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A extensão dos direitos da pessoa com deficiência aos transplantados

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Em que pese a omissão do Poder Público Brasileiro em relação aos brasileiros submetidos a procedimento médico de transplante, é mister ressaltar a louvável preocupação do Estado em proteger constitucionalmente a pessoa com deficiência ante o histórico de discriminação que essa parcela da sociedade tem sido submetida.

Resumo: O objetivo central do presente estudo é demonstrar a possibilidade e a real necessidade da extensão dos direitos da pessoa com deficiência aos transplantados, à luz da Constituição Federal de 1988, sob o prisma da dignidade da pessoa humana e do princípio da igualdade. Historicamente a pessoa com deficiência sempre foi discriminada pela sociedade, na antiguidade os gregos eliminavam pessoas "defeituosas", e os romanos abandonavam a própria sorte suas crianças “deformadas”. Na Idade Média apesar desses indivíduos serem considerados “filhos de Deus”, muitos foram eliminados para absolverem-se de seus pecados. Essa realidade só começou a mudar após a Revolução Francesa, no século XVIII. Nesse momento a pessoa com deficiência passa ser vistas como um ser humano, e não mais como "dispensáveis do convívio social". Essa mudança de paradigma no sentido de inclusão social da pessoa com deficiência evoluiu, ainda mais, no século XX, após duas Grandes Guerras Mundiais e Guerra do Vietnã que tiveram como resultado milhares de mutilados. Surge a partir de então a necessidade de reabilitação e reinclusão dessas pessoas na sociedade. Essa visão pautada na dignidade da pessoa com deficiência chega ao ápice com a previsão de direitos e garantias especiais na Constituição Federal de 1988, em que pese, ainda, a necessidade de efetivação desses direitos. É nesse contexto de inclusão dessa minoria, tão discriminada ao longo da história, que se busca a extensão desses direitos conquistados arduamente aos transplantados do Brasil, minoria que surge anonimamente com a evolução da biociência.

Palavras-chave: constituição; dignidade humana; igualdade; pessoa com deficiência; transplantado; extensão de direitos;


1. INTRODUÇÃO

Ao mesmo tempo em que o Brasil comemora, em 2012, o segundo lugar no mundo em número de transplantes realizados, surge também a necessidade de reflexão acerca da proteção desses brasileiros pelo Estado após o procedimento médico de transplante.

Nesse sentido, torna-se fundamental nossa pretensão de demonstrar que é plenamente possível e viável a extensão dos direitos da pessoa com deficiência aos transplantados, haja vista, por exemplo, as semelhanças entre a pessoa com deficiência em virtude de nefropatia grave, prevista na Lei 8.213/91, e o transplantado de rim.

Em que pese a existência de diversas formas de transplante como órgãos sólidos, tecidos (córnea, ossos, e pele) e medula óssea, limitaremos o presente estudo ao transplante de rim, pelo motivo supracitado, muito embora entendermos ser extensível a todas as formas de transplante. Tendo em vista, ainda, a inexistência de legislação federal de proteção desse segmento social, e tratar de um tema singular e de doutrina escassa preferiu-se limitar aos transplantes renais.

Pretendemos, ainda, conscientizar as autoridades legislativas, executivas e judiciárias do país para necessidade de edição e aplicação de legislação protetiva, a luz da Constituição Federal, para essa parcela da sociedade brasileira que está em pleno crescimento pelos avanços tecnológicos na medicina como será demonstrado a seguir.


2. TRANSPLANTE DE ÓRGÃO NO BRASIL

Em 2011, o Brasil atingiu a marca de 23.397 transplantes realizados, crescimento de 124% em dez anos, destes 6.839 foram transplantes de órgãos, um avanço de 7% comparado com 6.402 transplantes de órgãos realizados no ano anterior. Dentre os órgãos, o transplante de rim atingiu a marca de 4.957 transplantes em 2011, um crescimento de 85% em dez anos.1

O Ministro da Saúde Alexandre Padilha apresentou balanço das ações de transplantes no País, em 2011, e destacou que “atingimos um patamar importante e hoje o Brasil é uma referência. O país possui o maior sistema público de transplantes do mundo. Hoje, 95% das cirurgias são realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), de forma totalmente gratuita à população". E acrescentou “queremos atingir, até 2015, a meta de 15 doadores por milhão de população. Hoje, a marca é de 10 doadores.2

Nesse sentido Santa Catarina lidera o ranking nacional dos Estados no número de doadores de órgãos por milhão de população, ou seja, é o estado que possui o maior número de doadores efetivos do país, no primeiro trimestre de 2012 com 26,9 doadores por milhão de habitantes, número maior que o resultado alcançado em 2011, que foi de 25,2 doadores. Por doador efetivo entenda-se o corpo pronto para a retirada dos órgãos, quando já foram vencidas todas as etapas do processo de captação (do diagnóstico de morte encefálica à manutenção do corpo na UTI, passando pela autorização familiar).3

