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O regime de aquisição de imóveis rurais por empresas brasileiras e estrangeiras: uma análise do Parecer CGU/AGU nº 01/2008

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As empresas brasileiras com capital estrangeiro devem ser equiparadas às empresas brasileiras (com capital nacional), pois ambas são constituídas, submetidas e influenciadas pelas leis brasileiras, não havendo motivo relevante para distingui-las.

Introdução:

O acesso à propriedade é um direito constitucionalmente previsto, em que se assegura a todos, desde que respeitados determinados termos e limites positivados, a possibilidade de ser proprietário de determinado bem disponível. Portanto, os bens de consumo podem ser objeto de negócios jurídicos, desde que obedeçam aos ditames legais. Assim:

"Os direitos de propriedade surgem no instante em que os recursos se tornam escassos. Desde os primórdios, o indivíduo sempre procurou satisfazer as suas necessidades vitais por intermédio da apropriação de bens. Inicialmente, era a busca por bens de consumo imediato; com o tempo, o domínio de coisas móveis, até perfazer-se a noção de propriedade, progressivamente complexa e plural. O verbo ter marca indelevelmente o direito subjetivo de propriedade, sendo inerente a qualquer ser humano o anseio pela segurança propiciada pela aquisição de bens"[1].

O título de proprietário deveria assegurar a seu titular a possibilidade de utilizar de seu bem sem a interferência prejudicial de terceiros que se declarassem pretensos proprietários, e caberia ao Estado o dever de fazer prevalecer a segurança jurídica e a manutenção da paz social.

Posteriormente, o Estado passou a ter interesse em regulamentar a propriedade privada de modo a torná-la útil, não só para seu titular, mas para toda sociedade, neste quadro, deveria o proprietário adequá-la aos contornos traçados pelo Poder Público.

Importava ao Estado possuir o controle dos imóveis que se encontravam em poder de particulares, assim, através do registro imobiliário, poderia certificar-se da titularidade e da qualidade das propriedades, de modo a proibir que os titulares de direitos reais pudessem se utilizar de suas prerrogativas em prejuízo de terceiros.

Neste contexto, foi criado, inicialmente por intermédio da Lei nº 601, de 18/09/1850 e seu Regulamento 1.318, de 30/01/1854, o Registro Imobiliário do Brasil, quando a posse passou a ser reconhecida perante o Vigário da Igreja Católica. Em seguida, foram sendo editadas progressivas leis para regular o tema, que teve suas características modificadas no decorrer do tempo, culminando com a edição da Lei nº 6.015 de 31/12/1973, texto normativo que regula hodiernamente o registro de imóveis.

Possuindo o Estado o controle dos imóveis localizados dentro do território nacional, passou a ter uma maior margem de ação no que tange à implementação de políticas públicas, de forma a impor ao proprietário a adequação de seu imóvel à destinação que entendesse apropriada, que posteriormente ficou conhecida como a função social da propriedade, que, nas palavras de Maria Helena Diniz, assim caracteriza-se:

"Função econômico-social da propriedade. Há limitação ao direito de propriedade com o escopo de coibir abusos e impedir que seja exercido, acarretando prejuízo ao bem-estar social. Com isso se possibilita o desempenho da função econômico-social da propriedade, preconizada constitucionalmente, criando condições para que ela seja economicamente útil e produtiva, atendendo ao desenvolvimento econômico e aos reclamos da justiça social. O direito de propriedade deve, ao ser exercido, conjugar os interesses do proprietário, da sociedade e do Estado, afastando o individualismo e o uso abusivo do domínio. Dever-se-á, então, preservar, observando-se normas especiais, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico, o patrimônio histórico e artístico e evitar quaisquer tipos de poluição"[2].

De toda sorte, também a qualidade do titular da propriedade imóvel passou a ter significativa importância para o Estado brasileiro, principalmente a partir do período da ditadura militar, diante da necessidade de um controle quantitativo e qualitativo dos imóveis que se encontravam nas mãos de brasileiros e estrangeiros, de modo a assegurar àqueles a maioria das terras produtivas, em prol da soberania nacional.

Partia-se da premissa de que, caso uma grande quantidade de imóveis se encontrassem em poder de pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, o Estado brasileiro deixaria de ter o pleno controle da destinação de suas terras, permitindo, desta forma, que terceiros tirassem proveitos de nosso bem mais precioso, exportando para seus países de origem nossas riquezas. Estaríamos abdicando, portanto, de parte de nossa soberania.

Neste contexto histórico passou a ser vislumbrada a necessidade de regulamentação da aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, culminando, no ano de 1971, com a publicação da lei que passou a regulamentar a matéria, qual seja, a Lei nº 5.709, que dispõe sobre a aquisição de imóvel rural por estrangeiro residente no país, ou pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil.

Ocorre que a citada lei, após o advento da Constituição Federal de 1988 ("CF/88"), sofreu restrição quanto à sua aplicabilidade, já que, conforme entendimento predominante, corroborado pelos Pareceres GQ-22, de 1994 e GQ-181, de 1998, ambos de titularidade da Advocacia Geral da União ("AGU"), não teve as disposições do seu §1º do art. 1º recepcionadas pela atual Carta Magna.

