Resumo: Trata de tema referente à efetivação do direito de greve dos servidores públicos. Acompanha a evolução legislativa, especialmente a mudança da previsão constitucional, cujo texto original previa a implementação do direito de greve dos servidores estatutários via lei complementar, panorama que veio a ser alterado com a Emenda Constitucional n. 19, a partir de cuja publicação passou-se a exigir-se lei ordinária. Outrossim, apresenta a evolução da jurisprudência acerca da matéria. Conclui com a apresentação da jurisprudência concretista descortinada pelo Supremo Tribunal Federal, mostrando o regime jurídico hoje aplicável aos servidores públicos grevistas.
Sumário: RESUMO. 1 – INTRODUÇÃO. 2 – SOBRE O INSTITUTO. 2.1 – Breve escorço histórico:. 2.2 – Definição:. 2.3 – Natureza Jurídica:. 3 – QUADRO NORMATIVO. 4 – OIT E DIREITO DE GREVE. 5 – EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. 5.1 – Natureza Jurídica do Mandado de Injunção:. 5.2 – Posição Não-concretista:. 5.3 – Posição Concretista:. 6 – A QUESTÃO DO CORTE DE PONTO. 7 - CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS. ANEXOS.
1 – INTRODUÇÃO
A greve, desde há muito, é tema recorrente no quotidiano dos trabalhadores. De delito, esse instituto passou a ser tolerado pela legislação comparada, passando, finalmente, a constar nos textos legais de diversos países como direito[1].
Neste trabalho, intentaremos mostrar o quadro jurídico relativo ao direito de greve dos servidores públicos. Para tanto, percorreremos a evolução legislativa e jurisprudencial sobre a matéria. No fim do trabalho, apresentaremos a legislação hoje aplicável ao assunto, com base no avanço do entendimento de nosso Tribunal Excelso, nas vezes em que foi instado a tratar do tema.
Nosso ponto de partida se apoiará nas seguintes indagações: a falta de uma lei, cujas normas tratem especificamente do exercício do direito de greve por servidores públicos, impede que esses trabalhadores lato sensu venham a exercer essa garantia constitucional? Pode o Poder Judiciário suprir a omissão legislativa, dando ensanchas ao exercício desse direito independentemente da atuação do legislativo?
Partindo dessas perguntas, tomadas como dúvida metódica, pretendemos lançar um olhar sobre a possibilidade do exercício de um direito constitucional, cuja implementação dependeria, segundo opinião majoritária na doutrina e acompanhada pelo Excelso Pretório, de interposição legislativa (a qual, até o momento, não ocorrera), ser garantido judicialmente mesmo sem a edição da norma constitucionalmente exigida.
Para alcançar nosso desiderato, começaremos apresentando um breve histórico sobre a origem do instituto. Em seguida, uma definição, seguida da pesquisa sobre a natureza jurídica.
Adiante, aí sim percorreremos a evolução legislativa e jurisprudencial da matéria para, a final, concluir apresentando o regime jurídico que hoje rege o instituto da greve quando do exercício por servidores públicos.
2 – SOBRE O INSTITUTO
2.1 – Breve escorço histórico:
A história do instituto exsurge do regime de trabalho assalariado, fruto da Revolução Industrial. Nesse sentido, é possível atribuir aos movimentos sindicais ingleses o marco inicial da história da greve.
O vocábulo greve foi utilizado, primeiramente, no final do século XVIII, precisamente em uma praça de Paris, chamada de Place de Grève, onde se reuniam tanto desempregados quanto trabalhadores quê, insatisfeitos com baixos salários e jornadas excessivas, paralisavam suas atividades e reivindicavam melhores condições de trabalho. Nesse local, acumulavam-se gravetos trazidos pelas enchentes do rio Sena, donde advém o termo grève, originário de graveto.
No caso brasileiro, o instituto greve evoluiu da condição de tolerado, passando a delito, até ocupar o posto máximo de direito fundamental.
O Código Penal de 1890 proibia a greve, e até o advento do Decreto n. 1.162, de 12.12.1890, essa orientação foi mantida. A Lei n° 38, de 4-4-1932, que dispunha sobre segurança nacional, conceituou a greve como delito.
