abstração matemática. Há de ser entendida como uma parte determinada do imóvel. Sem que esteja identificada, não é possível saber se o proprietário vem cumprindo as obrigações positivas e negativas que a legislação ambiental lhe impõe. Por outro lado, se não se sabe onde concretamente se encontra a reserva, se ela não foi medida e demarcada, em caso de divisão ou desmembramento de imóvel, o que ocorreria é que cada um dos novos proprietários só estaria obrigado por lei a preservar vinte por cento de sua parte. Desse modo, a cada nova divisão ou desmembramento, haveria uma diminuição do tamanho da reserva proporcional à diminuição do tamanho do imóvel, com o que restaria frustrada a proibição da mudança de sua destinação nos casos de transmissão a qualquer título ou de desmembramento, que a lei florestal prescreve.”).
Fica evidente, assim, que a existência de Reserva Legal e de Área de Preservação Permanente é condição sine qua non para atingir a finalidade prevista no artigo 5º, XXIII e 186, I e II da Constituição Federal, sendo que quaisquer dispositivos que venham a esvaziar o conteúdo desta norma, devem ser considerados inconstitucionais.
5.3 – Da inconstitucionalidade do “esvaziamento” dos Institutos da Preservação Permanente e Reserva Legal feita pelo Novo Código Florestal
Pois bem, ficando evidente que tais institutos fazem parte do conteúdo normativo do princípio da função ambiental da propriedade rural, é evidente que não podem eles ser eliminados do ordenamento prático.
Mas não é só, não basta apenas a garantia de não eliminação, mas também, há que se garantir que não haja esvaziamento ou ineficácia dos mesmos.
Ora, o que fez o legislador pátrio – mesmo contrariando a ciência e a vontade da população em geral, apenas para atender interesses econômicos – foi esvaziar o conteúdo dos institutos da área de preservação permanente e de reserva legal.
A função das APPs e das Reservas Legais, é justamente a proteção dos recursos hídricos e a troca de fluxo gênico, necessário ressaltar que a proteção das áreas de preservação permanente – conforme ensina Osny Duarte Pereira (Direito Florestal Brasileiro, 1950, p. 210) – não é feita “... apenas por interesse público, mas por interesse direto e imediato do próprio dono. Assim como ninguém escava o terreno dos alicerces de sua casa, porque poderá comprometer a segurança da mesma, do mesmo modo ninguém arranca as árvores das nascentes, das margens dos rios, nas encostas, ao longo das estradas porque poderá vir a ficar sem água, sujeito a inundações, sem vias de comunicação, pelas barreiras e outros males conhecidamente resultantes de sua insensatez. As árvores nestes lugares estão para as respectivas terras como o vestuário está para o corpo humano. Proibindo a devastação, o Estado nada mais faz do que auxiliar o próprio particular a bem administrar os bens individuais, abrindo-lhe os olhos contra os danos que poderia inadvertidamente cometer contra si mesmo”.
Portanto, amputou-se o instituto de tal forma a retirar sua configuração mínima, esvaziando seu conteúdo e incorrendo em inconstitucionalidade.
6 – DA INCONSTITUCIONALIDADE POR VIOLAÇÃO A TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS
Não fosse inconstitucional o artigo citado pela violação ao direito adquirido, ao princípio da vedação ao retrocesso, seria o mesmo inconstitucional ou inválido por violar texto expresso de tratados internacionais em que o Brasil é signatário.
Já se tornou consagrado na doutrina que trata dos tratados sobre Direitos Humanos – e aí, conforme apontado acima, está incluído direito ao meio ambiente – que o ingresso destes tratados em nosso ordenamento jurídico, se faz em plano superior à legislação infraconstitucional, dada a importância a que foi dada a esta matéria pela Constituição Federal, em seu artigo 5º, § 2º e 3º:
“Art. 5º. ...
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios a ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45/2004)”
Da redação do dispositivo não restam dúvidas que aqueles tratados aprovados após a emenda 45/2004 e que tenham tramitado nos moldes ali previstos, têm força de norma constitucional.
A questão a que se impõe resposta é em relação àqueles que são anteriores àquela emenda?
Pois bem, ao tratar do tema a professora Flávia Piovesan, apresenta resposta a esta questão:
“Ora, ao prescrever que ‘os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais’, a contrario sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos nacionais em que o Brasil seja parte. Esse processo de inclusão implica a incorporação pelo Texto Constitucional de tais direitos.
Ao efetuar a incorporação, a Carta atribui aos direitos internacionais uma natureza especial e diferenciada, qual seja, a natureza de norma constitucional. Os direitos enunciados nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Essa conclusão advém ainda de interpretação sistemática e teleológica do Texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional.
...
Uma vez mais, corrobora-se o entendimento de que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente ao mencionado parágrafo, ou seja, anteriormente à Emenda Constitucional n. 45/2004, têm hierarquia constitucional, situando-se como normas material e formalmente constitucionais. Esse entendimento decorre de quatro argumentos: a) a interpretação sistemática da Constituição, de forma a dialogar os §§2º e 3º do art. 5º, já que o último não revogou o primeiro, mas deve, ao revés, ser interpretado à luz do sistema constitucional; b) a lógica e racionalidade material que devem orientar a hermenêutica dos direitos humanos; c) a necessidade de evitar interpretações que apontem a agudos anacronismos da ordem jurídica; e d)_ a teoria geral da recepção do Direito brasileiro.” (Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, Ed. Saraiva, 8ª Ed, p. 52 e 73)
Note-se que este entendimento – de serem os tratados sobre direitos humanos anteriores à emenda 45 normas de direito constitucional material – foi expressamente reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça no RHC 18799, tendo como Ministro Relator José Delgado, em maio de 2006: “...o § 3º do art. 5º da CF/88, acrescido pela EC n. 45, é taxativo ao enunciar que ‘os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que foram aprovados, em cada Casa do Congresso nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais’. Ora, apesar de à época o referido Pacto ter sido aprovado com quórum de lei ordinária, é de se ressaltar que ele nunca foi revogado ou retirado do mundo jurídico, não obstante a sua rejeição decantada por decisões judiciais. De acordo com o citado § 3º, a Convenção continua em vigor, desta feita com força de emenda constitucional. A regra emanada pelo dispositivo em apreço é clara no sentido de que os tratados internacionais concernentes a direitos humanos nos quais o Brasil seja parte devem ser assimilados pela ordem jurídica do país como normas de hierarquia constitucional. Não se pode escantear que o § 1º supra determina, peremptoriamente, que ‘as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.’. Na espécie, devem ser aplicados, imediatamente, os tratados internacionais em que o Brasil seja parte.”
Portanto, não restam dúvidas de que tais tratados ingressam em nosso ordenamento jurídico com força superior à legislação infraconstitucional e, portanto, quaisquer normas que venham a lhes contrariar, deverão ser consideradas inconstitucionais ou inválidas – conforme a doutrina que se siga.