Com relação ao número de transplantes de rim, objeto desse estudo, no 1º semestre de 2012, foram realizados 2.689 transplantes no Brasil, sendo destes 122 em Santa Catariana, dentre os quais, 08 no Hospital Regional do Oeste do Município de Chapecó.4

Em face do desempenho do Estado de Santa Catariana na doação e transplantes, se o mesmo fosse considerado um país estaria em 18º no ranking global dos doadores de órgãos, a frente de muitos países de primeiro mundo.5

Apesar de todos aos esforços e os índices de transplantes realizados no Brasil, hoje cerca de 27.827 mil pessoas estão na espera de um órgão, segundo dados do Ministério da Saúde, destes 19.486 à espera de um rim, brasileiros que tem no transplantes a última esperança de vida digna ou até mesmo de sobrevivência.

2.1 Transplante - Conceito e História

A "utilização da palavra 'transplante' pela ciência médica é secular, derivada do latim transplantare, que significa transferir órgão ou porção deste de uma para outra parte do mesmo indivíduo, ou ainda, de indivíduo vivo ou morto para outro indivíduo". (FERREIRA, 1993, p. 1703 apud PEREIRA, 2006).

A Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos define o transplante “como um procedimento cirúrgico que consiste na reposição de um órgão ou tecido de uma pessoa doente – receptor – por outro órgão normal de um doador, morto ou vivo. É um tratamento que pode prolongar a vida com melhor qualidade, ou seja, é uma forma de substituir um problema de saúde incontrolável por outro sobre o qual se tem controle”. (BANDEIRA, 2001, p. 28).

O primeiro, dos procedimentos de transplante de órgãos largamente utilizados no tratamento de falência terminal de órgãos, foi o transplante renal. As técnicas cirúrgicas básicas, usadas no transplante renal foram desenvolvidas no princípio do século XX por Alexis Carrel ganhador do prêmio Nobel de 1912. Em 1951, ocorreu o primeiro transplante de um órgão vital não regenerativo. Foi um transplante de rim efetuado pelo médico David M. Hume, no Hospital Brigham and Women, em Boston, nos Estados Unidos. (DA SILVA NETO, 2004).

No Brasil o primeiro transplante de órgão ocorreu em 1964, no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, quando Sérgio Vieira Miranda, de 18 anos, recebeu um rim de uma criança de nove meses, portadora de hidrocefalia. Segundo o Jornal do Brasil de 18 de abril de 1964, participaram do transplante os cirurgiões Alberto Gentile, Pedro Abdalla, Carlos Rudge, Oscar Regua, Antônio Carlos Cavalcante e Ivonildo Torquato.6

2.2 Dignidade da Pessoa Humana e o Transplante

A República Federativa do Brasil tem como pedra fundamental do sistema constitucional a dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, inciso III da Carta Magna:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana;

Nesse sentido Daury César Fabriz, ensina que "o mencionado princípio torna-se a coluna vertebral do Biodireito, sendo princípio que se estabelece como direito humano e fundamental". (FABRIZ, 2003, p. 355 apud SILVA E SPENGLER NETO, 2005).

Mas então o que vem a ser dignidade da pessoa humana? De acordo com Rizzatto Nunes:

“Dignidade é um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da história (...) é por isso que se torna necessário identificar a dignidade da pessoa humana como uma conquista da razão ético-juridica, fruto da reação à história de atrocidades que, infelizmente, marca a experiência humana”. (NUNES, 2002, p. 38 apud CAMPOS, 2011)

Na lição de Michael Sachs a dignidade não cuida de aspectos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas sim numa qualidade tida como inerente, atribuída a todo e qualquer ser humano, ou seja, valor próprio que identifica o ser humano como tal. (SARLET, 2012, p. 50).

Nesse viés, o filósofo Kant sustentava que:

“o homem existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim.” (KANT, p. 134 apud SARLET, 2012, p. 40).

Assim o valor da dignidade da pessoa humana compromete-se em propiciar aos indivíduos condições para se ter uma vida decente e para a realização de sua personalidade, conforme as necessidades mais íntimas e mais particulares de cada indivíduo.

Nesse sentido o Magistrado Germânico Dieter Grimm sustenta a que a dignidade na condição de “valor intrínseco do ser humano, gera para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existências e felicidade e, mesmo onde esta autonomia lhe faltar ou não puder ser atualizada, ainda assim ser considerado e respeitado pela sua condição humana”. (KOPPERNOCK, 1997 apud SARLET, 2012, p. 63).