Em sede Constitucional, as cartas de 1891 e de 1934 foram omissas a respeito da greve.
Já a Constituição de 1937 (art. 139, 2ª parte) previa a greve e o lockout como recursos anti-sociais, nocivos ao trabalho e ao capital, e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional.
De volta ao âmbito legal, o Decreto-lei n° 431, de 18-5-1938, que também versava sobre segurança nacional, tipificou a greve como crime, no que diz com as condutas de incitamento dos funcionários públicos à paralisação coletiva dos serviços; induzimento de empregados à cessação ou suspensão do trabalho e a paralisação coletiva por parte dos funcionários públicos.
O Decreto-lei n° 1.237, de 2-5-1939, que instituiu a Justiça do Trabalho, previa punições em caso de greve, desde a suspensão e a despedida por justa causa até a pena de detenção.
O Código Penal de 7.12.1940 (arts. 200 e 201) considerava crime a paralisação do trabalho, na hipótese de perturbação da ordem pública ou se o movimento fosse contrário aos interesses públicos.
Como bem lembra Sérgio Pinto Martins[2], a Consolidação, ao ser promulgada, previa a pena de suspensão ou dispensa do emprego, perda do cargo do representante profissional que estivesse em gozo de mandato sindical, suspensão pelo prazo de dois a cinco anos do direito de ser eleito como representante sindical, nos casos de suspensão coletiva do trabalho sem prévia autorização do tribunal trabalhista (art. 723). O art. 724 da CLT ainda estabelecia multa para o sindicato que ordenasse a suspensão do serviço, além de cancelamento do registro da associação ou perda do cargo, se o ato fosse exclusivo dos administradores do sindicato.
O Decreto-lei n° 9.070, de 15-3-46, passou a tolerar a greve nas atividades acessórias, não obstante a proibição prevista na Constituição de 1937. Nas atividades fundamentais, contudo, permanecia a vedação.
Com a Carta de 1946 a greve passa a ser reconhecida como direito dos trabalhadores, embora condicionando o seu exercício à edição de lei posterior (art. 158). É importante assinalar, novamente apoiado no escólio de Sergio Pinto Martins[3], que
o STF entendeu que não havia sido revogado o Decreto-lei n° 9.070/46, pois não era incompatível com a Lei Fundamental de 1946, que determinava que a greve deveria ser regulada por lei ordinária, inclusive quanto a suas restrições.
Somente em 1º de junho de 1964, entrou em vigor a Lei de Greve (Lei n° 4.330), que prescrevia a ilegalidade da greve:
a) se não fossem observados os prazos e condições estabelecidos na referida lei;
b) que tivesse por objeto reivindicações julgadas improcedentes pela Justiça do Trabalho, em decisão definitiva, há menos de um ano;
c) por motivos políticos, partidários, religiosos, morais, de solidariedade ou quaisquer outros que não tivessem relação com a própria categoria diretamente interessada;
d) cujo fim residisse na revisão de norma coletiva, salvo se as condições pactuadas tivessem sido substancialmente modificadas (rebus sic stantibus).
Ainda, o art. 20, parágrafo único, da Lei n° 4.330/64, dispunha que a greve lícita suspendia o contrato de trabalho, de sorte que o pagamento dos dias de paralisação ficava a cargo do empregador ou da Justiça do Trabalho, desde que deferidas, total ou parcialmente, as reivindicações formuladas pela categoria profissional respectiva.
Não se relegue ao oblívio a correta observação de Francisco Osani de Lavor:
A Lei 4.330/64 regulamentou, por muito tempo, o exercício do direito de greve, impondo tantas limitações e criando tantas dificuldades, a ponto de ter sido denominada por muitos juslaboristas como a Lei do delito da greve e não a Lei do direito da greve[4].
A Constituição de 1967, em seu artigo 158, XXI, combinado com o art. 157, § 7º, assegurou a greve aos trabalhadores do setor privado, proibindo-a, contudo, em relação aos serviços públicos e às atividades essenciais.
A Emenda Constitucional nº 01, de 17.10.69, manteve a mesma orientação (artigos 165, XX, e 162).
