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O regime jurídico das sociedades estatais no Brasil.

Análise legal e doutrinária

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14/11/2012 às 12:31
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3. INSTRUMENTOS DE ATUAÇÃO DIRETA DO ESTADO BRASILEIRO NA ECONOMIA

Como se verifica por intermédio da análise dos dispositivos legais reguladores da matéria, a Constituição disponibilizaa Empresa Pública e a Sociedade de Economia Mista, como instrumentos de atuação na esfera econômica para todas as finalidades, remetendo ao legislador infraconstitucional o encargo de criar uma legislação específica para, além de estabelecer um regime jurídico específico, definir essas empresas estatais.

Entretanto, o legislador ordinário, até a presente data, não editou as leis previstasnos artigos acima colacionados, permanecendo, portanto, em vigor uma definição anacrônica de empresas estatais, pois elaborada ainda sob o regime militar, refletindo o autoritarismo vigente à época.

Assim, o Decreto Lei 200/67, define as Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista da seguinte forma:

Art. 5º Para fins desta lei, considera-se:

I – (omissis)

II – Empresa Pública – a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei e para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer faz forma admitidas em direito.

III – Sociedade de Economia Mista – a entidade de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para exploração de atividade econômica, sob forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da Administração Indireta.

Ora, como se sabe, após os anos de autoritarismo decorrentes dos Governos Militares, durante os quais foi editado o decreto lei supra-transcrito, a Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, modificou sobremaneira a organização administrativa do Estado, visando justamente modernizá-la e adaptá-la ao novo momento do Estado Brasileiro, qual seja um Estado Democrático de Direito,

Assim, dessa distinção ideológica entre a Carta Magna e a legislação anterior,surgem inúmeras divergências entre a definição prevista no decreto-lei 200/67 e os artigos constitucionais, a exemplo do art. 173, que estabelece o imperativo da segurança nacional ou o relevante interesse coletivo como requisitos para o exercício de atividade econômica pelo Estado, enquanto o referido decretoexige apenas meras contingências e conveniência da administração pública para a criação de empresas estatais.

Por outro lado, além dos previstos no Título VII, outros dispositivos constitucionais demonstram a inadequação da definição do decreto, dentre os quais o art. 37, que estabelece a necessidade de mera autorização legal para a criação de empresas estatais, enquanto o decreto estabelece a necessidade de lei específica para a criação das mesmas.

Deste modo, diante dessas flagrantes divergências entre o atual modelo de intervenção estatal na economia e as definições de empresas estatais encontradas em nossa legislação, os doutrinadoresmais abalizados passaram a praticamente desprezara definição estabelecida pelo Decreto-Lei 200/67 e a criarconceitos próprios para a empresa pública e sociedade de economia mista.

Nesse sentido, Fernanda Marinela (Marinela, 2006), analisando o instituto das empresas estatais, aponta os seguintes conceitos:

“A empresa pública é a pessoa jurídica criada por força de autorização legal, como instrumento de ação do Estado, dotada de personalidade de direito privado, mas submetida a certas regras especiais decorrentes da finalidade pública que persegue, constituída sob quaisquer das formas admitidas em direito e cujo capital seja formado unicamente por recursos públicos, de pessoas da Administração Direta ou Indireta. Pode prestar serviços públicos ou explorar atividade econômica.”

“A sociedade de economia mista, por sua vez, é pessoa jurídica cuja criação é autorizada por lei. É um instrumento de ação do Estado, dotada de personalidade de direito privado, mas submetida a certas regras especiais decorrentes de sua finalidade pública, constituída sob a forma de sociedade anônima, cujas ações, com direito a voto, pertençem (sic), em sua maioria, ao ente político ou à entidade de sua Administração Indireta, admitindo-se que seu remanescente acionário seja de propriedade particular. As suas finalidades também são prestar serviços públicos ou explorar atividade econômica.

Deste modo, analisando o conceito adotado para empresas estatais no Brasil, deve-se destacar que não existem grandes distinções materiais e teleológicas entre as empresas públicas e as sociedades de economia mista, uma vez que ambas as modalidades constituem pessoas jurídicas de direito privado, dependem de autorização para serem constituídas e podem exercer atividades econômicas ou prestarem serviços públicos. Enfim, o Estado poderá utilizar indistintamente qualquer delas para exercer a atividade ou prestar serviço desejado.

