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Anencefalia: acrescentando questões médicas a uma discussão jurídica

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26/01/2013 às 15:52
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4. As duas posições sobre a possibilidade de interrupção de gravidez de feto anencefálico

4.1. Considerações preliminares

Apenas para não surgirem dúvidas, preliminarmente, é forçoso explicar que a seguir serão apresentados os argumentos, contrários e favoráveis, à interrupção de gravidez do feto anencéfalo. Essa colocação é importante para que o leitor não compreenda os fundamentos como contraditórios.

O que em verdade se pretende é apresentar as duas facetas do tema, buscando abarcar o assunto de maneira mais completa.

4.2. Argumentos contrários

4.2.1. A tipificação e a interpretação no direito penal

Um dos argumentos basilares, utilizado pelos adeptos dessa corrente, aborda a interpretação penal. Como fundamento, os doutrinadores filiados a esse entendimento utilizam o Princípio da Legalidade (nullum crimen sine lege) para chancelar uma espécie de inviabilidade da interpretação extensiva no ramo do direito penal. Conseqüentemente, e de igual modo, não aceitam, em sua maioria, a analogia.

Partindo do princípio constitucional positivado no artigo 5°, inciso XXXIX, de que “não há crime sem lei sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, taxam o direito penal como um ramo a ser aplicado de forma rígida. Através dessa máxima, concluem que o direito penal deve sempre ser interpretado de uma forma restrita, não se admitindo ampliações dos significados dos tipos penais. Em outras palavras, entendem que há vinculação “do poder punitivo estatal exclusivamente às rígidas imposições legais”.59

A respeito dessa concepção, Roque de Brito explica que “o que existe, distintamente, como sua característica fundamental, é a predominância maior da denominada interpretação restritiva da lei penal, devido à especial natureza e finalidade da norma jurídico-penal em virtude do princípio da legalidade que a domina”.60

Como motivo para essa rigidez, coloca-se em enfoque um dos requisitos do crime: a tipicidade. Segundo Noronha, “atuar tipicamente é agir de acordo com o tipo. Este é a descrição da conduta humana feita pela lei e correspondente ao crime”. 61

Ora, em havendo o delineamento de uma conduta humana como crime, necessariamente este deverá será claro e preciso. Exatamente dessa maneira é o Código Penal, explícito e direto. Ante essas características, não cabe a chamada interpretação, seja de que forma se pretenda aplicá-la. Deve-se repudiar com ênfase ainda maior a chamada interpretação progressiva.

Isso porque a hermenêutica terminaria por desvirtuar a aplicação do tipo penal. Sobre o tipo penal, Roque de Brito Alves, um dos adeptos de uma visão rigorosa, elucida que este “é, sempre, taxativo, específico, individualizador da conduta criminosa, sendo incabível a interpretação extensiva ou analógica para tal objetivo, por ser restrita, fechada, a norma penal incriminadora”.62

Outra explicação dada para justificar o rigor na aplicação da lei penal é a possibilidade dos aplicadores do direito desvirtuarem os preceitos legais. Parte-se da premissa de que o homem é falível, passível de paixões e erros. Logo, ao garantir uma abertura nos tipos penais, termina-se por admitir abusos em sua aplicação.

Esse raciocínio não é novo, tendo sido brilhantemente desenvolvido por Beccaria:

Não há nada mais perigoso do que o axioma comum, de que é preciso consultar o espírito das leis. Adotar esse axioma é quebrar todos os diques e abandonar as leis à torrente das opiniões.(...)

Cada homem tem a sua maneira de ver; e o mesmo homem, em épocas distintas, vê diversamente os mesmo objetos. O espírito de uma lei seria, pois, o resultado da boa ou da má lógica de um juiz, de uma digestão fácil ou penosa, da debilidade do acusado, da violência das paixões do magistrado, de suas relações com o ofendido, enfim, da reunião de todas as pequenas causas que modificam as aparências e transmutam a natureza dos objetos no espírito mutável do homem.63

O encurtamento do sentido atribuído à norma seria tanto no que tange à sua ampliação, quanto à sua redução, afinal, para a punição é preciso apenas a tipificação penal perfeita. Dessa concepção, entendem os defensores da interpretação restritiva que as normas dos artigos 124, 125 e 126 são expressas quanto às hipóteses em que se caracteriza o crime de aborto. Da mesma forma, o artigo 128 do Código Penal enumera taxativamente as condutas que não são tipificadas no ordenamento. Logo, não existe permissivo legal almejado pela ADPF 54.