Leciona Rizzatto Nunes acerca da dignidade que o ser humano vive no meio social e:

[...] nenhum indivíduo é isolado. Ele nasce, cresce e vive no meio social. [...] Ele nasce com integridade física e psíquica, mas chega um momento de seu desenvolvimento que seu pensamento tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento – isto é, sua liberdade –, sua imagem, sua intimidade, sua consciência – religiosa, científica, espiritual – etc., tudo compõe sua dignidade. (NUNES, 2002).

Para Alexandre de Moraes "o princípio da dignidade apresenta-se em dupla concepção, a primeira prevê um direito individual protetivo em relação ao próprio Estado e aos demais indivíduos, a segunda estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes". (MORAES, 2003, p. 60).

A "experiência nazista, fruto de inúmeras atrocidades que afrontaram a dignidade da pessoa humana, foi o marco histórico que gerou a consciência de que se deveria preservar a dignidade da pessoa humana a qualquer custo, devendo-se, assim, lutar contra tudo que a viole". (SILVA E SPENGLER NETO, 2005).

Em 1948, proclama-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos, após as crueldades da Segunda Guerra Mundial, elaborada pela Organização das Nações Unidas, cujo preâmbulo afirmou "que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo." (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é o documento base da luta universal contra a opressão e a discriminação, defende a igualdade e a dignidade das pessoas e reconhece que os direitos humanos e as liberdades fundamentais devem ser aplicados a todos os indivíduos do planeta. Para Flávia Piovesan a Declaração "vem a atestar o reconhecimento universal de direitos humanos fundamentais, consagrando um código comum a ser seguido por todos os Estados". (PIOVESAN, 1996, p. 176 apud MOARES, 2003, p. 37).

A referida declaração "constitui a mais importante conquista dos direitos humanos fundamentais em nível internacional", proclamando "a necessidade essencial dos direitos da pessoa humana serem protegidos pelo império da lei, para que a pessoa não seja compelida, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão". (MORAES, 2003, p. 34 e 36).

Na lição de Francisco Rubio Llorente o Tribunal Constitucional da Espanha, inspirado na Declaração Universal, manifestou-se no sentido de que “a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais”. (LLORENTE, p. 72 apud SARLET, 2012, p. 55).

Como “tarefa imposta aos Estados, a dignidade da pessoa humana reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preserva-lá, quanto objetivando a promovê-la, especialmente criando condições que possibilite o pleno exercício e fruição dessa dignidade.” (PODLECH, 1989, p. 280 apud SARLET, 2012, p. 56).

Nesse viés histórico, a Constituição Brasileira de 1988 recebeu forte influência das Cartas Constitucionais apoiadas na proteção dos direito humanos. Assim, é marcante a proteção dos princípios fundamentais, na Carta Magna de 1988, a qual traz dentre seus fundamentos o princípio da dignidade da pessoa humana como substrato principal para todos os demais direitos e garantias individuais e coletivos.

Para Carlos Roberto Siqueira Castro “o Estado Constitucional Democrático da atualidade é um Estado de abertura constitucional radicado no princípio da dignidade do ser humano”. (CASTRO, 2003, p. 19 apud SARLET, 2012, p. 79).

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Portanto, do princípio da dignidade todo ser humano, pelo simples fato de existir, merece toda proteção, sem qualquer forma de discriminação em razão de sua deficiência, condição física, saúde, raça, credo, ou crença religiosa. Por conseguinte toda interpretação da norma, na aplicação do ordenamento, deve fundar-se nesse princípio constitucional central da República Brasileira.

Como enfatiza Maria Cláudia Crespo Brauner: “a idéia principal é de sustentar-se que a dignidade do homem e todos os direitos destinados a preservá-la, pertencem ao homem pelo único fato de seu nascimento”. (BRAUNER, 2000 apud SILVA E SPENGLER NETO, 2005).

2.3 Direitos Humanos Fundamentais e o Transplante

No que tange ao transplante de órgãos e tecidos o princípio da dignidade da pessoa humana é o fundamento jurídico principal, do qual emanam todos demais direitos fundamentais atinentes ao doador como direito de disposição do próprio corpo, direitos de personalidade e liberdade consciência; e os direito fundamentais atinentes ao receptor como o direito a vida, direito a integridade física e direito ao próprio corpo.

Nesse sentido, Farias (1996, apud SARLET, 2012 p. 93) afirma que “todos os direitos e garantias fundamentais encontram seu fundamento direto, imediato e igual na dignidade da pessoa humana, do qual seriam concretizações”. Ainda para Vieira de Andrade o “princípio da dignidade radica na base de todos os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, onde o grau de vinculação dos diversos direitos àquele princípio poderá ser diferenciado, de tal sorte que existem direitos que constituem explicações em primeiro grau da ideia de dignidade e outros deste são decorrentes”. (ANDRADE, 1987, p. 101 apud SARLET, 2012, p. 94).