Posteriormente, no ano de 2010, a AGU publicou novo Parecer, o CGU/AGU nº 01/2008, que, contrariando entendimento prevalecente sobre matéria, entendeu pela recepção total da Lei 5.079 pela CF/88, abalando, por conseguinte, a situação jurídica consolidada no tempo acerca da aquisição de imóveis rurais por empresas estrangeiras, e empresas brasileiras com maioria do capital estrangeiro e/ou controlada por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras (que no decorrer do trabalho, passará a ser denominada "Empresa Brasileira com Capital Estrangeiro"), em detrimento da certeza e segurança jurídica.

Assim, pretendemos fazer uma breve digressão histórica sobre a regulamentação da aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, a partir da entrada em vigor da Lei nº 5.709 até a publicação do Parecer CGU/AGU nº 01/2008, analisando os institutos e tecendo comentários e críticas, quando pertinente, para, posteriormente, concluirmos com a análise do Projeto de Lei nº 2.289/2007, em trâmite no Congresso Nacional, que tende a por fim às dúvidas e controvérsias sobre o tema.


Capítulo I:

Regime Jurídico de Aquisição de Imóveis por Estrangeiros

Antes do ano de 1971, mal haviam restrições para aquisição de imóveis rurais por pessoa física ou jurídica estrangeira, tendo em vista que o tema somente começou a ganhar relevância a partir do momento em que se vislumbrou a entrada maciça de empresas estrangeiras em território nacional.

Com o início do período ditatorial, o governo brasileiro decidiu diminuir ao máximo a interferência externa em território nacional, de modo a incentivar a economia interna, rechaçando as iniciativas de empresas multinacionais em aqui se instalar.

Esta postura tinha como sustentação a manutenção da soberania nacional e o incentivo ao mercado interno, partindo da concepção que os estrangeiros somente queriam apropriar-se de nossas terras e exportar o lucro da atividade para seus países de origem, nada contribuindo para o crescimento do PIB nacional.

Neste contexto, foi editada a Lei nº 5.709 de 07 de outubro de 1971, de cunho protecionista, que regula a aquisição de imóveis rurais por pessoa física estrangeira residente no país ou pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil, ainda em vigor, com o intento de regulamentar e, por conseguinte, restringir a instalação de estrangeiros em território nacional.

Assim, nas palavras de Lutero de Paiva Pereira:

"No caso de estrangeiros que pretendem adquirir imóvel rural no país, a análise da Lei 5.709/71 tendo por base os preceitos constitucionais específicos, notadamente os arts. 190 e 170 da Constituição Federal, as restrições e limitações que se lhes impõe o diploma legal ao lhes assegurar o direito de fazê-lo, tem a ver com a preservação do território nacional e da economia nacional, de modo que a força do capital externo não domine o setor do país e passe a laborar no interesse dos de fora e não dos que aqui residem com o status de cidadão brasileiro"[3].

1.1 - Lei nº 5.709 de 07 de Outubro de 1971

Com o início da vigência da citada lei, o contexto nacional foi significativamente alterado, inclusive em razão das novas formas de distinção de pessoas jurídicas trazidas por este diploma normativo, qual seja, a empresa estrangeira, a empresa brasileira e a Empresa Brasileira com Capital Estrangeiro, que também passa a sofrer restrições.

Importante frisar que na época, por força da Emenda Constitucional nº 1/1969, vigorava regra que possibilitava a existência de restrição à aquisição de imóveis rurais, tanto por brasileiros, como por estrangeiros, conforme previsto em seu art. 153, §34, ex vi:

"A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

§ 34. A lei disporá sobre a aquisição da propriedade rural por brasileiro e estrangeiro residente no país, assim como por pessoa natural ou jurídica, estabelecendo condições, restrições, limitações e demais exigências, para a defesa da integridade do território, a segurança do Estado e a justa distribuição da propriedade".

Nesse sentido, foram estabelecidas restrições às pessoas físicas e jurídicas estrangeiras, dispensando o mesmo tratamento para as Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro, acerca do limite da área do imóvel que poderia ser adquirida[4], tipo de atividade que poderia ser desenvolvida no imóvel[5], organização interna da empresa[6], forma de aquisição da propriedade[7], percentual da área que poderia ser adquirida por estrangeiros, levando em consideração a localização do imóvel[8], além de obrigar o Cartório de Registro de Imóveis a manter cadastro especial das aquisições de terras rurais por pessoas estrangeiras[9], e enviar trimestralmente, à Corregedoria da Justiça dos Estados a que estivessem subordinados e ao Ministério da Agricultura, relação das aquisições de áreas rurais por pessoas estrangeiras[10].

Importante mencionar que, embora desnecessário por se tratar de hipótese de nulidade absoluta, o art. 15 da citada lei prevê que a aquisição de imóvel rural que viole as prescrições previstas na lei será nula de pleno direito, devendo as partes retornar ao status quo ante, respondendo civil e penalmente o tabelião e o oficial de registro que participarem do negócio jurídico[11].