Em 1988, com a promulgação da constituição cidadã, a greve foi erigida a direito social fundamental para os trabalhadores da iniciativa privada, competindo a eles decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender[5].
O texto constitucional (artigo 9º) apresenta ainda as seguintes prescrições sobre o exercício do direito de greve:
§ 1º - A lei definirá os serviços e atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2º - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.
Dessa forma, para os trabalhadores da iniciativa privada, a greve lhes foi garantida em termos amplos; todavia, na condição de direito fundamental, o exercício de tal direito deve ser contraposto aos demais direitos dessa mesma natureza, de sorte que venha a ser exercido sem abusos e com atenção às necessidades inadiáveis da comunidade.
Noutras palavras, devem ser respeitados os postulados da máxima efetividade, ponderação dos interesses, concordância prática, entre outros a cuja observância o intérprete não se poderá furtar.
Deve, portanto, haver uma harmonização entre o exercício do direito de greve e o dos demais direitos fundamentais da pessoa humana, sendo aquele colocado exatamente a serviço destes, como se dá no caso de proteção ao meio ambiente e à saúde do trabalhador[6].
Diferentemente, no que diz com o servidor público, celetista ou estatutário, o texto constitucional limitou-se a lhe garantir o direito de greve. Todavia, o constituinte originário remeteu à Lei Complementar[7] a tarefa de definir os termos e os limites do exercício do direito de greve pelo servidor público[8].
Por fim, ao militar foram expressamente vedadas a sindicalização e a greve[9].
2.2 – Definição:
Definir um instituto ou fenômeno é apreender e desvelar os seus elementos componentes, bem assim apresentar o nexo lógico que os mantém interligados.
Seguindo o propósito de nosso trabalho, escudar-nos-emos na lei de greve para apresentar a definição que nosso direito positivo vigente traz sobre o direito de greve.
Antes, porém, lembremos a lição de Trueba Urbina, trazida por Francisco Osani de Lavor[10], da qual se infere que a greve:
es la suspensión colectiva de labores, cuyo objeto fundamental es mejorar las condiciones o el rendimiento económico del trabajo, o de ambos a la vez.
A lei de greve brasileira[11] prevê que será legítimo o exercício do direito de greve quando houver a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador.
Dessa forma, vê-se que a greve é uma espécie de recurso à autotutela, por cujo exercício os trabalhadores (coletivamente considerados) suspendem a prestação de labor, com vistas à defesa de seus direitos e interesses.
Justamente por ostentar a natureza de autotutela[12], esse direito deve vir a ser exercido sem abusos[13], para não se tornar ilegítimo. É que o simples exercício do direito de greve já causa prejuízos econômicos diretamente ao empregador, além de, indiretamente, causar prejuízos à sociedade, a depender da atividade econômica atingida.
Nesse momento, passamos a ter subsídios para apresentar uma proposta de definição para o instituto da greve.
Greve corresponde a uma garantia de estatura constitucional, verdadeiro e legítimo direito social fundamental, de natureza instrumental, garantia essa a ser usada como ultima ratio, isto é, uma vez restadas inócuas as negociações prévias entre patrões e empregados, posta à disposição dos trabalhadores coletivamente considerados, para intentarem tornar concretos os pleitos de suas reivindicações, de forma pacífica e temporária, exercitada não necessariamente com a paralisação dos serviços[14], podendo adotar, entre outras, as formas de greve de zelo e ocupação de estabelecimento, cujos abusos sujeitam os responsáveis a sanções legalmente prescritas.
2.3 – Natureza Jurídica:
Chegamos, assim, à questão acerca da natureza jurídica do direito de greve.
A pesquisa sobre a natureza jurídica de um determinado instituto jurídico envolve dois processos. Em primeiro lugar, busca-se a sua definição (declaração da essência e conteúdo). Em seguida, procede-se à classificação dentro dos gêneros correlatos (posicionamento comparativo). Em síntese, é a apreensão dos elementos constitutivos de um instituto e a subseqüente classificação dentro do universo jurídico.