Entretanto, é no aspecto formal que os modelos de estatais brasileiros se diferenciam. Assim, as principais diferenças existentes entre as empresas públicas e as sociedades de economia mista estãona composição do capital, nas possíveis formas jurídicas adotadas e no foro competente para apreciação e julgamento dos feitos de seus interesses, neste último caso, apenas quando elas pertencerem à União.

Neste sentido, enquanto a empresa pública sempre terá o capital 100% público, independente de ser da União, de um dos Estados ou do Distrito Federal ou de um Município, ou até mesmo de entes da Administração Indireta, admitindo-se, inclusive, que seja de uma sociedade de economia mista, a sociedade de economia mista, necessariamente terá a participação de capital não estatal, ou seja, privado, porém o controle acionário deve sempre estar em mãos de um ente da administração pública, direta ou indireta.

Por outro lado, enquanto a empresa pública pode adotar qualquer forma jurídica prevista pelo Direito Empresarial, ou seja, sociedade anônima, sociedade limitada, sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples ou sociedade por ações, a sociedade de economia mista adotará sempre a forma de sociedade anônima, conforme disposto no art. 235 da Lei 6404/76, que regulamenta a sociedade por ações.

Por fim, única e exclusivamente, quando a empresa pública compuser a Administração Pública Federal, nos termos do inciso I do art. 109 da Constituição Federal, a Justiça Federal será competente para processar e julgar os feitos de seu interesse, prerrogativa essa que não é concedida para as sociedades de economia mista, mesmo quando a pertencente ao mesmo âmbito de administração.

Deste modo, conforme já mencionado, não existem diferenças materiais e teleológicas entre as empresas públicas e as sociedades de economia mista, podendo, portanto, o Estado, discricionariamente, adotar a modalidade de estatal que ele entender mais adequada para a atividade que será exercida. E, exatamente por inexistirem diferenças de fundo, que ambas as estatais estão sujeitas ao mesmo regime jurídico.


4. REGIME JURÍDICO DAS ESTATAIS NO BRASIL

Em que pese a legislação vigente estabelecer que as empresas estatais são dotadas de personalidade jurídica de direito privado, é pacífico dentre os doutrinadores mais conceituados que, em razão da finalidade das estatais, o regime jurídico a ser aplicado irá se aproximar mais do Direito Privado ou do Direito Público a depender da forma de atuação do Estado no âmbito econômico, ou seja, se ele executará uma atividade econômica ou prestará um serviço público.

Esse entendimento, inclusive, leva a esses doutrinadores defenderem que, em verdade, o regime jurídico nas estatais seria hibrido e não de direito privado como estabelece a legislação em vigor.

Nesse sentido, a lição de Bruno Mattos e Silva (Silva, 2007):

“É Pacífico que a empresa pública e a sociedade de economia mista, embora criadas por iniciativa do Poder Público, quer exerçam atividade econômica em sentido estrito, quer prestem serviço público, são pessoas jurídicas de direito privado. O regime jurídico das empresas estatais é de direito privado, parcialmente derrogado pelo direito público, como inclusive se pode notar pela leitura do dispositivo constitucional supratranscrito. Na verdade, exatamente em razão dessa parcial derrogação, acho que seria mais adequado dizer que elas têm natureza híbrida, como afirmam certos autores.”

Ainda corroborando com o entendimento, José dos Santos Carvalho Filho (Carvalho Filho, 2005), assim explicita:

“... as sociedades de economia mista e as empresa públicas exibem dois aspectos inerentes à sua condição jurídica: de um lado, são pessoas jurídicas de direito privado e, de outro, são pessoas sob o controle do Estado. Esses dois aspectos demonstram, nitidamente, que nem estão sujeitas inteiramente ao regime de direito privado, nem inteiramente ao de direito público. Na verdade, pode dizer-se, como fazem alguns estudiosos, que seu regime tem certa natureza híbrida.

Assim, acompreensão da necessidade de se conceber um regime jurídico próprio para as empresas estatais, mesclando normas de direito privado com normas de direito público na regulação da atuação desses entes, é diretamente proporcional ao entendimento das funções que elas exercerão no seio da administração pública, analisadas sob o prisma dos interesses que possam ser prejudicados pelos membros da administração pública. Explico-me:

A Constituição Federal estabelece que o Estado pode se utilizar das empresas estatais para duas finalidades distintas: a primeira, para exercer diretamente atividades econômicas visando regular o mercado (art. 173) ou para preservar a soberania nacional (art. 177); a segunda, para prestar serviços públicos de natureza econômica (art. 175), garantindo o atendimento às necessidades da individuais ou transindividuais dos administrados.