Contudo, uma das questões que mais chamou atenção foi a equiparação da Empresa Brasileira com Capital Estrangeiro à empresa eminentemente estrangeira, partindo do entendimento de que, apesar de constituída em território nacional e se submetendo às leis internas, teriam sua destinação controlada por estrangeiro, nos termos do seu art. §1º do art. 1º:

"Art. 1º. O estrangeiro residente no País e a pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil só poderão adquirir imóvel rural na forma prevista nesta Lei.

§1º. Fica, todavia, sujeita ao regime estabelecido por esta Lei a pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no Exterior".

Diante dessas restrições, assim ficou caracterizada a situação brasileira acerca da aquisição de imóveis rurais localizados em território nacional:

(a) ficaram impedidas de adquiri-los as pessoas físicas estrangeiras que não possuíssem residência local e as pessoas jurídicas estrangeiras que não possuíssem sede no Brasil;

(b) ficaram restringidas de adquiri-los, pois deveriam observar as limitações trazidas pela lei, as pessoas físicas estrangeiras com residência no Brasil, as empresas estrangeiras com sede local, autorizadas a funcionar em território brasileiro e as Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro, e, por fim,

(c) ficaram autorizadas a adquirir imóveis sem nenhuma restrição as empresas eminentemente brasileiras.

Com base neste entendimento, foi editada em 1993 a Lei nº 8.623, aplicando as citadas restrições também em caso de arrendamento de terras rurais.

1.2 - Constituição Federal de 05 de Outubro de 1988

Com o advento da CF/88, principalmente em função do seu art. 171, surgiu a discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da revogação tácita, em função da não recepção, do §1º do art. 1º da Lei 5.709/71, pelo fundamento de que aquele diploma normativo não diferenciava empresa brasileira de capital nacional ou estrangeiro, motivo pelo qual não poderia uma lei ordinária fazer tal distinção. Eis o teor do dispositivo:

"Art. 171. São consideradas:

I - empresa brasileira constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País;

II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades".

Também o art. 190 da CF/88 previa a possibilidade de regulamentação e limitação da aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira, não abarcando as Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro.

Nesse sentido, a Advocacia Geral da União elaborou o Parecer GQ-22 de 1994 que consubstancia o entendimento acima esposado, fazendo inclusive expressa menção a essa passagem histórica, nos seguintes termos:

"30. Por essa manifestação, o dispositivo em questão - §1º do art. 1º da Lei nº 5.709, de 1971 - não havia sido recepcionado em face da redação do art. 171, I, da CF que constitucionalizara o conceito de empresa brasileira e não admitia restrições à atuação de empresa brasileira, somente aquelas expressas no texto constitucional.

31. Essa situação, segundo o Parecer, era diversa da vivenciada no ordenamento constitucional anterior, em que não havia a constitucionalização do conceito de empresa brasileira e que admitia restrições à sua atuação com base na lei ordinária".

Houve, portanto, a abertura da economia em face da nova configuração de nacionalidade das pessoas jurídicas, estabelecida a partir da vigência da CF/88, pois passaram de três para dois os formatos de empresas existentes, quais sejam, empresas nacionais e empresas estrangeiras, deixando-se de dar relevância para a origem do capital da empresa nacional ou para a nacionalidade da pessoa física ou jurídica controladora.

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Esta situação perdurou até a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 6 de 1995 ("EC 06/95"), que revogou expressamente o art. 171 da CF/88, dispositivo que vedava a diferenciação de empresa brasileira.

Insta mencionar que, conforme mencionado, o §1º do art. 1º da Lei 5.709 não foi recepcionado pela CF/88, pois contrariava o disposto no art. 171 da CF/88, que, por ter sido expressamente revogado pela EC 06/95, gerou os seguintes impasses:

·  Tendo sido o art. 171 da CF/88 expressamente revogado, voltaria a viger o comando expresso no §1º do art. 1º da Lei 5.709? em outras palavras, haveria repristinação do citado dispositivo legal em função da revogação do comando revogador?

· Caso se entenda pela não repristinação, poderia outra lei infraconstitucional, a partir da revogação do art. 171, passar a restringir a aquisição de imóveis rurais por empresa estrangeira e empresa brasileira controlada por estrangeiros?

1.3 - Parecer nº GQ-181, de 1998

Para resolver a insegurança jurídica acarretada pela revogação do art. 171 da CF/88 pela EC 06/95, a Advocacia Geral da União se manifestou novamente, agora através do Parecer nº CQ-181, de 1998.

Ficou consignado neste parecer que a revogação do art. 171 da CF/88 não acarretaria a repristinação do §1º do art. 1º da Lei nº 5.709, pois não houve comando expresso nesse sentido, na medida em que, conforme disposto no §3º do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, somente poderá ocorrer repristinação quando houver expressa previsão legal, não existindo a repristinação tácita. Assim:

"13. A Emenda Constitucional nº 6, de 15 de agosto de 1995, em seu art. 3º, revogou o art. 171 da Constituição. Essa revogação, pura e simples, qualquer que seja a interpretação que se dê, para outros fins, ao dispositivo constitucional, não tem o condão de repristinar a norma que se entendera revogada. Desse modo, continua revogado o § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709/71, permanecendo inalterada a conclusão do referido Parecer n° AGU/LA-04/94".