Para nós, se é verdade que se trata de um direito fundamental social dos trabalhadores (direito de causar prejuízo, autotutela), não é menos verdadeiro que esse direito deve ser exercido nos estritos limites legais, sob pena de se tornar ilegítimo (abuso de direito: artigo 187 do Código Civil; Constituição, artigo 9º, § 2º).
Para Raymundo Simão de Melo[15], a greve será legítima se exercida dentro de cinco limites básicos, os quais se encontram (i) nos serviços ou atividades essenciais; (ii) no atendimento das necessidades inadiáveis da população; (iii) na punição dos abusos cometidos por conta do exercício da greve; (iv) na limitação da greve no caso de servidor público, cujo exercício remete, hoje, à lei específica, a ser votada pelo Congresso Nacional; e (v) na proibição de greve ao militar (artigo 142, IV, Constituição).
Como já se disse, essas restrições, longe de atentarem contra a liberdade do trabalhador, apenas buscam conciliar a existência de direitos fundamentais contrapostos, harmonizando o exercício do direito de greve com o dos demais direitos e liberdades dos cidadãos, homenageando os princípios da concordância prática, da unidade e da máxima efetividade da constituição.
Seguindo, é forçoso reconhecer que se trata de direito de natureza instrumental (forma de se buscar melhorias das condições ambientais e sócio-econômicas[16] de trabalho), funcionando, desse modo, como garantia constitucional.
Como tem ensinado o mestre José Afonso da Silva, não se trata, portanto de
bem aferível em si, mas como recurso de última instancia para a concretização de seus (dos trabalhadores) direitos e interesses[17][negritamos].
Esse instrumento, todavia, é colocado à disposição dos trabalhadores apenas subsidiariamente, é dizer, apenas depois de esgotadas as tentativas de solução negociada (ultima ratio):
Lei 7783/89, art. 3º: Frustrada a negociação ou verificada a impossibilidade de recursos via arbitral, é facultada a cessação coletiva do trabalho.
Parágrafo único. A entidade patronal correspondente ou os empregadores diretamente interessados serão notificados, com antecedência mínima de 48 (quarenta e oito) horas, da paralisação.
No mesmo sentido, o Texto Constitucional:
§ 1º - Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.
§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
Afigura-se anômala uma greve deflagrada sem que tenha sido precedida de amplo debate.
Outro aspecto que deve ser destacado, no que diz com o estudo sobre a natureza jurídica do direito de greve, remete ao seu exercício coletivo[18]. Com efeito, o escólio de Arion Sayáo Romita[19] é claríssimo na matéria:
A greve é uma abstenção coletiva do trabalho deliberada por uma pluralidade de trabalhadores (do setor privado ou público) para a obtenção de um fim comum.[negritamos]
O direito de greve, como emanação do direito coletivo, superpõe-se ao direito individual das contratantes na relação de emprego. Não há, assim, como se falar em liberdade individual de não trabalhar, como se pensava outrora, mas em exercício de um direito coletivo reconhecido pela ordem jurídica.
A greve não é simplesmente uma paralisação do trabalho. É uma cessação temporária das atividades com o objetivo de impor a vontade dos trabalhadores ao empregador sobre determinados pontos, recorrendo-se a um processo que implica a crença de continuar o contrato, limitando-se a suspendê-lo. Isso significa que, durante a paralisação, não há pagamento de salários, a não ser que se negocie em sentido contrário (art. 7º da Lei nº 7.783/89[20]).
3 – QUADRO NORMATIVO
Como vimos, a Constituição de 1988, a par de garantir aos trabalhadores da iniciativa privada um direito de greve em termos amplos, condicionou aos servidores ocupantes de cargo ou emprego público o exercício desse mesmo direito à edição de Lei Complementar.
Especificamente sobre os empregados da iniciativa privada, o Texto Magno remete à edição de lei apenas para indicação de quais serviços ou atividades são considerados essenciais e sobre a forma de atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
E logo a 28 de junho de 1989 veio ao mundo jurídico a Lei 7.783/89. O artigo 10 do texto legal traz um rol (exemplificativo[21]) de serviços e atividades essenciais. O artigo seguinte impõe aos sindicatos, trabalhadores e empregadores o dever de manter, durante a greve, os serviços necessários ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Define ainda que se consideram inadiáveis as necessidades cujo não atendimento coloque em risco a vida, a saúde e a segurança da comunidade.