Os permissivos legais do aborto são claros. Não existe uma terceira hipótese. O Tribunal Constitucional não pode criar um novo permissivo legal. Todos os casos fora da tipificação são puníveis. Nesse sentido:

À evidência que se a lei permite apenas nessas duas hipóteses o aborto provocado, qualquer outra modalidade caracteriza o aborto criminoso. Define-se criminoso, dessa forma, o aborto que se pratica fora desses dois exemplos legais, ainda que provocado por medico, in exemplis, aborto eugênico, econômico, estético, ou seja, a que título for.64

Frente à posição que restringe a interpretação, em suas formas plurais, não seria cabível, através da ADPF 54, realizar um trabalho de interpretação nos dispositivos penais. Ora, se é inviável interpretar a norma, e não há nenhuma previsão expressa no Código Penal excluindo a tipicidade, certamente, a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é aborto. A conduta a ser punida penalmente é expressa, direta e incontroversa, não admitindo, portanto, uma interpretação que alargue ou estenda os seus valores. Isso, ao final, resultaria em uma forma de burla ao próprio Sistema Penal.

4.2.2. A analogia no direito penal

A analogia consiste na “aplicação ao fato não regulado expressamente pela norma jurídica de um dispositivo que disciplina hipótese semelhante”.65 Segundo parte da doutrina, não incide tal regra no direito penal.

No tema em debate, a analogia é discutida em virtude do quadro médico do anencéfalo. A despeito de todas as explicações ventiladas no item 03 deste estudo, parte da doutrina não entende configurado o quadro da morte. Compreende-se a vida em um conceito amplo. O fato de haver gestação, por si só, já demonstraria existir vida no feto. Explica-se também que os critérios médicos não são pacíficos e não possuem o condão de modificar o tipo penal.

Os adeptos partem do princípio de que o anencéfalo não está morto. Está, como qualquer outro feto, vivo. Logo, o que se pretende através da ADPF 54 é realizar uma analogia entre o quadro do feto anencéfalo e o de um feto morto. Mas, segundo essa corrente, a aplicação da analogia é inviável.

A inaplicabilidade da analogia no direito penal era a linha de raciocínio traçada pela Itália. Neste sistema, no artigo 14 das disposições preliminares do Código Civil, estava previsto: “As leis penais e as que abrem exceção às regras gerais ou a outras leis, não se aplicam além dos casos e dos tempos prescritos”.66 Restringem os tipos penais, não aceitando conceitos externos. Para alguns autores, da mesma forma ocorre no Brasil. O Princípio da Reserva Legal proíbe a interpretação extensiva.

Contudo, uma relevante parte da doutrina, incluindo-se alguns autores rigorosos com a utilização dos métodos de interpretação, acha que a analogia seria possível, desde que “in bonam partem”. Mas, há sempre ressalva de que não se aplica quando uma norma legal “tenha caráter definitivo”.67 Mesmo dentro da analogia in bonam partem existem nuanças.

No caso das normas penais não incriminadoras, como o artigo 128 do Código Penal, respeitável doutrina garante que não cabe a analogia, afinal “suas regras devem permanecer estritamente limitadas aos casos em que o legislador entendeu prevê-los”.68 Mais uma vez se retoma a idéia antes esboçada de que o tipo penal do aborto e os seus permissivos são claros e incontroversos. Conseqüentemente, descabe aplicação analógica.

Sob esse prisma, ao não existir uma norma excluindo da tipificação o aborto [caso se entenda este como correspondente à interrupção de gravidez], o caso de feto anencéfalo enquadrar-se-ia perfeitamente no tipo penal. Não se pode, analogicamente, ampliar o sentido do artigo 128 do Código Penal. Da mesma forma, não existe norma semelhante aplicável a uma eventual lacuna. Não havendo omissão, inaplicável é a analogia.

