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Anencefalia: acrescentando questões médicas a uma discussão jurídica

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26/01/2013 às 15:52
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3. O ABORTO

Questão essencial para esta discussão é o aborto. Isso porque uma grande parte da população que habitualmente vem discutindo o tema entende que a interrupção de gravidez de feto anencefálico é sinônimo do aborto. A ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 54, matéria deste trabalho, utiliza como legislação causadora de lesão os artigos 124, 126, caput, e 128 I e II do Código Penal, que tratam exatamente dessa tipificação penal.

Para se colocar em avaliação essa assertiva “a interrupção de gravidez de feto anencefálico é sinônimo do aborto”, faz-se mister a compreensão de alguns conceitos iniciais. Além disso, novamente, para situar esse estudo, registre-se que a petição inicial da ADPF 54 parte da premissa de que a interrupção de gravidez de feto anencefálico não é aborto. Tanto é assim, que a sua primeira colocação na exordial é a seguinte:

I. Nota Prévia

Antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico não é aborto.

Contudo, para uma avaliação completa do tema, é feita abaixo uma ponderação doutrinária da matéria.

3.1. A origem

A questão do chamado aborto não é um tema novo a ser discutido. Ao inverso, desde o Código de Hamurabi, segundo estudos da medicina legal, já havia sua previsão como conduta típica. Conseqüentemente, existiam discussões sobre se deveria ser criminalizada tal conduta. Para ilustrar essa afirmação, observe-se que o Código de Hamurabi (2235-2242 A.C.) já trazia a seguinte referência ao aborto:

Art 209 – Se alguém bate numa mulher livre e a faz abortar, pagará pelo feto 10 sicles de prata.

Art 210 – Se esta mulher morre, matar-se-á o filho do agressor.

Art 211 – Se é uma mulher pobre, que, em conseqüência das pancadas aborta, ele pagará 5 sicles de prata.

Art 212 – Se esta mulher morre pagará meia mina de prata.

Art 213 – Se ele bate numa serva e a faz abortar, pagará 2 sicles de prata.44

O aborto não se resume, na história antiga, ao mencionado Código. Em outros casos, como o dos assírios, a pena para o aborto era ainda mais grave, com a determinação de que a mulher, ao provocar o aborto em si mesma, teria como pena a empalação, sendo também privada da sepultura.

Mas, nem sempre o aborto foi disciplinado como crime. Existem maneiras de abordar o tema de contornos diversos na história. Nesse diapasão, ressalte-se que, para os gregos Sólon e Licurgo, o aborto seria crime. Todavia, na concepção de Platão e Aristóteles seria viável e pertinente em casos especiais.45

Com o surgimento do cristianismo, em regra, não mais se aceitou o aborto. Tanto é assim que, no Brasil, o Código Imperial de 1830 já conjeturava o aborto como crime contra a segurança da pessoa e da vida. Mas, não trazia ainda a conduta típica do auto-aborto. Nas legislações seguintes permaneceu presente a disposição como crime e foi inserido também o auto-aborto. Contudo, com o passar do tempo, teve sua aplicação de certa maneira mitigada.

Não só no Brasil houve essa modificação paulatina de conceitos. De maneira mais avançada, atualmente, países como a Suécia, Dinamarca, Finlândia, Inglaterra, França, Alemanha, Áustria, Hungria, Japão, estados Unidos e outros já permitem o aborto, quando provocado, até o terceiro ou quarto mês de gestação.46

Ver-se-á, em seguida, como o Código Penal vigente, datado de 1940, prevê o aborto e quais as hipóteses em que se tornou tal prática permitida.

3.2. O conceito

Antes de apontar os permissivos legais, ventilam-se abaixo os conceitos de aborto utilizados pelos estudiosos na área de direito penal e de medicina legal. Esses aspectos são pertinentes porque o Código Penal não define o aborto. Utiliza-se de uma norma penal em branco. Trouxe apenas a expressão “provocar aborto” – deixando uma lacuna a ser preenchida pela doutrina e jurisprudência.

Genival França leciona ser o aborto a destruição de uma vida intra-uterina até os instantes que precedem o parto. Para ele, o aborto criminoso é a morte dolosa do ovo.47 Para outro professor, o critério de aferir se ocorreu ou não o aborto gira em torno da chamada morte fetal. Segundo suas próprias palavras, “o aborto é a interrupção da gravidez por morte fetal, em qualquer fase do ciclo gravidício”.48 Para se compreender melhor o que é a morte fetal, Odon Ramos divide a gestação em três fases diversas: “precoce (até a 20ª semana), intermediária (entre a 20ª semana e a 28ª semana) e tardia, depois desse prazo. A morte fetal de qualquer origem é considerada aborto”.49 De acordo com a sua visão, em qualquer dessas fases já resta configurada a conduta típica do aborto.