Entre outras coisas, a lei cuida, ainda, dos procedimentos que antecedem a deflagração da greve, das garantias dos grevistas e do direito de acesso à empresa ou ao estabelecimentos dos trabalhadores que não aderirem ao movimento. Cuida ainda da possibilidade de contratação de trabalhadores substitutos e sobre os efeitos da greve sobre o contrato de trabalho.
O artigo 16 da lei exclui expressamente os servidores do âmbito de aplicação dela[22].
Aliás, os servidores públicos, cujo exercício do direito dependeria da edição de lei complementar, viram-se numa discussão acerca da natureza da norma constitucional que fazia essa previsão. Seria ela de eficácia contida ou limitada[23], segundo a célebre distinção apresentada por José Afonso da Silva[24]?
Não há negar que a mora legislatoris em regulamentar o inciso VIl do art. 37 da Constituição tem suscitado tormentosas discussões doutrinárias e jurisprudenciais.
Duas correntes se destacaram sobre o tema.
A primeira sustentava a eficácia contida do preceito em exame, de forma que seria possível o exercício do direito antes mesmo da edição de lei complementar.
A segunda, entendendo ser o referido dispositivo not self-executing, pugnava por que o servidor somente poderia exercer o direito de greve após editada norma infraconstitucional (lei complementar, segundo a redação original da Constituição; lei específica, após a reforma). Vale dizer, para a segunda corrente, a norma constitucional é de eficácia limitada.
O STF, quando vigia a redação original do inciso VII do art. 37 da CF, adotou a segunda corrente, como é possível inferir do seguinte julgado:
Insuficiência de relevo de fundamentação jurídica em exame cautelar, da argüição de inconstitucionalidade de decreto estadual que não está a regular (como propõem os requerentes) o exercício do direito de greve pelos servidores públicos; mas a disciplinar uma conduta julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal, até que venha a ser editada a lei complementar prevista no art. 37, VII, da Carta de 1988 (M.I. n. 20, sessão de 19.5.94).´ (STF-TP- ADIN n. 1306-BA, Rel. Min. Octavio Galloti, requerentes: Partido dos Trabalhadores - PT e outros; requerido: Governador do Estado da Bahia, j. 30.06.95, DJU 27.10.95, p. 01806 - os grifos não constam do original).
A Emenda Constitucional 19, de 1998, emprestou nova redação ao dispositivo constitucional, o qual passou a exigir lei específica para que o direito fundamental sob discussão pudesse vir a ser exercitado.
A primeira questão a ser enfrentada diz com a natureza jurídica da espécie normativa lei específica. Isso porque, ao tratar da nomogênese jurídica, a constituição, no artigo 59, não apresenta a espécie lei específica. O raciocínio segundo o qual lei específica seria uma lei ordinária que tratasse unicamente de um assunto (no caso, greve) soa-nos como o mais correto[25].
Em frente com esse raciocínio, dir-se-ia que, então, a lei que trata exclusivamente de greve já existia, em 1998, por ocasião da publicação da EC 19: Lei de Greve (Lei 7.783/89).
Nesse sentido, uma vez que o artigo 37, VII, da Constituição passou a exigir lei específica para que o direito de greve pudesse ser exercido pelos servidores, e uma vez que já havia, no ordenamento pátrio, lei específica sobre greve, parece-nos inafastável a conclusão de que tal ato normativo fora recepcionado pela nova norma constitucional, completando sua eficácia, mesmo que se adote a tese – consagrada pelo STF – da eficácia limitada.
Então, com o advento da EC 19, o quadro normativo seria o seguinte, a nosso ver: o postulado da máxima efetividade da constituição seria melhor atendido caso se adotasse a tese da eficácia contida do quanto disposto no artigo 37, VII, CR/88; tal tese, porém, fora rechaçada pelo Pretório Excelso; dessa forma, prevalecendo a tese de que o dispositivo constitucional plasma norma de eficácia limitada, precisa de interposição legislativa para alcançar plena efetividade; nessa senda, a máxima efetividade, a nosso ver, seria alcançada uma vez considerando-se que a lei de greve já existente teria seu espectro de aplicação ampliado, passando a regular, também, o exercício do direito de greve por servidores públicos.