Ainda. quanto à analogia, são impostas outras barreiras. Em verdade, no direito penal, não se pode admitir a sua utilização para criar um outro permissivo legal, não presente na lei. Da mesma forma descabe para suprir um equívoco presente na própria lei. Delmanto esclarece, sobre esse ponto, que “ao juiz que vai aplicar leis penais é proibido o emprego da analogia ou da interpretação extensiva para incriminar algum fato ou tornar mais severa sua punição. As eventuais falhas da lei incriminadora não podem ser preenchidas pelo juiz, pois é vedado a este complementar o trabalho do legislador”.69 Novamente se adentra na turbação de competências.

Retomando a analogia in bonam partem, registre-se que essa aplicação iria frontalmente de encontro com o direito do feto. Terminaria por condenar um inocente à morte através de uma forma de aplicação da lei, o que não admite o ordenamento brasileiro. Por todo o exposto, não haveria outra conclusão senão a inaplicabilidade da analogia no caso em tela.

4.2.3. O direito à vida

Para uma parte da doutrina, entre os direitos fundamentais da Carta de 1988, o mais importante e basilar, reconhecido internacionalmente, é o direito à vida. Como fundamento apontam que, no próprio caput do artigo 5º, em que são arrolados os direitos e garantias individuais, está expresso:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Bem se vê que o primeiro dos direitos chancelados foi, indiscutivelmente, a vida. Dessa feita, não cabe ofender esse princípio, sob qualquer fundamento. Trata-se de um princípio maior, caso confrontado com os direitos da mulher (dignidade humana, saúde, liberdade). “O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos”.70

Os outros direitos fundamentais não valeriam sem a presença da vida. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana como garantia anterior.71 Mais uma vez, repita-se: a vida está no centro de todos os direitos fundamentais. É o direito fundamental por excelência.

Como princípio maior, a sua acepção deve ser a mais ampla possível. A vida humana deve ser compreendida não apenas depois do nascimento, mas desde o momento da fecundação. “Com a formação do ovo, depois embrião e feto, começam o amparo, a proteção e as sanções da norma penal, pois daí em diante se reconhece naquele novo ser uma expectativa de vida humana, a qual a lei não pode ignorar”.72

Entendem que o feto anencéfalo não está morto. Ele possui vida, pois, nem sempre a anencefalia é total. O critério cefálico não pode ser percebido como absoluto. Outras questões como a respiração, circulação sangüínea, funcionamento de órgãos, são características da vida. A Resolução do Conselho Federal de Medicina não é norma. Não pode definir o que é vida ou morte.

Ademais, o ser humano não pode dispor de vida de outrem. Ora, se assim é “o feto é considerado como um ser humano”.73 Trata-se de um princípio absoluto. “Não existe nenhum homem, nem ciência alguma capaz de dispor incondicionalmente da vida de um ser propondo sua destruição baseando-se em justificativas pessoais ou doutrinárias, pois essa vida é inatingível e inalienável”.74

Cláudio Fontelles, o Procurador Geral da República na época em que foi proposta a ADPF 54, asseverou sua posição, aceitando como princípio universal ser favorável à vida. Ele explica: “Eu mantenho a minha linha: a supremacia da vida. O meu ponto de vista é que a única possibilidade de aborto é quando a mulher e o feto não podem conviver, e a medicina diz: “ou um ou outro”. Nessa hipótese sustento que o feto deve ser eliminado”.75

A anencefalia pode ser no máximo compreendida como uma espécie de deficiência. Logo, recorde-se que o ordenamento veda o aborto quando ocorre alguma deformidade no feto. Não se pode selecionar, como pretende a ADPF, quem viverá ou não por um defeito físico. “Isso não nos autoriza a retirar, de seres deficientes, o direito à vida. A vida de um deficiente necessita, antes de tudo, de proteção, e nunca de repressão”.76

4.2.4. A impossibilidade do Supremo Tribunal Federal agir como Legislador Positivo

No livro, o Espírito das Leis, Montesquieu desenvolveu melhor a idéia de Platão, consubstanciada em sua famosa tese de que o governo deveria se reger pelo princípio da divisão dos poderes (legislativo, executivo e judiciário). Cada um dos órgãos seria autônomo e independente entre si.

