Sumário: 1) Introdução. 2) O fundamento de validade do casamento religioso. 3) Entre o sacramento e os aspectos seculares do matrimônio. 4) A ausência de regulação pelo Estado. 5) Uma conclusão possível. 6) Bibliografia.
1. Introdução
A laicização do casamento demorou a contar com previsão no ordenamento jurídico brasileiro construído a partir da outorga da Carta de 1824. O texto constitucional estabelecia em seu artigo 5º que a Igreja Católica Apostólica Romana continuaria a ser a religião do Estado, mantendo o sistema do padroado praticado desde o período colonial como herança da administração portuguesa.
Por esse sistema, o Governo Imperial mantinha a religião católica, provendo os benefícios eclesiásticos. Em contrapartida, o Imperador - e não o Papa - nomeava os bispos de sua confiança (art. 102, parágrafo 2º). Também competia ao Imperador a concessão do beneplácito imperial para a aplicação em território brasileiro dos Decretos dos Concílios, Letras Apostólicas, Constituições Eclesiásticas (art. 102, parágrafo 14) e quaisquer outras peças com conteúdo normativo emanadas da autoridade eclesiástica.
Ainda o artigo 5º da Carta de 1824 permitia todas as outras religiões com seu culto doméstico ou particular em casas para isso destinadas, desde que não tomassem forma exterior de templo. Denotando a sua orientação liberal[1], a Carta de 1824 previa um rol de direitos e garantias individuais no qual asseverava que ninguém poderia ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeitasse a do Estado, e não ofendesse a moral pública (parágrafo 5º). Também entre o rol de garantias individuais determinava que deveria ser organizado, o “quanto antes um Código Civil, e Criminal, fundado nas solidas bases da Justiça, e Equidade” (parágrafo 18).
Se logo nas primeiras legislaturas, a Igreja Católica e a liberdade de outros cultos não foram esquecidas pelas previsões do Código Criminal do Império de 1830, que protegia a religião oficial do Estado (artigo 277) e punia qualquer tipo de perseguição por motivo de religião (artigo 191), tutelando aqueles que professassem outros cultos não católicos, ninguém parecia à vontade para regular uma área em que o poder civil ainda não era confrontado pelo poder da Igreja.
No que diz respeito à celebração de casamentos, essa reserva de competência da Igreja Católica, cujos membros remunerados pelo Poder Público também estavam submetidos à hierarquia do poder temporal, além de suprir a demanda em estender a administração pública aos rincões mais distantes do Império, também atendia ao desejo da maioria da população que professava a religião oficial. Assim como ocorreu nas demais nações católicas, qualquer proposta de alteração do procedimento de celebração do casamento seria custosa e, pelo texto constitucional, deveria ser justificada por uma real necessidade (artigo 179, parágrafo 2°).
Este artigo pretende analisar os debates antecederam a primeira legislação do casamento civil no Brasil do século XIX enquanto não editado o Código Civil previsto pela Carta. Esses debates, em que juristas e representantes da elite política imperial identificaram a necessidade de legislação sobre o tema, ocorreram no Conselho de Estado do Império.
Como órgão auxiliar do Poder Moderador que segundo o texto constitucional era atribuído ao Imperador para garantir a harmonia entre os poderes, o Conselho de Estado assumiu um papel de intérprete e produtor da doutrina jurídica nacional, suprindo o espaço deixado por um sistema judiciário em que o órgão de cúpula — no caso brasileiro, o Supremo Tribunal de Justiça — não se desincumbia da tarefa de orientar o julgamento de casos das instâncias inferiores pela edição de precedentes quando a lei fosse causa de controvérsias[2].
Quando não havia lei que regesse a matéria debatida pelo Conselho, o órgão indicava ao Governo Imperial a necessidade de produção legislativa sobre o assunto. Foi o que ocorreu com relação ao casamento civil.
2. O fundamento de validade do casamento religioso.
Por força da Lei de 3 de novembro de 1827, a Assembleia Legislativa resolveu manter como lei do Império as disposições do Livro 1º, título 68, §291 das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, elaboradas pelo Arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide e aprovadas por um Sínodo em 1707.
Suas previsões reproduziam as previsões do Concílio de Trento e autorizavam os párocos a celebrar casamentos, a pedido dos noivos, dos quais pelo menos um fosse do mesmo Bispado e não houvesse entre eles impedimentos, depois de praticadas, pelo pároco, as diligências recomendadas em seus §§ 269 e seguintes.