Em consonância com Delton Croce, “abortamento é o ato de abortar. É o conjunto de meios e manobras empregados com o fito de interromper a gravidez”.50 Nesse conceito, note-se que o estado clínico do feto não é considerado como relevante.

Na área do direito penal, Damásio de Jesus explica: “Aborto é a interrupção da gravidez com conseqüente morte do feto (produto da concepção)”.51 Mirabete define como “a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semana a três meses) ou feto (após três meses), não implicando necessariamente expulsão”.52

Na maioria dos conceitos, basicamente são encontrados os seguintes requisitos: a) interrupção da gravidez e b) morte do feto, independente de ocorrer dentro ou fora do útero materno.

O primeiro dos requisitos, inegavelmente encontra-se inserido nas duas acepções do estudo aqui travado. Afinal, como disposto no próprio título do trabalho, o problema aqui discutido é a possibilidade ou não da interrupção de uma gravidez. Entretanto, a existência do segundo elemento, para alguns, necessário à configuração do aborto, é controvertida.

Em suma, cada conceito apresenta particularidades. Não há outra conclusão senão inexistir uma opinião pacífica sobre o tema. Dificultando um único arremate, saliente-se que a tipificação penal não traz um conceito expresso do que seria o aborto. Existe apenas remissão à palavra, sem a apresentação de uma definição.

3.3. As divisões das hipóteses de aborto

Em regra a doutrina quando estuda esse tema termina por dividir os abortos em: a) espontâneo (natural) ou acidental; b) violento. Os primeiramente enumerados são aqueles atribuídos a causas mórbidas diversas. Normalmente são patologias. Já os acidentais referem-se a circunstâncias eventuais e fortuitas. Como exemplo cite-se o atropelamento ou queda da gestante.

Em relação ao violento, subdividem-se, quanto à tipificação penal, em: a) não puníveis; b) puníveis. No contexto dos abortos puníveis, ou melhor, tipificados no Código Penal, existe uma subdivisão para as seguintes conjecturas:

a) auto-aborto ou consentimento no aborto (art 124 do PC);

b) aborto sem consentimento da gestante (art 125 do CP);

c) aborto com o consentimento da gestante (art 126 do CP).

Para esse estudo, em virtude dos artigos citados na ADPF 54, dá-se enfoque às tipificações previstas nos artigos 124 e 126 do Código Penal. Pelo mesmo motivo, em seguida, elucida-se em que consistem as hipóteses de exclusão de ilicitude do aborto, presentes no artigo 128, Inciso I e II do Código Penal.

3.3.1. As tipificações do aborto no Código Penal

a)O auto-aborto ou consentimento no aborto

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de um a três anos.

A primeira conclusão a ser tirada da letra da lei é a especialidade da conduta. Apenas a gestante, de acordo com o tipo, pode cometer esse ilícito penal: o auto-aborto. No mesmo dispositivo, em seguida, está prevista a ação típica em que a atitude da gestante é apenas consentir que outrem realize o aborto na mesma. Essa previsão dá enfoque à decisão da gestante quanto ao aborto e sua punição. A pessoa que provoque o aborto, mesmo em razão da vontade da gestante, será punida pela tipificação prevista no artigo 126 do CP.

b) Aborto consensual.

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

Aqui está prevista a conduta de quem realiza as manobras abortivas. Na maioria das vezes, essa atuação é realizada de forma clandestina por médicos, enfermeiros e outros profissionais da área da saúde. Vê-se, desde já, uma das razões porque a ADPF 54 foi proposta pela Confederação Nacional de Trabalhadores na Saúde – CNTS.

Necessariamente, exige-se nessa hipótese o consentimento da gestante, seja expresso ou tácito. Trata-se de elemento essencial à configuração típica.

3.3.2. As hipóteses atípicas de aborto

Os chamados abortos não puníveis são aqueles previstos expressamente no Código Penal, como hipóteses atípicas. São duas: terapêutico/ necessário ou sentimental.

a) Terapêutico ou Necessário.

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Confere-se a esse ato licitude em razão de risco extremo à vida da gestante. É tratada como causa de excludente da criminalidade. Nessa hipótese há o confronto da vida da gestante com a vida do feto, escolhendo o legislador salvaguardar a vida da primeira.

Em verdade, é uma espécie de estado de necessidade, pois, exige-se a inexistência de outra maneira de salvar a vida da gestante. São imprescindíveis para esse tipo de aborto legal: a) o perigo atual e b) a certeza de que o desenvolvimento da gravidez pode gerar a morte da mãe.

A respeito dessa decisão de sacrificar um dos bens jurídicos em jogo, entende-se que “encontra guarida no estado de necessidade, quando para se salvar a mãe, cujo valor é mais relevante, sacrifica-se a vida do filho. É uma forma de proteger um bem maior, consagrado pelo fundamental valor sobre outras vidas”.53

Quanto às hipóteses, não há rol definido de patologias ou suposições de quando ocorre essa forma atípica de aborto. Em regra, são citadas como causas: cardiopatia, tuberculose, nefropatia, vômitos gravídicos, hemopatias e diabetes. Entretanto, com o desenvolvimento da medicina são raros os casos em que tais moléstias não possam ser tratadas sem gerar riscos ao feto e à mãe.