Ora, quando se fala em exercício de atividade econômica de produção ou circulação de bens ou prestação de serviços não essenciais pelo Estado, mesmo que restringindo àquelas necessárias à regulação do mercado ou em garantia da soberania nacional, está se discutindo a “invasão” pelo Estado de uma esfera reservada pela própria Constituição à iniciativa privada, por isso que ela trata especifica e cuidadosamente nos artigos 173 e 177.

Por outro lado, quando se fala em prestação de serviços públicos de natureza econômica, está se discutindo o exercício de uma atividade própria do Estado, tratada separadamente justamente em razão de sua natureza econômica, mas necessária ao atendimento das necessidades dos administrados, conforme se depreende do art. 175 da Constituição Federal.

Deste modo, tratando-se da primeira situação, ou seja, do exercício de atividades econômicas, apesar dos fundamentos previstos no art. 173, deve-se garantir que se o Estado o faça apenas quando efetivamente necessário, e gerando o mínimo de desequilíbrio no mercado, evitando, assim, prejuízos à iniciativa privada. Por esse motivo, o regime jurídico adotado deve ser o mais próximo possível do regime jurídico de direito privado, afastando-se, portanto, na medida do possível,das prerrogativase sujeições previstas no regime de direito público.

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Por outro lado, quando se trata de prestação de serviços públicos de natureza econômica, o regime jurídico a ser adotado deve se aproximar, ao máximo, do regime jurídico de direito público, adotando-se um maior feixe de prerrogativas e sujeições, para que se garanta, mais uma vez, o desejo do Constituinte,que, desta feita, éno sentido de se prestar um serviço públicoadequado, garantindo-se aos usuários todos os seus direitos, mediante o pagamento de uma justificável, nos termos do artigo 175 da Constituição Federal.

Nesse sentido, mais uma vez, Fernanda Marinella (Marinella, 2006), esclarece com maestria:

“Nessas empresas estatais, apesar de terem personalidade jurídica de direito privado, o seu regime não é verdadeiramente privado. A doutrina prefere denominá-lo como regime hibrido ou misto, isso porque ele mistura regras de direito público com as de direito privado, ora se aproximando mais de um, ora de outro.

Para as exploradoras de serviços públicos, em que pese a personalidade jurídica de direito privado, o seu regime em muito se aproxima de direito público, até porque são inafastáveis do conceito de serviços público. No silêncio da lei, aplicam-se as regras do regime jurídico- administrativo.

De outro lado, encontram-se as exploradoras da atividade econômica cujo regime, em razão dessa finalidade, é o que mais se aproxima do direito privado. Para essas pessoas jurídicas, a regra é a aplicação do direito privado; o direito público é a exceção e deve ser aplicado restritivamente, quando tiver previsão expressa.

Nesse mesmo sentido, expõe Celso Antônio Bandeira de Mello (Mello, 2005):

“Há, portanto, dois tipos fundamentais de empresas públicas e sociedades de economia mista: exploradoras de atividade econômica e prestadores de serviços públicos ou coordenadoras de obras públicas e demais atividades públicas. Seus regimes jurídicos não são, nem poderiam ser, idênticos, como procuramos demonstrar em outra oportunidade.

No primeiro caso, é compreensível que o regime jurídico de tais pessoas seja o mais próximo possível daquele aplicável à generalidade das pessoas de Direito Privado. Seja pela natureza do objeto de sua ação, seja para prevenir que desfrutem de situação vantajosa em relação às empresas privadas – às quais cabe a senhoria no campo econômico - , compreende-se que estejam, em suas atuações, submetidas a uma disciplina bastante avizinhada da que regula as entidades particulares de fins empresariais. Daí haver o Texto Constitucional estabelecido que tais hipóteses regular-se-ão pelo regime próprio das empresas privadas (art. 173,§1º, II). Advirta-se, apenas, que há um grande exagero nesta dicção da Lei Magna, pois ela mesma se encarrega de desmentir-se em inúmeros outros artigos, como além será demonstrado.