As Constituições consistiam em uma verdadeira peça prescritiva, emanada do poder eclesiástico, com condutas permitidas e vedadas na ordem civil da colônia que preencheram os espaços não ocupados pelo poder temporal. Com a intenção de disciplinar a vida religiosa no Brasil colonial, seu texto continha regras de direito eclesiástico que regulamentavam a forma como deveriam ser realizados os sacramentos católicos, como o batismo e o casamento, impunham sanções e, ainda, designavam as autoridades competentes para o julgamento dos “pecados públicos” e crimes contra as causas eclesiásticas, dividindo espaço com a jurisdição temporal.
O que a lei de 3 de novembro de 1827 fazia era considerar o casamento como um sacramento e como tal regulá-lo por regras do direito canônico, com determinação expressa da observância das disposições do Concílio Tridentino sobre o tema (De reformatione matrimonii). Naquelas uniões celebradas entre pessoas de religiões diferentes da católica o matrimônio carecia de reconhecimento formal do Estado. Em muitos casos os casamentos eram feitos por escritura pública, mas não contavam com o reconhecimento do Estado, que chancelava o monopólio da Igreja sobre essa sensível área da vida privada.
Na década de 1850, Euzébio de Queiroz, como conselheiro da Seção de Justiça, declarava em um parecer que “em São Paulo, consta oficialmente ao Governo que não só protestantes entre si, mas até católicos ignorantes tem descansado na validade de casamentos contraídos por meras escrituras, que nossas leis não reconhecem”[3].
3. Entre o sacramento e os aspectos seculares do matrimônio.
Na Seção de Justiça do Conselho de Estado, antes mesmo de ser emitida consulta a respeito do casamento de pessoas de diferentes religiões, surgiu discussão sobre a necessidade de se regular os aspectos seculares do casamento, que deixaria de receber o enfoque de um mero sacramento católico e passaria a ser visto como um contrato de aspectos seculares. Um caso resolvido pelo Conselho em 1849, ainda que timidamente, antecipava as questões sobre a necessidade de serem supridas as omissões legislativas a respeito do matrimônio, até então reservado apenas à competência eclesiástica.
Dois brasileiros, residentes na França, pretendiam se casar, mas não possuíam todos os documentos necessários segundo as leis francesas. Procuraram, então, a Legação brasileira em Paris, pedindo ao Ministro, como era designado o chefe da representação diplomática, a celebração do matrimônio na embaixada, suprindo a ausência de documentos.
O Ministro recusou o pedido e encaminhou ofício ao Governo. Curioso é o fato de o comunicado oficial noticiar que a prática era comum em embaixadas de outros países e que até mesmo o seu antecessor de embaixada havia permitido a celebração de casamentos na Legação Brasileira em Paris. No ofício ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, o embaixador requereu que a questão fosse regulamentada pelo governo. O caso foi encaminhado ao Ministério da Justiça que o submeteu ao Conselho de Estado.
O interessante é notar que esta questão, debatida no Conselho antes mesmo da entrada de imigrantes protestantes no país, antecipa as discussões sobre a necessidade de regulamentação dos aspectos civis do casamento, visto que se pretendia orientação sobre como proceder para realização de casamentos nas Legações e Consulados do Brasil no Exterior.
Em seu parecer, o Conselho reconhece que o casamento deveria ser celebrado segundo as leis da igreja, com observância das formas estabelecidas pelo Concílio Tridentino, e das Leis do Império do Brasil. Por esta razão, ao passar a analisar a necessidade de regulamentação da matéria em discussão, o colegiado chancelou a recusa do embaixador na realização do casamento que, se houvesse sido celebrado, poderia, no entendimento dos Conselheiros, até mesmo ser considerado nulo.
De se notar, entretanto, que a partir dessa consulta começa a ganhar corpo a ideia de que, além de ser um sacramento e possuir reflexos religiosos, os quais foram resguardados pelos conselheiros, o casamento possuía aspectos civis que careciam de regulamentação pelo Estado:
Entende a Seção que, sem que uma Lei defina, e separe os atos puramente civis do matrimônio considerado como contrato, e designe perante quais autoridades, e porque maneira devem eles praticar-se, o Governo de Vossa Majestade Imperial obraria com prudência se acaso se limitasse á recomendar às Legações do Brasil em Países estrangeiros, que não devem prestar-se á celebração de casamentos nas Casas das Legaçõessenão quando simultaneamente concorrerem as seguintes circunstâncias:
1 — Que ambos os nubentes sejam súbditos brasileiros:
2 — Que se apresentem competentemente habilitados para contrair matrimônio com todos os documentos, e justificações, que exigem as Leis da Igreja e do Estado no Império do Brasil:
3 — Que provem a impossibilidade de satisfazer ás outras condições que além das que acima ficam referidas sejam por ventura ordenadas pelas Leis do país onde residirem.[4]
4. A ausência de regulação pelo Estado.
Depois deste primeiro precedente, a falta de legislação a respeito do casamento civil ganhou destaque com a chegada de imigrantes protestantes que, a partir da década de 1850, aportaram no Brasil como alternativa à mão-de-obra escrava. Em abril de 1854 a Seção de Justiça do Conselho de Estado reuniu-se para emitir parecer sobre o caso de Catarina Scheid, colona de origem alemã que contraíra casamento com um português católico perante sacerdote de sua confissão religiosa, a luterana.