Nesse contexto, Fabriz (2003) afirma que os direitos fundamentais são as matrizes de todos os demais direitos, haja vista que emanam fundamentalidade sobre os demais, devido à sua natureza constitucional.

Para Moraes (2003, p. 39) pode ser definido direitos humanos fundamentais como "o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana".

Assim sendo, os direitos humanos fundamentais "colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação do poder e visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana". (MORAES, 2003, p. 20).

Portanto "o respeito aos direitos humanos fundamentais, principalmente pelas autoridades públicas, é pilastra-mestra na construção de um verdadeiro Estado de direito democrático". Sendo que "sua previsão direciona-se basicamente para a proteção à dignidade humana em seu sentido mais amplo". (MORAES, 2003, p. 21-22).

A origem dos direitos fundamentais remonta do antigo Egito e Mesopotâmia, no terceiro milênio a. C., onde já eram previstos alguns mecanismos de proteção individual em relação ao Estado. Mas o forte desenvolvimento dos direitos humanos deu-se do final do século XVIII, após a Revolução Francesa, até o século XX, culminado em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos. (MORAES, 2003, p. 24-25).

Com relação aos direitos humanos fundamentais a Declaração Universal consagra o direito à vida, à liberdade e à igualdade nos seus artigos III e VII:

Artigo III

Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo VII

Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Da Constituição Brasileira de 1988, extrai-se o direito de submeter-se à transplante de órgãos e tecidos a partir da análise sistêmica de normas e princípios constitucionais como da dignidade de pessoa humana (inciso III do art. 1°); da inviolabilidade do direito à vida (caput do art. 5º); da liberdade de consciência e crença (inciso VI do art. 5º); do direito ao próprio corpo; do direito a integridade física; dos direitos de personalidade; e do incentivo à pesquisa e ao desenvolvimento científico (art. 218).

Os direitos humanos são todos os direitos mais próximos e indissociáveis do gênero humano, dos quais o direito à vida é maior bem tutelado pelo ordenamento jurídico, haja vista que sem esta, a própria sociedade não existiria. Para Alexandre de Moraes “o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos”. (MORAES, 2004).

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à vida, que segundo ensina Alexandre de Moraes a Carta Magna “determina que cabe ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência". E, portanto "deve ser entendido como direito a um nível adequado com a condição humana". (MOARES, 2003, p. 87).

Em relação ao direito de liberdade de consciência o filósofo Immanuel Kant no final do século XVIII visualizou a liberdade como liberdade de consciência, e segundo ele deveria ser protegida, somente podendo ser coibida a conduta exteriorizada. Porém, foi na Idade Moderna que a liberdade passou a ser sinônimo de consciência, onde a ideia da liberdade é tida como fenômeno subjetivo baseado na consciência individual. (CABRAL, 2009).

A Carta Magna tutela a "liberdade de consciência e de crença" como um “direito e garantia fundamental” (C.F., art.5º, inciso VI) decorrente do fundamento central da nossa sociedade que é a "dignidade da pessoa humana" (C.F., art.1º, inciso III).

A proteção à integridade física tem previsão legal no artigo 13 do Código Civil, que proíbe a disposição do próprio corpo, quando esta importar em diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. A única exceção admitida está contida no parágrafo único do referido artigo, que permite a disposição, por pessoa capaz, de tecidos, órgãos e partes do corpo para fins de transplante ou tratamento, na forma da Lei 9.434/97. (FIÚZA, 2003, p. 26-27 apud GOMES, 2010).

Ainda, o Código Civil, artigo 14, dispõe que “é válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte sobre os atos de disposição do corpo”. No parágrafo único do referido artigo prevê que “o ato de disposição pode ser revogado a qualquer tempo” pelo doador.

O artigo 15 do Código Civil dispõe que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”, prevê assim a exigência de autorização espontânea e consciente do paciente, ou de seu representante, se incapaz, para se submeter à cirurgia ou a tratamento médico, assim, a inviolabilidade do corpo humano. (GOMES, 2010).

Sobre o direito de personalidade Pontes de Miranda ensina que: "Certo, a personalidade em si não é direito; é qualidade, é o ser capaz de direitos, o ser possível estar nas relações jurídicas como sujeito de direito". (MIRANDA, 2000, p. 216 apud GOMES, 2010).

Nesse sentido, a personalidade é atributo inerente ao homem, ou seja, não requer o preenchimento de qualquer requisito, nem depende do conhecimento ou da vontade do ser humano. Mesmo que o indivíduo não tenha consciência da realidade, é dotado de personalidade, pelo simples fato de ser pessoa (PEREIRA, 2001, p. 142 apud GOMES, 2010).