Ademais, entendeu o Parecer que, com a revogação do art. 171, e, por conseguinte, a vedação à diferenciação de empresa brasileira quanto a origem de seu capital, poderia ser criada nova lei que impusesse restrições às Empresas Brasileiras de Capital Estrangeiro. Nesse sentido:

"30. Assim, parece evidente que a EC n° 6/95 não constitui empecilho a que o legislador ordinário limite, no futuro, a aplicação de capital estrangeiro em determinadas atividades reputadas estratégicas para o País, com fundamento na soberania, na independência ou no interesse nacionais, estabelecendo, por exemplo, que em determinada atividade o capital estrangeiro fique limitado a determinado percentual do capital social ou do capital com direito a voto, ou que se submeta a determinadas exigências, ressalvados, quando cabível, casos de reciprocidade nos países de origem".

O Parecer AGU GQ-181/1998 foi aprovado pelo Presidente da República e publicado na imprensa oficial, passando a vincular toda Administração Pública Federal, nos termos dos arts. 40 e 41 da Lei Complementar nº 173/1993 (Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União).

A partir de então, consolidada a situação jurídica da aquisição de imóveis rurais por empresas brasileiras e estrangeiras, houve um aumento significativo do número de aquisições de imóveis rurais por Empresas Brasileiras de Capital Estrangeiro que, conforme entendimento normativo, se equiparariam às empresas brasileiras.

Apesar do desenvolvimento nacional acarretado pela abertura do mercado interno, aumentando significativamente a quantidade de empregos formais, a arrecadação tributária e a infraestrutura local, determinadas preocupações, tais como a produção de alimentos, o controle territorial e a segurança jurídica fizeram com que a AGU, em agosto de 2010, emitisse o Parecer AGU LA nº 1/2010, detalhado a seguir.


Capítulo II:

Parecer AGU LA nº 01/2010

O Parecer AGU LA nº 01/2010 ("Parecer") modificou diametralmente o entendimento que se partilhava acerca da aquisição de imóveis rurais por empresas estrangeiras e brasileiras, contrariando os dois pareceres anteriormente elaborados pela mesma Advocacia Geral da União.

Pretendemos fazer uma análise detida, através de uma visão critica, deste dispositivo regulamentador, que, a nosso ver, não se sustenta por suas razões, motivo pelo qual merece ter seus fundamentos alterados em caráter de urgência, de forma a não gerar mais transtornos, insegurança e injustiças.

Partiu-se da premissa que a aquisição de imóveis rurais por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, inclusive por Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro, causaria inúmeros prejuízos para o país, tais como:

"a) expansão da fronteira agrícola com o avanço do cultivo em áreas de proteção ambiental e em unidades de conservação;

b) valorização desarrazoada do preço da terra e incidência da especulação imobiliária gerando aumento do custo do processo desapropriação voltada para a reforma agrária, bem como a redução do estoque de terras disponíveis para esse fim;

c) crescimento da venda ilegal de terras públicas;

d) utilização de recursos oriundos da lavagem de dinheiro, do tráfico de drogas e da prostituição na aquisição dessas terras;

e) aumento da grilagem de terras;

f) proliferação de "laranjas" na aquisição dessas terras;

g) incremento dos números referentes à biopirataria na Região Amazônica;

h) ampliação, sem a devida regulação, da produção de etanol e biodiesel; e

i) aquisição de terras em faixa de fronteira pondo em risco a segurança nacional".

Contudo, nenhuma das afirmações acima merece prosperar, tendo em vista que não são decorrentes da aquisição de imóvel rural por empresa estrangeira ou Empresa Brasileira com Capital Estrangeiro, pois, como bem salientou o titular do 2º Tabelionato de Notas e 1º de Protesto de Títulos da Comarca da Capital de Florianópolis, Sr. Paulo Luís Quintela de Almeida[12], são problemas decorrentes da falta de fiscalização, inaplicabilidade das leis vigentes ou simples decorrência do mercado, vejamos:

Quanto ao avanço em áreas ambientalmente protegidas, trata-se de atividade que pode ser exercida tanto por brasileiros quanto por estrangeiros, pois prepondera uma insuficiência na fiscalização ambiental, pouco importando a titularidade da propriedade.

 Com relação à valorização dos imóveis rurais, estamos diante de um fenômeno absolutamente natural em um ambiente capitalista, pois é de se reconhecer que a entrada maciça de capital para determinado setor, no caso, o imobiliário, tende a aumentar seu preço. Nada mais nada menos que a lei da oferta e da demanda.

Deve-se, contudo, rechaçar a simples especulação imobiliária, fenômeno diverso, na qual não há atendimento da função social da propriedade, e deve ser efetivado através da fiscalização, independente da titularidade dos imóveis.

O argumento do aumento de vendas ilegais é inadequado e contraditório, pois venda ilegal caracteriza-se como a não formalizada por escritura pública e sem observar os requisitos legais. Ora, difícil imaginar no que a maior exigência de documentos para a alienação colaborará para a diminuição de vendas ilegais. Na verdade, trata-se do efeito oposto, já que o excesso de exigências, tais como documentos, certidões e autorizações impostas que impulsionarão a venda ilegal e a grilagem de terras.