A discussão rendeu inúmeros debates sobre as dimensões da liberdade religiosa no Império. Abandonada pelo marido um ano após a união, Catarina Scheid queria ver declarado nulo o seu casamento, questão que segundo as regras de direito público brasileiro vigente à época deveria ser apreciada pelos tribunais eclesiásticos católicos. Declarado nulo o casamento pelo bispo católico, a alemã queria a declaração de nulidade por sua própria Igreja.
Tendo de solucionar a questão da autoridade da Igreja luterana para anular o casamento, o Conselho, em parecer lavrado por Paulino José Soares de Sousa, Visconde de Abrantes e Caetano Maria Lopes da Gama, constatou a impossibilidade da anulação do casamento por autoridade que não fosse oficial. Também foi consignada deficiência da legislação brasileira, despreparada para receber um necessário fluxo de imigrantes para substituir a mão-de-obra escrava.
Diferentemente do Poder Judiciário, o Conselho podia não resolver o caso concreto e, por isso, constatou apenas a omissão da legislação, propondo a regulamentação da matéria por um projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo que deveria ser encaminhado ao poder legislativo para regular o casamento entre pessoas de diferentes religiões e entre estas e católicos, normatizando ainda o exercício dos cultos tolerados no Império.
Em seu voto, Paulino ponderava que o casamento era regulado pelo direito brasileiro ainda como herança da antiga legislação portuguesa. Também frisava que a colonização estrangeira civilizaria o país e, por essa razão, em sua opinião, o Estado deveria garantir segurança jurídica aos estrangeiros não católicos que no Brasil contraíssem matrimônio. A liberdade religiosa não estaria assegurada se o Estado apenas admitisse como válidas as uniões celebradas entre católicos perante a Igreja oficial.[5]
Em 29 de maio de 1856, depois de passar pela Seção de Justiça, o Pleno do Conselho de Estado reuniu-se para debater sobre projeto de lei de iniciativa do governo imperial a respeito de casamentos entre não católicos. Embora o texto de lei aprovado esteja bem longe daquilo que foi proposto, os pareceres dos conselheiros, fundamentados com base em direito comparado e justificativas históricas, deixa entrever a eficácia e abrangência dos direitos civis assegurados pela Constituição de 1824. Também demonstra os limites que o Conselho não estava disposto a transpor, aduzindo razões para garantia da estabilidade política do Império.
De autoria do senador José Tomas Nabuco de Araújo, então à frente do Ministério da Justiça (1853-1857), o projeto apresentado, tal como o Código Civil Francês, estabelecia a necessidade de ser realizado o casamento civil antes do casamento religioso. O casamento civil era suficiente para gerar todos os efeitos civis dele decorrentes, ainda que não fosse realizado o religioso.
Pelo projeto seriam admitidos casamentos entre não católicos e mistos, em que apenas uma das partes professasse a religião do Estado. Neste caso, os tribunais eclesiásticos continuariam competentes para decidirem sobre dissolução do casamento para a parte católica. Os evangélicos casados entre si ou com católicos deveriam levar a questão da dissolução aos Tribunais e Juízes do Império. O Governo também ficaria autorizado, caso fosse aprovado o projeto, a permitir a instituição de Consistórios, Sínodos, Presbitérios e Pastores Evangélicos, determinando as condições de sua existência, e exercícios, assim com as regras de fiscalização e inspeção a que ficariam sujeitos.
Na Seção de Justiça, o voto do relator Eusébio de Queiroz, acompanhado pelo Marquês de Abrantes, foi no sentido de que o casamento, além de um sacramento, deveria ser reconhecido como um contrato civil, tal como reconhecido pelo Código Civil Francês. Seu parecer, lavrado na ata de 29 de maio de 1956 do órgão pleno do Conselho, dispunha:
Quanto aos casamentos de pessoas que estão fora do grêmio do catolicismo, que não encaram no matrimônio um sacramento, nem reconhece a autoridade da Igreja, nenhuma dificuldade religiosa pode fundadamente aparecer em estabelecê-los como contratos civis (...)