O Código Civil, no artigo 1º dispõe que: "Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil". Os direitos da personalidade têm por finalidade a proteção dos direitos indispensáveis à dignidade e integridade da pessoa.

O civilista Carlos Alberto Bittar conceitua direitos da personalidade como sendo "os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico, exatamente para a defesa de valores inatos ao homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros". (BITTAR, 2003).

Com relação ao direito ao próprio corpo evidencia-se atualmente no biodireito "especialmente diante dos avanços das técnicas de tratamentos empregados pela medicina que envolvem possibilidade de disposição de certas partes do corpo humano, ora em prol do mesmo sujeito, ora em favor de outra pessoa". (SILVA, 2002, p. 240).

Esse direito fundamental ao próprio corpo impõe os limites admissíveis de interferência no corpo humano em todas as etapas e dimensões da vida humana, seja embrião, feto, criança, adolescente, pessoa adulta, pessoa idosa, ou já falecida. (GAMA, 2003).

Em que pese a vontade individual, o direito ao próprio corpo humano encontra limites para disposição de partes, no ordenamento jurídico, tendo em vista os valores da dignidade humana e do direito à vida. Assim, a pessoa individualmente não tem direito real sobre partes de seu corpo, havendo, portanto, a necessidade de uma ordem pública que expressamente permita a disposição de partes do corpo humano. (GOMES, 2010).

No que tange ao desenvolvimento científico não cabe ao Estado proibir os indivíduos que se beneficiem desses avanços tecnológicos, sendo porque, são advindos de áreas que o próprio Estado Brasileiro promove o incentivo conforme dispõe o artigo 218 da Constituição Federal:

Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas.

§ 1º - A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências.

[...]

2.4 Bioética e o Transplante

No campo da medicina o progresso biotecnológico surge com o intuito de ajudar a sociedade a enfrentar os males que comprometem a saúde das pessoas, nesse sentido, muitos avanços médicos se destacam no benefício à saúde humana como as modernas técnicas de transplante, inseminação artificial, células tronco, dentre tantas outras.

Da utilização dessas modernas biotecnologias têm surgido novas questões sociais e éticas que antes não existiam no seio da sociedade. É a partir desses fatos que a Bioética ganha importância, uma vez que o direito não consegue acompanhar, em tempo, tantas mudanças.

Conceituada por Sauwen (1997 apud PALUDO, 2001) como o estudo interdisciplinar, ligado à Ética, que investiga, nas áreas das ciências da vida e da saúde, a totalidade das condições necessárias a uma administração responsável da vida humana em geral e da pessoa humana em particular.

A bioética nasceu da necessidade de um controle da utilização crescente e invasora de tecnologias cada vez mais numerosas e afinadas nas práticas biomédicas. (LEITE, 1998 apud PALUDO, 2001).

Com tantas implicações na sociedade, por consequência do progresso tecnológico, também se acentua cada vez mais a imprescindível presença do Direito ao lado da Bioética na defesa das pessoas perante possíveis violações dos direitos fundamentais do homem.

Acerca dos transplantes de órgãos inúmeros questionamentos tem afetado o ordenamento jurídico brasileiro. Em especial o direito a vida e possibilidade de burlar a fila de espera para doação; o uso de órgãos e tecidos de anencéfalos para transplante; o comércio ilegal de órgãos; a doação coercitiva de órgãos; o transplante de rins entre não parentes, entre outros.

Problemas éticos resultantes dos procedimentos experimentais de transplantes de órgãos trouxeram “grandes dilemas: experiências duvidosas, conceitos de morte revistos, o direito a cidadania, o respeito em relação ao desejo familiar da doação, a esperança de quem precisa urgentemente de um órgão, o aumento na fila de espera e o medo”. (DA SILVA NETO, 2004, p. 16).

Nesse sentido, pretende-se incluir o tema central desse estudo nos questionamentos da bioética, qual seja, a possibilidade da extensão dos direitos da pessoa com deficiência aos transplantados.

2.5 Ordenamento Jurídico Brasileiro e o Transplante

No Brasil os transplantes são regulamentados pela Lei nº 9.434 de 1997 (Lei dos Transplantes), com alterações pelas Lei nº 10.211/2001 e Lei nº 11.521/2007, e alguns dispositivos do Código Civil e do Código Penal.

No seu artigo 1º a Lei de Transplante define que a disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, excetuados o sangue, o esperma e o óvulo é permitida no Brasil na forma desta lei:

Art. 1º A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei.

Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo o sangue, o esperma e o óvulo.

O artigo 4º da referida Lei com alteração dada pela Lei 10.211/2001 dispõe que a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica dependerá de autorização dos familiares:

Art. 4º A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

Esse dispositivo em seu texto original dizia que se presumia a autorização a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo, salvo manifestação em contrário:

Art. 4º Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta Lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem.