Da mesma sorte, não parece haver nexo de causalidade entre o maior controle nas aquisições e a redução da utilização de recursos oriundos da lavagem de dinheiro, do tráfico de drogas e da prostituição para o pagamento dos preços das terras.

Por fim, quanto à utilização de "laranjas", é de se concluir que o maior rigor para aquisição de imóveis rurais estimulará a utilização de "laranjas" para aquisições que, de outra forma, poderiam ser feitas pelo adquirente de fato.

Quanto ao argumento da perda da soberania em função da aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, cumpre ressaltar que, nos dias atuais, a noção de soberania não se baseia exclusivamente na ausência do controle de estrangeiros sobre o Estado nacional, mas sim, dentre outras hipóteses, na possibilidade de atuação no cenário nacional e internacional de forma autônoma, sem intervenção de terceiros, sempre respeitando, no âmbito interno, as disposições normativas que regulam as instituições nacionais, e, no âmbito externo, os tratados ou convenções internacionais, costumes, jurisprudência, princípios gerais do direito, doutrina e equidade.[13]

Apesar do exposto, a preocupação com a ocupação de estrangeiros em terras brasileiras não se sustenta se observarmos a situação concreta no país, pois, conforme divulgação do INCRA, a quantidade de terras em mãos de estrangeiros (incluindo Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro) perfaz o total de 34.371 imóveis rurais, abrangendo 4.348.822 hectares de terras, o equivalente a 0,51% do território nacional[14].

Os dados apresentados mostram que a questão está longe de representar uma ameaça à soberania nacional, nos termos previstos no Parecer. No entanto, a título de comparação, as terras indígenas ocupam 12,6% do território nacional.

Assim, partindo de premissas equivocadas, e contrariando o posicionamento vigorante, a AGU concluiu pela recepção do §1º do art. 1º da Lei 5.709/71 pela CF/88, em sua redação originária.

Faz-se necessário uma análise dos seus principais fundamentos:

2.1 - Autorização Constitucional para Imposição de Restrições Genéricas e Específicas às Empresas Brasileiras e Estrangeiras

Primeiramente, asseverou que o §1º do art. 171 da CF/88 admitiria a imposição de restrições genéricas às empresas brasileiras, pois, ao privilegiar as empresas brasileiras com capital nacional, para atuarem em atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do país, estaria, a contratio sensu, restringindo as demais.

 No mais, observa que também existem no texto constitucional determinadas restrições setoriais específicas e expressas, no ramo da saúde, comunicações, na pesquisa e lavra de recursos minerais, conforme trecho transcrito abaixo:

"76. Em primeiro lugar, no caso de a lei ordinária considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico do país, somente estará autorizada a nele atuar a empresa brasileira de capital nacional.

77. Essa norma já encerra evidente restrição genérica às empresas brasileiras (art. 171, I da CF). Nesses setores estratégicos do país, definidos em lei ordinária, somente empresas brasileiras de capital nacional poderiam atuar.

78. Além das exigências postas no inciso II do caput do art. 171 quanto ao controle efetivo da empresa, por força do § 1º, inciso II, alínea "a" do art. 171, as empresas brasileiras de capital nacional que atuassem nos setores estratégicos definidos em lei ordinária teriam ainda que adimplir a exigência de estender o controle efetivo de que trata o inciso II do caput às atividades tecnológicas da empresa".

No mesmo sentido:

"97. (...) a evidência de que o texto constitucional, de 1988, admitia, sim, restrições genéricas às empresas brasileiras com sede e administração no país, alem das restrições setoriais específicas e expressas, na saúde, nas comunicações, na pesquisa e lavra de recursos minerais.

98. As restrições, como visto, objetivavam proteger setores imprescindíveis ao desenvolvimento tecnológico nacional.

99. A interpretação teleológica do texto constitucional leva à necessária conclusão que, se o objetivo era restringir a atuação das empresas brasileiras não controladas por pessoas físicas domiciliadas e residentes no país ou por entidades de direito público interno em setores estratégicos não determinados, com muito mais razão há de se entender como válidas restrições postas na legislação infraconstitucional às empresas brasileiras controladas por estrangeiros não residentes ou por pessoas jurídicas sediadas no exterior".

Portanto, entendeu que além das empresas brasileiras, as Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro, que, ao contrário daquelas, seriam efetivamente controladas por estrangeiros, deveriam sofrer as imposições restritivas legais, conforme disposição abaixo:

"92. Essas empresas, a despeito de constituídas sob as leis brasileiras e com sede e administração no país, não possuíam o controle efetivo permanente da titularidade direta ou indireta de pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas e residentes no país ou de entidades de direito público interno.

93. Lembre-se que o controle efetivo da empresa, consoante a parte final do art. 171, em sua redação original, era - a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades".

Para enfrentarmos essa questão, faz-se necessário a análise do citado dispositivo constitucional:

"Art. 171 - . São consideradas:

I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País;

II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades.

§ 1º - A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional:

I - conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País;

II - estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos:

a) a exigência de que o controle referido no inciso II do "caput" se estenda às atividades tecnológicas da empresa, assim entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia;

b) percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito público interno.