A Constituição estabeleceu a tolerância religiosa para todos os cultos, uma vez que não desrespeitem a religião do Estado, e não construam templos com formas exteriores que os revelem. O país carece de colonização, e promover emigração; esta não nos vem somente de países católicos. É pois necessário providenciar de modo eficaz, porque onde vivem promiscuamente populações de crenças diversas, os casamentos mistos necessariamente aparecem; se se não regulam, vem os concubinatos, e o que é pior ainda os casamentos nulos, e irregulares, em que a inocência e a boa-fé são vítimas[6]
Todavia, o parecer era contrário ao §1º do artigo primeiro do projeto, segundo o qual o casamento civil deveria preceder ao religioso. Para os conselheiros, para evitar problemas políticos, o casamento católico deveria bastar por si mesmo e nada deveria precedê-lo. Entendeu a Seção que a precedência do casamento civil sobre o casamento católico poderia dificultar a aprovação do projeto.Eusébio de Queiroz advertia em seu voto
que a inovação deve limitar-se ao que for absolutamente dispensável. Assim a respeito do casamento entre católicos, entende que deve se manter o estado atual, e nisto vai de acordo com o pensamento do projeto. Não desconhece a Seção a necessidade de algumas providências para evitar abusos, que se tem tornado infelizmente frequentes; mas os meios, e o modo de o realizar devem fazer parte de trabalho especial, e não deste Projeto, porque seria complicar sem necessidade questões já em si difíceis, e delicadas (...)
A exigência da legislação francesa, querendo que o casamento civil preceda ao religioso mesmo entre católicos, e de tal sorte que os padres que o celebrarem sem esta precedência fiquem sujeito a penas, não é uma necessidade absoluta, e conforme os princípios acima expostos pela Seção, não se deve por isso adotar; ao menos se que precedam negociações com a Santa Sé, que não é de certo muito favorável a esses princípios [7]
O voto também notava a omissão do projeto de governo no que dizia respeito aos impedimentos matrimoniais, que ainda eram regulados pelas disposições do Concílio de Trento e só restringiam as uniões entre católicos. Eusébio de Queirós propôs, então, que aos não católicos fossem aplicados os impedimentos regulados no Código Civil Francês, devendo os impedimentos do Direito Canônico serem observados por aqueles que pretendiam se casar perante o culto católico.
Após os debates e lavratura da ata, a questão dormitou na Câmara dos Deputados e somente em 11 de setembro de 1861 foi sancionada lei estendendo efeitos civis aos casamentos celebrados entre pessoas que professavam religião diferente da do Estado. A lei ainda regulava o registro civil destes casamentos e dos nascimentos e óbitos dos não católicos, bem como as condições necessárias para que os pastores das religiões toleradas praticassem atos com efeitos civis. Contudo, a lei silenciava a respeito dos casamentos mistos.[8]
Pouco mais de um ano depois de discutir o caso de Catarina Scheid, o Conselho resolvia, em novembro de 1857, com semelhante solução, outro caso a ele submetido envolvendo a matéria de casamentos. Tratava-se de representação do Presidente da Província de Santa Catarina, provocada pelo Juiz de Órfãos da cidade do Desterro, que havia se insurgido contra o procedimento do pároco da cidade que celebrou matrimônio de órfã de 14 anos sem autorização judicial.
Após a celebração do matrimônio, o pároco foi acusado de violar o artigo 247 do Código Penal que, sob a rubrica “celebração do matrimônio contra as Leis do Império”, descrevia como crime a conduta de “receber eclesiástico em matrimônio contraentes não habilitados pelas Leis”. Defendendo-se, o padre alegou que uma instrução pastoral de 1844 permitia a celebração do casamento e que a única consequência de um matrimônio celebrado sem a autorização do juiz de órfãos seria a aplicação a estes da pena de ordenação, que consistia na impossibilidade do menor ter acesso aos seus próprios bens antes de completados vinte anos de idade.
Mais uma vez uma discussão entre o poder civil, amparado pelo ordenamento secular, e o poder eclesiástico, fiado nos Cânones, deveria ser analisada pelo Conselho. Pesou na resolução da controvérsia o fato de ainda não haver lei civil a respeito do casamento, impossibilitando a configuração do crime do Código Penal.