A determinação de doação presumida de tal dispositivo, do ponto de vista jurídico, correspondia uma violação do regime democrático, dentro do qual a regra é de o cidadão dizer o que quer. Do ponto de vista ético, a doação presumida afrontava o princípio da autonomia da vontade e da dignidade da pessoa humana, a medida que retirava a autonomia de decidir sobre a disposição do próprio corpo a qualquer tempo por abuso do poder do Estado. (NEVES, 1997 apud KLIEMANN E CATIARI, 2006).

Depois de muitas críticas a tal dispositivo que, em março de 2001, com a edição da Lei nº 10.211/2001, foi modifica a Lei de Transplantes no seu artigo 4º extinguindo a presunção de doação de órgãos. Porém para alguns juristas a substituição pela decisão da família representa um absurdo jurídico, haja vista que ainda permite a remoção, post mortem, de tecidos ou órgãos sem a necessária autorização expressa do indivíduo em vida, violando os princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade.

Nesse sentido a edição do Novo Código Civil pela Lei n. 10.406/2002 trouxe no seu artigo 14 a possibilidade de disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte para depois da morte:

Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.

Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.

Assim a nova redação do artigo supracitado dá a possibilidade de decisão ao indivíduo de dispor do "próprio corpo" num transplante post mortem. Note-se que este dispositivo se adapta perfeitamente aos princípios da Bioética da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade, principalmente porque autoriza não só a declaração de disposição de corpo para após a morte, como também a revogação de tal manifestação da vontade a qualquer tempo. (KLIEMANN E CATIARI, 2006).

Contudo o Código civil regula apenas os atos declaratórios de vontade de dispor do próprio corpo post mortem, deixando margem a aplicação da Lei dos Transplantes nos casos em que não houve o ato de disposição, cabendo então a decisão a família de cujus.

2.6 Transplantados, Trabalho e Renda das Famílias

Dados do 1º semestre de 2012 da Associação Brasileira de Transplantes de órgãos revelam que, na lista de espera, 21.686 pacientes aguardam transplante renal no Brasil, que correspondem a 24% dos cerca de 90.000 pacientes em diálise, terapia renal substitutiva, associada à restrição funcional, a numerosas complicações físicas quem comprometem a qualidade de vida.

Para Jofre (1998, apud LOBO E BELLO, 2006) “o paciente em tratamento dialítico tem menor índice de reabilitação para o trabalho (19% a 30%) do que o paciente transplantado renal (45% a 60%)”. Assim como alternativa de tratamento aos pacientes submetidos à diálise, o transplante renal tem se mostrado a longo prazo, mais benefícios à saúde dos pacientes.

Em 2005, foi realizado um estudo no Hospital de Base do Distrito Federal com o objetivo de avaliar se o transplante renal, efetivamente, torna possível a recuperação da capacidade laborativa de indivíduos submetidos a essa modalidade de tratamento, onde foram estudados 124 pacientes transplantados. (LOBO E BELLO, 2006).

Dentre os resultados obtidos na pesquisa destacam-se os seguintes dados:

“79 homens (62,9%) e 46 mulheres (37,1%), com média de 40 anos de idade e cinco anos de transplante. Destes, 02 tinham doença incapacitante permanente na época do transplante (1,6%) e 11 após um ano de transplante (8,8%). Quanto ao aspecto de capacitação para o trabalho após um ano de transplante, encontravam-se 113 pacientes aptos (91%), dos quais 41 necessitavam de reabilitação profissional (33%).

Em relação a situação laboral na época do transplante, 28 (22,5%) pacientes eram ativos e 96 (77,4%) inativos. Um ano após o transplante renal, notou-se um acréscimo de pacientes em atividade laborativa, ou seja, 38 (30,6%) estavam ativos e 86 (69,5%) inativos. Contudo, a diferença foi considera não significativa (p=0,091). (grifo nosso)

Os pesquisadores evidenciaram um maior retorno ao mercado de trabalho no grupo dos pacientes com maior escolaridade conforme tabela a seguir:

Tabela 1: Situação do trabalho relacionado à escolaridade.