Por esse raciocínio, o artigo 16 da Lei de Greve[26] teria sido revogado após a EC 19.
Poder-se-ia objetar argumentando-se que a lei 7.783/89 não se trata, obviamente, de lei ordinária reguladora, especificamente, da greve dos servidores públicos civis, mas de empregados regidos por contrato de trabalho. Tal objeção, porém, não persevera. Os limites do direito de greve, e até mesmo sua proibição, em certos casos, para algumas categorias específicas de empregados ou de funcionários públicos, justifica-se não em razão do status do trabalhador, mas sim em decorrência da natureza dos serviços prestados (que são públicas, essenciais, inadiáveis, imantadas pelo princípio da predominância do interesse público).
Não se justifica, assim, o tratamento diferenciado ou separado, porquanto serviços essenciais podem ser prestados tanto por trabalhadores do setor público, quanto do privado. Nesse sentido, devemos lembrar o velho brocardo segundo o qual onde há a mesma razão, igual deve ser a regulamentação e solução.
Apesar de defendermos essa tese[27], reconhecemos que ela não prevaleceu no Supremo, cujos julgadores, mesmo após a EC 19, mantiveram a posição no sentido de que o exercício do direito dependeria de interposição legislativa:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PORTARIA Nº 1.788, DE 25.08.98, DA SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL. Texto destinado à regulamentação do estágio probatório, que se acha disciplinado pelo art. 20 da Lei nº 8.112/90, com a alteração do art. 6º da EC nº 19/98 e, por isso, insuscetível de ser impugnado pela via eleita. Inviabilidade, declarada pelo STF (MI nº 20, Min. Celso de Mello), do exercício do direito de greve, por parte dos funcionários públicos, enquanto não regulamentada, por lei, a norma do inc. VII do art. 37 da Constituição. Não-conhecimento da ação" (STF ADI-1880 / DF, Ac. TP, Rel. Min. ILMAR GALVAO, DJ 27-11-98, p. 7, julg. 09-09-1998).
À míngua da lei específica reguladora, o Presidente da República editou o Decreto n. 1.480, de 03.05.1995 (DOU 04.05.1995), que, em linhas gerais, disciplina que as faltas decorrentes de participação de servidor público federal nos movimentos de paralisação de serviços públicos não poderão, em nenhuma hipótese, ser objeto de abono, compensação ou cômputo, para fins de contagem de tempo de serviço ou de qualquer vantagem que o tenha por base.
Ademais, o referido Decreto determina até mesmo a exoneração ou dispensa dos servidores ocupantes de cargos em comissão ou de funções gratificadas constantes da relação encaminhada pela chefia imediata do servidor ao órgão de pessoal respectivo.
A iniciativa (regulamentação via Decreto) parece-nos de todo inconstitucional, por isso que intenta restringir o exercício de um direito fundamental, ferindo de morte também o próprio princípio da legalidade (artigo 5º, II, CR/88). Fosse pouco, malferido está o princípio da organização legal do serviço público (artigo 37, caput, CR/88). Outrossim, não é dado à espécie normativa ancilar (decreto) regulamentar norma constitucional.
Pelo princípio de que a Administração só pode fazer o que a lei, quando de movimentos de paralisação das atividades funcionais de uma repartição pública (greve), estando o Poder Público em mora com a edição de lei de greve específica para o setor público, como já declarado pelo Supremo Tribunal Federal em Ação de Injunção, não se pode falar em corte ou suspensão de pagamento de remuneração dos servidores que, efetivamente, participem dos movimentos, pela cristalina falta de amparo no ordenamento jurídico legal.