§ 2º - Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional".

Como se pode perceber a partir de uma simples leitura, o intento do legislador ordinário, ao contrário do mencionado no Parecer, foi o de privilegiar as empresas brasileiras de capital nacional na atuação em determinados ramos de atividade, e não de restringir as demais, nos mesmos moldes que a Lei Complementar nº 123 de 2006 privilegia as microempresas e empresas de pequeno porte em determinadas situações.

Diante da leitura do citado artigo, mais especificamente de seu §2º, não há como divergir que a regra objetivava a proteção e o resguardo do setor de tecnologia nacional, facultando à lei estabelecer, em relação a empresa brasileira de capital nacional, a exigência de que o controle fosse efetivo por brasileiros. Não há como se extrair que são admissíveis restrições às Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro.

Contudo, para apartarmos de vez qualquer insegurança, basta verificarmos os termos da Exposição de Motivos nº 37/1995, da Proposta de Emenda Constitucional que veio a ser convertida na EC 06/95, que culminou com a revogação do art. 171 da CF/88, que, ao contrário do mencionado no Parecer, não teve por intenção abrir as portas para que a lei ordinária pudesse restringir a atuação de empresas estrangeiras e Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro, mas, ao revés, eliminar a distinção de empresas quanto à origem de seu capital. Assim:

"2. A proposta tenciona eliminar a distinção entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional e o tratamento preferencial concedido a esta última. Para tanto, firma-se conceito da empresa brasileira como aquela constituída sob as leis brasileiras e com sede e administração no País.

3. A discriminação ao capital estrangeiro perdeu sentido no contexto de eliminação das reservas de mercado, maior interrelação entre as economias e necessidades de atrair capitais estrangeiros para complementar a poupança interna. Com relação ao tratamento preferencial nas aquisições de bens e serviços por parte do Poder Público, a proposta corrige imperfeição do texto constitucional, passando a favorecer os produtos produzidos e serviços prestados no país, ao invés de empresas classificadas segundo a origem do capital. Com isso pretende-se restabelecer o importante instrumento de compra do Estado para estimular a produção, emprego e renda no país. É digno de nota que a proposta vincula o tratamento preferencial conferido aos produtos e serviços produzidos internamente à igualdade de condições (preços, qualidade, prazos, etc.) entre os concorrentes.

4. Uma vez eliminado o conceito de empresa brasileira de capital nacional, faz necessário proceder o ajuste do inciso IX do art. 170, conforme prevê a Emenda apresentada, que mantém, entretanto, o tratamento favorecido a empresa de pequeno porte.

5. Note-se que as alterações propostas não impedem que legislação ordinária venha a conferir incentivos e benefícios especiais a setores considerados estratégicos, inexistindo qualquer vedação constitucional neste sentido".

Assim, resta expresso no item nº 5 que a legislação ordinária poderá conferir incentivos e benefícios especiais a setores considerados estratégicos. Evidente, portanto, que a redação original apenas permitia o favorecimento de empresas de capital nacional, sem de nenhuma maneira permitir restrições a Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro.

2.2 - Da Interpretação Teleológica do Disposto no Art. 190 e no Art. 172 da CF/88

Prevê o artigo 190 da CF/88 que "A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional".

Entendeu a AGU que, apesar de o citado artigo restringir as hipóteses de regulamentação e limitação de aquisição e arrendamento à pessoa física ou jurídica estrangeira, sem mencionar a empresa brasileira, nem distinguir esta quanto a origem de seu capital e/ou controle acionário, deveria este preceito ser interpretado teleologicamente, no sentido de abranger também as Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro.

Sustentou que o intento do constituinte originário seria limitar a atuação de pessoa jurídica estrangeira em solo nacional, devendo o mesmo entendimento se aplicar às Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro, pois seus destinos seriam definidos por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, já que seriam esses os verdadeiros responsáveis pela empresa.

A restrição teria amparo, ainda, no art. 172 da CF/88, que outorga à lei a disciplina dos investimentos de capital estrangeiro, os reinvestimentos e remessa de lucros, considerando a aquisição de imóvel rural um investimento de capital estrangeiro. Nesse sentido:

"107. Terá o constituinte originário objetivado limitar apenas a pessoa jurídica estrangeira, ou todas aquelas pessoas jurídicas cujo controle efetivo dos seus destinos esteja nas mãos de estrangeiros, especialmente dos estrangeiros não-residentes ou, no caso de pessoas jurídicas, aquelas não-sediadas?

108. O comando da norma tem o claro intuito de dotar o Estado brasileiro de mecanismos de controle sobre a apropriação por estrangeiros, diretamente, ou indiretamente, como na hipótese de pessoas jurídica cujo controle de fato e de direito, cujo poder de escolha dos dirigentes e fixação dos rumos esteja nas mãos de estrangeiros".

e,

"132. O art. 172 da CF, que não sofreu qualquer alteração em sua redação original, assevera que "A lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará remessa de lucros".