Escolaridade

Pré-Transplante

Pós-Transplante

Ativos

Inativos

Ativos

Inativos

Analfabeto

0 (0,0%)

7 (5,6%)

0 (0,0%)

7 (5,6%)

Fundamental

20 (16,1%)

62 (50,0%)

22 (17,7%)

60 (48,3%)

Médio

7 (5,6%)

23 (18,5%)

13 (10,4%)

17 (13,7%)

Superior

1 (0,08%)

4 (3,2%)

3 (2,4%)

2 (1,6%)

Subtotal

28 (22,6%)

96 (77,4%)

38 (30,6%)

86 (69,4%)

Total

124 (100%)

124 (100%)

Em suas conclusões os pesquisadores destacaram que apesar de 91% dos pacientes estarem aptos ao trabalho após o transplante, o retorno ao mercado de trabalho de 8,1% não foi significativo estatisticamente, e demonstrou grande deficiência dos programas sociais de reabilitação para o trabalho e inclusão social:

91% dos pacientes foram considerados capazes, do ponto de vista de saúde para o trabalho. Destes, 67% poderiam retornar à profissão que exerciam antes do transplante renal e 33% necessitavam de reabilitação profissional. Apesar disso, apenas 30,6% trabalhavam um ano após transplante, representando um acréscimo de apenas 8,1% em relação à situação pré-transplante, que, como visto, não foi estatisticamente significante. Se levarmos em consideração que 91% dos pacientes encontravam-se capazes de exercer uma atividade laborativa, podemos inferir destes resultados que existe grande deficiência dos programas de reabilitação para o trabalho e inclusão social”. (grifo nosso)

Após o transplante de órgão muitos sentimentos afetam o indivíduo como depressão, medo da rejeição e ansiedade, que com frequência, reduzem a capacidade para o trabalho e o convívio social. Nesse contexto, “o trabalho pode dar um sentido mais produtivo à vida, bem como um ganho financeiro, na maioria dos casos, refletindo numa melhor qualidade de vida”. (PARIS, 1997 apud LOBO E BELLO, 2006).

Apesar de todos os benefícios psicológicos e sociais que retorno ao trabalho pode proporcionar, ainda existem muitas barreiras para o retorno a atividade laborativa pós-transplante:

1) desejo de manter garantida sua aposentadoria;

2) dificuldades de ingresso no mercado de trabalho para indivíduos com mais de 50 anos de idade;

3) pacientes que se sentem inábeis para o trabalho, física e psicologicamente;

4) receptores com alto nível de formação profissional e que não desejam se submeter a uma reabilitação para o trabalho, muitas vezes necessária e que poderia limitar sua satisfação profissional. (LOBO E BELLO, 2006).

Com relação à reabilitação profissional o Decreto Federal 3.048/99 (Regulamento da Previdência Social) no seu artigo 136 conceitua a reabilitação profissional como assistência educativa e de adaptação profissional, que vise proporcionar aos beneficiários, portadores de deficiência, os meios indicados para o reingresso no mercado de trabalho e no contexto social em que vivem.

Nesse sentido, Lobo e Bello (2006) observam que deveriam ser desenvolvidos programas sociais com a finalidade de recolocar os pacientes pós-transplante no mercado de trabalho, evitando a manutenção de gastos previdenciários com indivíduos que reverteram a incapacidade laborativa.

Em outro texto já tivemos a oportunidade de registrar que essas pessoas poderiam trabalhar em atividades produtivas formais, adaptadas às suas necessidades, buscando, elas mesmas, a própria sobrevivência, com dignidade e sem assistencialismos, evitando, assim, o dispêndio de recursos da seguridade social. (GOLDSCHMIDT, 2009, p. 163-164).

Outra pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, em 2010, aborda a relação entre renda, trabalho e qualidade de vida de pacientes submetidos ao transplante de medula óssea. (MAESTROPIETRO, 2010).

Dados da pesquisa em relação à situação produtiva observaram que a maioria dos pacientes no pré-transplante estavam inseridos no mercado de trabalho, e que após o transplante, a maioria se encontrava afastada de suas ocupações anteriores.

Evidenciou-se, ainda, que as condições de pobreza dos pacientes depreciam a qualidade de vida, o sentimento de ser competente em sua vida pessoal e o ajustamento psicológico, o que pode elevar ainda mais os riscos inerentes ao transplante. Nesse contexto, a pobreza constitui-se risco potencial para os agravos que podem suceder ao transplante, na medida em que intensificam as dificuldades de seguir orientações rigorosas em termos de autocuidados, higiene, alimentação, moradia, transporte, o que requer um contínuo monitoramento das possibilidades e limitações de cada sistema familiar. (MAESTROPIETRO, 2010).

Sendo assim, observa-se que a pobreza pode comprometer a recuperação do paciente após o transplante, haja vista que a qualidade psicológica e alimentação saudável influenciam na recuperação e diminuem a possibilidade de rejeição do órgão.

Acrescenta-se ainda, que atividade laboral tem papel determinante no equilíbrio psicológico do ser humano, uma vez que tem implicações diretas nas condições fisiológicas, psíquicas, mentais e sociais do indivíduo. O trabalho traz satisfação pessoal, significa saúde, disposição, diversão, é tudo para o homem, e significa, portanto, dignidade humana. (CARREIRA E MARCON, 2003).