A lei 8112/90, que se transformou no regime jurídico do servidor público federal, quando trata da questão do corte de ponto do servidor, com a conseqüente suspensão de pagamento pecuniário, o faz no art. 44, onde diz que o servidor perderá a remuneração dos dias em que faltar ao serviço ou nos casos de atrasos na chegada, ausências ou saídas antecipadas iguais ou superiores a sessenta minutos:
Art. 44. O servidor perderá:
I - a remuneração do dia em que faltar ao serviço, sem motivo justificado; (Redação dada pela L-009.527-1997)
II -a parcela de remuneração diária, proporcional aos atrasos, ausências justificadas, ressalvadas as concessões de que trata o art. 97, e saídas antecipadas, salvo na hipótese de compensação de horário, até o mês subseqüente ao da ocorrência, a ser estabelecida pela chefia imediata. (Redação dada pela L-009.527-1997)
Parágrafo único. As faltas justificadas decorrentes de caso fortuito ou de força maior poderão ser compensadas a critério da chefia imediata, sendo assim consideradas como efetivo exercício. (Incluído pela L-009.527-1997)
Art. 45. Salvo por imposição legal, ou mandado judicial, nenhum desconto incidirá sobre a remuneração ou provento.
Parágrafo único. Mediante autorização do servidor, poderá haver consignação em folha de pagamento a favor de terceiros, a critério da administração e com reposição de custos, na forma definida em regulamento.
Seguindo uma interpretação literal dos termos faltar ao serviço, atrasos ou saídas injustificadas, quis o legislador prescrever que se trata da ausência física no local de trabalho, entendendo-se este como o ambiente da repartição onde o servidor presta sua atuação laboral. É o instituto da assiduidade como dever funcional.
A falta de assiduidade (assiduidade como o comparecimento à repartição ou local de trabalho para o desempenho de suas funções relativas à sua competência) a lei permite punição com a suspensão dos estipêndios relativos aos dias faltosos.
Não se pode falar em greve ou paralisação dos serviços públicos pela ausência do servidor do seu local de trabalho, pois aí não se teria a greve, mas a falta ao trabalho, este punido como já mencionado.
Na atividade de paralisação, o servidor comparece (é assíduo) e permanece durante todo o tempo destinado ao labor no recinto da repartição deixando, no entanto, de praticar qualquer ato de execução de suas tarefas rotineiras.
A inexecução das tarefas rotineiras, nos termos da Lei 8112/90, art. 117, inciso XV, pode ser conceituada como "proceder de forma desidiosa", sendo esta uma proibição legal, mas, para cuja punição se faz necessário à apuração pelo processo disciplinar, nos termos do art. 143 do mesmo diploma legal.
A Lei 8112/90, em seu art. 116, que trata dos deveres, e o art. 117, que trata das proibições não impõe nenhuma sanção, de forma direta e sem o devido processo legal, que puna o servidor que participar de movimento de paralisação de atividades funcionais, em busca de direitos legítimos e melhores condições de trabalho.
O inciso I do Art. 45, é cristalino na sua concepção de que a remuneração será suspensa quando se faltar ao serviço sem motivo justificado. Havendo justificativa para a falta, está haverá de ser relevada ou compensada.
Caso o servidor em greve, por ordem de sua entidade sindical ou comando de greve, tenha que se ausentar do seu local de trabalho, estará justificada sua ausência, não podendo haver nenhuma punição pecuniária, podendo ser aplicado o dispositivo do parágrafo único do mesmo art. 45.
Além do que, como já dito, a relação de trabalho do servidor com o Estado é institucional, não operando a quebra de contrato de trabalho ou sua rescisão (demissão ou exoneração no serviço público) sem o devido processo administrativo.
O ato de afastamento é formal necessitando do instituto legal para sua efetivação, seja decreto ou portaria de demissão ou exoneração. Também, o prejuízo causado com a paralisação das atividades não afeta o empregador, considerando-o como sendo a Administração Pública, mas a comunidade que dele depende segundo as normais legais.
O fato é que, até o presente momento, o Poder Legislativo não apresentou ao mundo jurídico a lei específica mencionada no artigo 37, VII, CR/88), donde advêm os problemas (corte de ponto ou pagamento dos dias de greve, punições disciplinares, manutenção dos serviços e das atividades essenciais etc.)[28] que só existem em razão da omissão do Congresso Nacional.