134. E qual é o conceito de investimentos de capital estrangeiro? A aquisição de imóveis rurais por estrangeiros pode ser considerada investimento de capital estrangeiro? E se tal aquisição for realizada por empresas brasileiras cujo controle acionário e decisório esteja nas mãos de estrangeiros não residentes ou de empresas estrangeiras não sediadas no Brasil?

136. Se o art. 172 da CF dispõe que lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, e se capital estrangeiro é aquele que pertence aos que residem no exterior, ou às empresas sediadas no exterior, ex vi da parte final do caput do art. 1º da Lei nº 4.131, de 1962, forçoso é concluir que o § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709, de 1971, disciplina, a bem do interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro realizados por empresa brasileira controlada por estrangeiros não residentes, no que concerne à aquisição ou arrendamento de imóveis rurais".

Primeiramente, não há como interpretar o art. 190 da CF/88 de forma extensiva, como pretendeu o Parecer, pois, como se trata de uma norma restritiva (já que delega à lei a possibilidade de regulação e limitação da aquisição ou o arrendamento de propriedade rural), deve ser interpretada restritivamente.

Caso pretendesse a CF/88 abranger, no citado artigo, também as Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro, teria as mencionado expressamente, o que pode ser feito por procedimento legislativo, através de uma Emenda Constitucional.

Além disso, o pressuposto utilizado pelo parecerista, de que a CF/88 autoriza a distinção e, em especial, a restrição das Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro, quando comparadas com as empresas brasileiras, não condiz com a realidade, motivo pelo qual todo o Parecer é viciado, pois as premissas que foram utilizadas para chegar à conclusão são equivocadas.

Entendemos que, realmente, a CF/88 restringe as empresas estrangeiras a atuarem em território nacional, contudo, essa restrição decorre do fato de que esta sociedade é constituída e organizada em conformidade com a legislação do país de origem, onde mantém sua sede administrativa.

Nesse sentido, dentre outras causas, por não possuir um controle detido acerca deste tipo de pessoa jurídica, já que o governo brasileiro não possui ingerência na sua criação (que deve observar apenas as normas do país de origem), e por não possuírem sede local (portanto, mantendo seus dirigentes e responsáveis legais em território estrangeiro), estabelece certas restrições para que este tipo de sociedade venha atuar em território nacional.

Quanto às empresas brasileiras, nas quais se incluem as Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro, são constituídas em território nacional, respeitando as leis internas, realizando o pagamento de custas que se reverterão para Estado brasileiro, e mantendo sua sede em território nacional, respondendo internamente pelas obrigações assumidas.

Ora! Não há como pretender, através de uma interpretação que mais parece querer "criar" uma norma, aumentar seu conteúdo, do que realmente tentar entender o sentido real do preceito jurídico, albergar dois tipos de empresas completamente distintos em um comando constitucional restritivo.

 No mais, menciona o Parecer que o entendimento esposado acerca da "interpretação teleológica" do art. 190 é ratificado pelo previsto no art. 172 da CF/88, que outorga à lei a disciplina, com base no interesse nacional, dos investimentos de capital estrangeiro, e o incentivo aos reinvestimentos e regulação da remessa de lucros.

Ocorre que o art. 172 da CF/88, ao contrário, confirma a inadequação de sua linha de pensamento. Quando a CF/88 outorga à lei a disciplina do investimento de capital estrangeiro, está, como mencionado, delimitando o quadro jurídico da atuação da empresa estrangeira em território nacional. Adicionalmente, faz-se necessário a análise do art. 1º, caput, da lei 4.131/72, que disciplina a aplicação do capital estrangeiro e as remessas de valores para o exterior:

 "Art. 1º Consideram-se capitais estrangeiros, para os efeitos desta lei, os bens, máquinas e equipamentos, entrados no Brasil sem dispêndio inicial de divisas, destinados à produção de bens ou serviços, bem como os recursos financeiros ou monetários, introduzidos no país, para aplicação em atividades econômicas desde que, em ambas as hipóteses, pertençam a pessoas físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou com sede no exterior".

Nesse sentido, somente é considerado capital estrangeiro aquele introduzido no país para aplicação em atividade econômica, de titularidade de pessoa natural ou jurídica residente ou com sede no exterior.

Uma vez investido no Brasil, por pessoa física ou jurídica aqui estabelecida, como ocorre nas Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro, esse capital perde a característica de "capital estrangeiro", motivo pelo qual o art. 2º dessa mesma lei prevê a isonomia com o capital nacional:

"Art. 2º Ao capital estrangeiro que se investir no País, será dispensado tratamento jurídico idêntico ao concedido ao capital nacional em igualdade de condições, sendo vedadas quaisquer discriminações não previstas na presente lei".

Portanto, não há fundamento no art. 172 para limitação às Empresas Brasileiras com Capital Estrangeiro para adquirir imóveis rurais em território nacional, uma vez que a aquisição não é feita pelo estrangeiro controlador (neste caso, com uso de capital estrangeiro), mas sim pela empresa brasileira, fazendo uso de recursos já nacionalizados (capital nacional).

Assim, pode-se demonstrar que os principais argumentos utilizados pela AGU não devem se sustentar. Mais parece que, no intuito de modificar o cenário atual, por motivos de natureza política, este órgão tenta construir uma argumentação contra legem, mas que, ao pretender realizar um "bem maior", estaria excepcionalmente autorizado para tanto.