Nesse contexto, o nefrologista José Medina Pestana, presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), em entrevista a Revista Isto É, lamenta que apesar do quadro positivo do número de transplantes no Brasil, após o transplante, pode começar uma nova batalha para o transplantado. “Não se trata do problema de driblar a rejeição (risco comum nessa situação), mas a dificuldade de se recolocar no mercado de trabalho. Geralmente, se há dois candidatos a uma vaga e um é transplantado, a empresa opta por quem não passou pelo processo de doação”. (ZACHÉ, 2001).

Nessa mesma reportagem, o cirurgião dentista Katshhito Miyasaki, presidente da Associação dos Pacientes Transplantados de São Paulo, ligada à Universidade Federal de São Paulo, destaca que seu sonho é reinvindicar uma legislação que garanta a entrada dos transplantados no mercado de trabalho. “Já recorri a vários políticos e até agora nada”, desabafa Miyasaki, ele próprio um exemplo de que o transplantado pode levar uma vida normal, com rotina de trabalho. (ZACHÉ, 2001).

Destaca-se, ainda, dessa reportagem, o caso do ex-motorista de ônibus José Vieira, 44 anos, de Campinas, que após a cirurgia, “não conseguiu arranjar emprego fixo”, e desabafa “no exame médico, abro a blusa, mostro a cicatriz e, em seguida, sou reprovado”. (ZACHÉ, 2001).

Muitas vezes, a própria rotina de consultas frequentes, medicações em horários certos e mal estar após ingestão dos medicamentos podem comprometer a empregabilidade do transplantado. Nesse sentido o médico nefrologista Reginaldo Carlos Boni, diretor do Serviço de Captação de Órgãos da Santa Casa de São Paulo, afirma que “para garantir o sucesso do transplante, o transplantado deverá seguir à risca as recomendações do médico, tomando corretamente suas medicações, respeitando doses e horários, e realizando os exames que forem solicitados a cada consulta”. E acrescenta “é importante que o receptor compareça a todas as consultas de retorno agendadas, que logo após o transplante serão frequentes”. (COIMBRA, 2011).

No Brasil, desde a década de 60 têm sido desenvolvidas atividades de transplante, e hoje a população de transplantados (coração, córnea, fígado, pâncreas, rim, pulmão) no Estado de São Paulo é de aproximadamente 70 mil pessoas, e com os avanços na tecnologia para realização de transplantes a tendência é que o número de transplantados aumente cada vez mais. (CAPEZ, 2009).

Para o Deputado Estadual de São Paulo e autor jurídico renomado, Fernando Capez, seu Projeto de Lei 811/2009 visa incluir os transplantados na Lei nº 12.907/2008, que consolida a legislação relativa à pessoa portadora de deficiência. E esclarece "os transplantados, muitas vezes, sofrem as mesmas limitações dos portadores de deficiência, merecendo o mesmo amparo do ordenamento jurídico".

Acrescenta Capez (2009) que a inserção do transplantado no mercado de trabalho e no engajamento social tem um alto custo pessoal, uma vez que o mesmo deve fazer tratamento constante com medicamento imunossupressor para evitar a rejeição de órgão. "Isso limita o cumprimento das atividades rotineiras em razão de vários efeitos colaterais, como anemia, náuseas, vômitos, diarreia, dor abdominal, febre, calafrios, diminuição de apetite, retinopatia, falta de ar e pressão baixa, entre outros".

Para Capez, "muitas vezes o transplantado é vítima de preconceito, que só pode ser combatido com ações que criem oportunidades para sua participação ativa na sociedade", e afirma a Lei nº 12.907/2008 determina diversos direitos aos portadores de deficiência, como acesso específico aos serviços de saúde, reabilitação, inclusão social, locomoção e acesso aos bens e serviços públicos, dentre outros. Com a garantia desses direitos aos transplantados "espera-se que eles tenham uma qualidade de vida melhor".

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Sobre os autores
André Amaral Medeiros

Acadêmico de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina; Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais Sociais da UNOESC; Bacharel em Ciências Contábeis pela UFSM. Pós-graduando em Gestão Pública Municipal pela UFSC; Contador da Fazenda Estadual de Santa Catarina;

Rodrigo Goldschmidt

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor do Programa de Mestrado em Direito da Unoesc. Coordenador da Linha de Pesquisa em Direitos Fundamentais Sociais da Unoesc. Juiz do Trabalho do TRT 12/SC;

Caren Silva Machado

Especialista em Direito do Trabalho. Professora e Pesquisadora da UNOESC. Advogada;

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, André Amaral ; GOLDSCHMIDT, Rodrigo et al. A extensão dos direitos da pessoa com deficiência aos transplantados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3436, 27 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23103. Acesso em: 18 abr. 2024.

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