No segundo caso, quando concebidas para prestar serviços públicos ou desenvolver quaisquer atividades de índole pública propriamente (como promover a realização de obras públicas), é natural que sofram o influxo mais acentuado de princípios e regras de Direito Público, ajustados, portanto, ao resguardo de interesses desta índole.

Nesse diapasão, verifica-se que a intenção da Constituição Federal, ao aplicaràs empresas estatais o regime jurídico de direito privado, é proteger a iniciativa privada da concorrência desleal do Poder Público no exercício de atividades econômicas em concorrência com a iniciativa privada, o que, efetivamente, é perfeitamente justificável.

Portanto, as normas aplicáveis a essas estatais devem se aproximar ao máximo das normas que se aplicam às empresas privadas, retirando-lhes completamente as prerrogativas típicas das pessoas jurídicas de direito público, porém mantendo as sujeições típicas do regime jurídico de direito público, a fim de protegê-las da má-administração exercida de seus administradores, uma vez que elas próprias integram a esfera do patrimônio público.    

Assim, mesmo sob o regime jurídico de direito privado, a Constituição Federal submeteu as empresas públicas exercentes de atividades econômicas de produção e circulação de bens aos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência (art. 37) e ao controle do Poder Legislativo e Tribunal de Contas (art. 49, X, e art. 71, II); exigiu concurso público para admissão de pessoal (art. 37, II), proibiu que seus empregados cumulassem cargos, empregos e funções públicas, com exceção das permitidas em lei (art. 37, XVII) e submeteu a remuneração desse pessoal ao teto constitucional, quando elas receberem recursos públicos (art. 37, XI e §9º); submeteu suas operações de crédito a limites fixados pelo Senado (art. 52, VII); além disso olegislador ordinário submeteuo exercício de atividades-meio ao regime licitatório (Lei 8666/93). Todas essas sujeições típicas do regime de direito público.

Por outro lado, quando se trata de prestação de serviços públicos, ainda que econômicos, ou seja, mediante contraprestação, o bem maior a ser protegido é o atendimento às necessidades essenciais dos administrados, por intermédio de um serviço de qualidade, que respeite os direitos dos usuários e que pratiquem uma política tarifária aceitável.

Portanto, além de protegê-las dos seus próprios administradores, as normas aplicáveis às estatais que se dedicam a essa atividade devem garantir-lhes as prerrogativas típicas das pessoas jurídicas de direito público, derrogando, somente, algumas normas que dificultem a prestação do serviço de natureza econômica, natureza essa diferente dos serviços tipicamente estatais.

Deste modo, se por um lado se aplicam todas as sujeições mencionadas para as estataisexercentes de atividade econômica, acrescidas da obrigação de responderem objetivamente pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, mesmo que assegurado o seu direito de regresso contra o responsável nos casos de culpa ou dolo (art. 37§6º), as estatais que prestam serviços públicos terão os bens utilizados diretamente nessa prestação considerados como bens públicos, portanto, inalienáveis, impenhoráveis, imprescritíveis e não oneráveis; terão os atos, que diretamente se liguem ao próprio desempenho do serviço, considerados como atos administrativos e seus contratos firmados para atendimentos das finalidades considerados contratos administrativos, todas essas prerrogativas típicas do regime de direito público.

Entretanto, como mencionado, o regime de direito público aplicado às prestadoras de serviços públicos econômicos deve ser parcialmente derrogado por normas de direito privados, a fim de que se possibilidade uma atuação mais condizente com a necessidade do efetivo exercício da atividade. Deste modo, sua criação apenas se afetiva com registro no órgão competente (Junta Comercial), seus empregados estarão sujeitos ao regime previsto na Consolidação das Leis do Trabalho,além de poderem exercer a sua atividade-fim sem necessidade de se submeter ao regime de licitação previsto na lei 8666/93.

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Sobre o autor
Vitor Lins

Advogado, Doutorando em Ciencias Jurídicas e Socias, Prof. de Direito Empresarial da Universade Estadual de Feira de Santana, Membro da Comissão de Ensino Jurídico da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Estado da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LINS, Vitor. O regime jurídico das sociedades estatais no Brasil.: Análise legal e doutrinária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3423, 14 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23012. Acesso em: 8 mai. 2024.

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