Mesmo assim, o triste descaso da saúde brasileira e a pobreza, além da falta de instrução de muitas gestantes ainda fazem surgir muitos casos, a despeito dos avanços modernos da área médica. Mirabete comenta que “num país como o Brasil, todavia, em que é elevado o nível de pobreza, precário o atendimento médico do Estado e inexistentes as condições de saúde e higiene, especialmente em lugares distantes, não é descabida a justificativa legal”.54

Apenas para encerrar esse tema, não se esqueça de que a gestante não precisa consentir essa forma de aborto. É conseqüência lógica, pois a previsão legal busca removê-la de uma situação de perigo. Ademais, nesses casos extremos, a gestante não poderia conceder sua anuência por um eventual estado de inconsciência, proveniente de possíveis complicações e dores do parto.

Outra prova da desnecessidade do consentimento é que, na hipótese do aborto sentimental, a lei requer expressamente a anuência. Logo, o silêncio do legislador na hipótese terapêutica redunda, necessariamente, na dispensa de tal anuência para essa modalidade abortiva.

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b) Sentimental

Decorre em verdade de uma causa histórica. Os anos seguintes à deflagração da Primeira Guerra Mundial trouxeram conseqüências danosas incontáveis, dentre as quais um grande número de estupros realizados por soldados inimigos, fato que marcou a época.

Desse problema, surgiu um movimento de alguns países da Europa que tiveram suas mulheres violentadas na I Guerra Mundial.55 A causa para essa reação foi o fato de as mulheres de diversos países, além de suportarem as dores da destruição de suas pátrias pela guerra, terminarem por carregar em seus ventres frutos repudiados desse conflito. Uma eterna tortura. “Nasceu, então, um movimento patriótico de repercussão em todo o mundo contra essa maternidade imposta pela violência, pois não era justo que aquelas mulheres trouxessem no ventre um fruto de um ato indesejado, lembrado para sempre como uma ignomínia e uma crueldade”.56

Em decorrência desse movimento global, chegou-se à conclusão de que, nos casos de estupro, deveria o aborto ser uma conduta legal. Proveniente dessa idéia, o Código Penal disciplinou:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:(...)

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante

ou, quando incapaz, de seu representante legal.

As seqüelas que seriam geradas na gestante ao ser obrigada a ter um filho de seu agressor são os fundamento para a legalidade. A criança terminaria sendo uma espécie de símbolo perpétuo da agressão sexual sofrida.

Nesse caso, está se salvaguardando também a sanidade psíquica da mãe e suas conseqüências múltiplas, como bem leciona Odon Ramos que “o fundamento é bilateral: o agente possivelmente é portador de perturbação ou desvio que deveria transmitir ao descendente e a vítima teria sofrido abalo emocional que lhe prejudicaria a saúde psíquica, além dos problemas referentes ao seu relacionamento com o filho”.57

As razões para tornar atípico esse aborto foram exatamente a dignidade da pessoa humana e a saúde da gestante (argumentos utilizados na ADPF 54). Ademais, pensou-se nas possíveis moléstias que poderiam advir do infrator. Sobre os efeitos de uma concepção de uma criança fruto de aborto:

O estupro é, em regra, obra de um anormal sexual, ébrio ou degenerado, cuja reprodução é altamente indesejável; a proibição do aborto nesses casos não atenderia às condições eugênicas. Como bem nota Manzini, VII, 536, seria inumano constranger uma mulher, que já sofreu o dano da violência carnal, a suportar também o da gravidez, mesmo porque a ordem jurídica não pode se opor à remoção das conseqüências imediatas e imanentes de um crime.58

Dessa feita, para essa hipótese é imprescindível o consentimento da gestante. Para alguns doutrinadores, faz-se mister também a obtenção de uma decisão judicial autorizando o procedimento. Contudo, essa exigência é discutível.

Conferindo deslinde ao tema, observe-se que uma relevante parte da doutrina tem admitido a analogia dessa hipótese para os casos de atentado violento ao pudor. Como fundamento, explica-se que a gestação proveniente desse ato sexual violento também traria como resultado a maternidade odiosa - a gestação de um filho proveniente do agressor. Logo, encontram-se presentes as mesmas razões para o permissivo legal no caso de estupro.

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Sobre a autora
Mariana Barbosa Cirne

Mestre em Direito, Estado e Constituição (UnB). Especialista em Direito Público (UnP) e em Processo Civil (IDP). Bacharela em Direito (UFPE). Procuradora Federal (AGU). Coordenadora do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência da República (PR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CIRNE, Mariana Barbosa. Anencefalia: acrescentando questões médicas a uma discussão jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3496, 26 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23524. Acesso em: 29 mar. 2024.

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