Lamentando, o Procurador da Coroa esclarecia que o Estado havia deixado “inteiramente livres as Leis Canônicas sobre os esponsais e celebração dos casamentos”[9]. A conclusão dos Conselheiros Visconde do Uruguai, Euzébio de Queiróz e Visconde de Maranguape foi que não poderia o padre ser incurso nas penas do artigo 247 do Código Penal, pois este dispositivo punia o eclesiástico quando este celebrasse o casamento de contraentes não habilitados pelas Leis e estas, em assunto de casamento, eram apenas as Canônicas, razão pela qual a conduta do padre não se subsumia ao tipo penal.
Em consonância com precedente da Seção de Justiça sobre o assunto, a conclusão do Procurador da Coroa e a palavra final dada pelos Conselheiros da Seção de Justiça novamente foi a de que não havia lei regulando a matéria, o que deveria ser providenciado pelo Poder Legislativo, mantendo o entendimento dos casos precedentes. Todavia, a justificativa dada não foi a necessidade de regular a situação daqueles que não professavam outras religiões que não a oficial, mas coibir abusos que de longa data vinham sendo praticados pela igreja, segundo considerou o Procurador da Coroa antes da solução dos Conselheiros:
A Legislação antiga, ainda hoje em vigor, respeita sem reserva alguma o Direito Canônico sobre a liberdade dos Esponsais.
(...) o negocio se tem tornado muito grave, e digno de eficaz, e pronta providência,- pelos perniciosos exemplos, que vão se multiplicando, se são verdadeiras, como parece, as queixas, que sucessivamente se ouvem, de casamentos de menores, ilegitimamente celebrados, assim como de casamentos contraídos in articulo mortis, donde provém incalculáveis desordens e danos às famílias e à Sociedade em geral.
(...) uma vez que os Prelados Diocesanos não coíbam os Párocos, e outras Autoridades Eclesiásticas e as constranjam ao cumprimento de seus deveres, punindo exemplarmente os contraventores, como faziam os desses tempos, a que aludo, é indispensável uma medida previdente, que ponha termo a tais abusos, a qual só pode manar do Poder Legislativo.[10]
Com relação à questão do casamento civil pode-se claramente perceber qual a efetividade dos debates do Conselho de Estado para a construção e inovação do ordenamento. O órgão tinha papel importante na interpretação das leis criadas e na identificação de lacunas. Desempenhava um papel relevante ao traçar orientações gerais diante de casos concretos que eram divulgados em revistas jurídicas, formulando, na ausência de jurisprudência, entendimentos que eram seguidos por Juízes e Tribunais.
Todavia, embora fosse acompanhada pela comunidade jurídica, nem sempre a opinião dos Conselheiros era seguida à risca pelo Poder Legislativo[11]. Com relação ao casamento civil, por exemplo, o texto de lei efetivamente aprovado denota que as opiniões dos Conselheiros não foram integralmente seguidas pelo Parlamento[12] , demonstrando o grau de independência do Poder Legislativo frente ao Poder Moderador. Ao mesmo tempo, o resultado realça o papel do Conselho de Estado como órgão consultivo produtor e veiculo de cultura jurídica durante o segundo Império.
Mas não foi só no Conselho de Estado que a ausência de legislação acerca do casamento dos não católicos e dos casamentos mistos seria sentida. No ano de 1860 ganhou repercussão com uma discussão teórica entre Teixeira de Freitas, autor do Esboço de Código Civil, e o jurista Húngaro, radicado no Brasil, Carlos Kornis Totvárad. Os debates entre os dois ganharam as páginas do Diário Mercantil dos dias 8, 10 e 11 de agosto e do Diário do Rio de Janeiro dos dias 9 e 10 de agosto[13].
Após obter notoriedade por sua Consolidação das Leis Civis, elaborada entre 1855 e 1858, Freitas foi contratado em 1859 para a elaboração de um Código Civil. Em seu projeto, por ele chamado de Esboço, ao regular o casamento, estabeleceu três diferentes formas de celebração: na Igreja Católica, quando celebrado entre católicos; a celebração mediante a autorização da Igreja Católica, para os casamentos mistos, quando os consortes se submeterem aos seus ritos; e a celebração com observância das disposições prescritas na Lei para casamentos mistos e quando ambos os consortes não professassem a religião católica.
Não foram as críticas feitas por Totvárad, no sentido de que o projeto de Freitas privilegiaria a posição da Igreja Católica em detrimento das demais religiões e também possibilitaria casos de bigamia, uma vez que a mesma pessoa poderia casar perante a Igreja e o Estado, que impediram a tramitação do Esboço, mas certamente contribuíram para o debate acerca do casamento e, principalmente, da liberdade religiosa e da conveniência da manutenção da religião católica pelo Estado brasileiro na segunda metade do século XIX..