Nesse sentido, a AGU, ratificada pelo Poder Executivo, pula etapas no sentido de construir regras para nortear a matéria. Como todos sabemos, o procedimento correto para regular um tema socialmente relevante deve ser feito através de lei, após a tramitação no Congresso Nacional, pois estariam, no caso, os Deputados Federais e os Senadores representando a sociedade brasileira, que soberanamente estaria exercendo seu Poder, constitucionalmente atribuído, de editar normas gerais e abstratas.

Qualquer parecer jurídico deve se prestar à auxiliar na correta aplicação da lei no caso concreto, ou para interpretá-la no sentido de torná-la eficaz ou aplicável. Não pode, contudo, criar norma, pois esta é uma competência preponderante do Poder Legislativo, que, para tanto, deve obedecer a um procedimento próprio, em que se respeita o contraditório, pois tentam conciliar, na medida do possível, todas as opiniões em torno da matéria.

Ressalvas a parte, conclui o parecer no seguinte sentido:

"273. Por todo o exposto, divirjo da NOTA Nº AGU/GM 24/2007, e sustento:

a) que o § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709, de 1971, foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, seja em sua redação originária, seja após a promulgação da Emenda Constitucional nº 6, de 1995, por força do que dispunha o art. 171, § 1º, II e do que dispõem o art. 1º, I; art. 3º, II; art. 4º, I; art. 5º, caput; art. 170, I e IX; art. 172 e art.190;

b) para que a equiparação de pessoa jurídica brasileira com pessoa jurídica estrangeira prevista no dispositivo legal citado no item anterior ocorra, a fim de que sejam estabelecidos limites e restrições à aquisição e ao arrendamento de imóveis rurais é necessário que:

i. o estrangeiro, pessoa física, seja não-residente ou a pessoa jurídica não possua sede no país;

ii. o estrangeiro, pessoa física ou jurídica, descrito no item anterior, participe, a qualquer título, de pessoa jurídica brasileira; e

iii. essa participação assegure a seus detentores o poder de conduzir as deliberações da assembléia geral, de eleger a maioria dos administradores da companhia e de dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.

c) que em face do entendimento contido nos itens anteriores, o Parecer nº GQ-181, de 1998, e o Parecer GQ-22, de 1994, merecem a revogação, devendo, para tanto, ser o presente Parecer submetido à aprovação do Exmº Sr. Presidente da República, após a aprovação de V. Exª, e, posteriormente, publicado no Diário Oficial da União para que, por força do art. 40 da Lei Complementar nº 73, de 1993, produza efeitos vinculantes para toda a administração pública federal;

d) que os efeitos do presente Parecer devem ser produzidos a partir de sua publicação no Diário Oficial da União, consoante o disposto no art. 2º, parágrafo único, inciso XIII da Lei nº 9.784, de 29.01.1999".

Este Parecer foi aprovado pelo Presidente da República e publicado em Diário Oficial, passando a vincular toda Administração Pública Federal e, de forma a torná-lo efetivo, o então Corregedor Nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, do Conselho Nacional de Justiça, proferiu decisão no sentido de recomendar aos Cartórios de Registro de Imóveis e Tabelionato de Notas a observar as disposições da Lei nº 5.709, conforme o entendimento esposado no Parecer da CGU/AGU nº 1/2008. Assim:

"(...) Ante o exposto, considerando as razões enunciadas pela Procuradoria da República e levando em conta a manifestação do Consultor-Geral devidamente aprovado pelo Advogado-Geral no âmbito da AGU tanto como atento às recomendações do Tribunal de Contas da União, esta Corregedoria Nacional de Justiça em face dos serviços judiciários auxiliares -- nomeadamente os serviços notariais e registrais -- deve recomendar fortemente a imediata adoção pelas Corregedorias locais ou regionais junto aos Tribunais respectivos que determinem aos Cartórios de Registro de Imóveis e Tabelionatos de Notas que façam observar rigorosamente as disposições da Lei nº 5.709 de 1971 quando se apresentarem ou tiverem de lavrar atos de aquisição de terras rurais por empresas brasileiras com participação majoritária de estrangeiros, pessoas físicas ou jurídicas.

Para o atendimento da orientação agora adotada, as Corregedorias locais promoverão em 60 dias a adaptação de suas normas a serem cumpridas pelos Oficiais de Registro, disciplinando também o oportuno envio pelos Cartórios de Registro de Imóveis da relação das aquisições já cadastradas anteriormente na forma da lei referida (...)".

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Sobre o autor
Victor Calegare Largura Queiroz

Advogado especializado em Direito Imobiliário. Graduado em Direito e pós-graduação em Direto Imobiliário pela PUC-Rio. Curso de MBA em Gestão Empresarial pela FGV-Rio. Mestrando pela Universidade do Minho, localizada em Braga-Portugal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Victor Calegare Largura. O regime de aquisição de imóveis rurais por empresas brasileiras e estrangeiras: uma análise do Parecer CGU/AGU nº 01/2008. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3484, 14 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23438. Acesso em: 24 nov. 2024.

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