Adotando essa doutrina, o constituinte brasileiro, entre as primeiras disposições constitucionais, determinou expressamente a separação de poderes. Nesse sentido, disciplinou, no artigo 12 da Constituição Federal, que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Essa divisão é considerada como “essencial à caracterização do direito constitucional”.77 Em regra, as Constituições modernas aplicam esse princípio.

Trata-se de uma separação essencial para evitar o acúmulo de poder em uma só mão. É corolário da democracia. Parte-se da premissa de que “as várias funções devem ser separadas e atribuídas a um órgão ou grupo de órgãos também separado entre si”.78

Ocorre que, na maioria das Constituições, incluindo-se a brasileira, em sua aplicação, houve uma espécie de abrandamento dessa separação. Há, em verdade, a predominância de uma das funções. Mas, indiscutivelmente, essa atenuação não pode ser utilizada como pretexto para turbação de competência.

Nada obstante, em verdade, pode-se afirmar que há violação de atribuições: o Judiciário (STF) estaria legislando (criando uma nova hipótese atípica de aborto). Ora, essa função não pode ser usurpada do poder legislador. As leis devem ser votadas pelos parlamentares eleitos pelo povo, conforme determina a Constituição. Ressalte-se que vige no Brasil o Princípio da Indelegabilidade das atribuições. “Um órgão só poderá exercer atribuição de outro, quando houver expressa previsão”.79 Não existe qualquer dispositivo nesse sentido – conceder ao judiciário o poder de legislar.

Para alterar o ordenamento, a sociedade deve se mobilizar. Tanto é assim que o Governo Federal tem colocado a matéria em pauta. Veja-se que “mais de 60 anos após a entrada em vigor do Código Penal brasileiro, a legislação que trata da punição em casos de aborto será discutida no país pelo Governo Federal. Em janeiro será formado um grupo com o objetivo de propor mudanças sobre o assunto”.80 Essas proposições devem ser apreciadas pelo Legislativo. Nunca pelo Executivo ou Judiciário.

Conclusivamente, o Ministro Moreira Alves explica que a interpretação conforme “só se admite quando não altera a mens legis, certo como é que o Poder Judiciário, no exercício do controle da constitucionalidade de lei, só atua como legislador negativo, e não como legislador positivo, o que ocorreria se sua interpretação alterasse o sentido da lei”.81

Destarte é amplamente notória e vedada a atuação do Supremo Tribunal Federal como legislador positivo.

Segundo o Ministro Carlos Velloso, o caso em discussão estaria em verdade criando mais uma forma de exclusão do crime de aborto. Não estaria, como é próprio do instituto, dando interpretação à norma “polissêmica ou plurissignificativa”. Além disso, o Ministro entende que não caberia a ADPF, pois, a questão em discussão (interrupção da gravidez de feto anencéfalo) precisaria de uma regulamentação quanto ao procedimento da verificação da morte e da intervenção, como ocorre com a lei francesa.82 Além de vedada à usurpação de competência, não se olvide que os seus efeitos terminariam sendo temerários, pois atentariam contra a república e o Estado de Direito.

4.2.5 A questão religiosa inserida nessa discussão

Mesmo pretendendo esse trabalho não adentrar em questões de caráter religioso, apenas para que se obtenha uma visão ampla e completa da discussão, expõem-se algumas informações dos esforços de religiosos, contrários ao julgamento procedente da ADPF 54.

Em assim sendo, a primeira questão relevante foram as incansáveis tentativas da ANBB (Associação Nacional de Bispos Brasileiros), após propositura da ADPF, de intervir no feito, na qualidade de amicus curiae. Em seguida, diversas entidades, em prol da família, também buscaram atuar no processo. Entretanto, conforme narrado no tópico relativo aos andamentos processuais da ADPF 54, essas participações foram negadas.

Mesmo diante desse negativa ao pedido de intervenção, as mobilizações não pararam. Em todo o país existem movimentos sobre essa questão, dotados de um enfoque religioso. Para que se tome noção desses atos, enumeram-se abaixo alguns particulares esforços.

Um arcebispo de Porto Alegre, Dom Dadeus Grings, apresentou uma “Cartilha Política – Eleições Municipais 2004”, na qual sugere aos católicos não votarem nos candidatos que defendem o aborto.83Inegavelmente, essa proposta tem reflexos da ADPF 54.

Sob outra frente, o movimento católico Pró-Vida, de Anápolis (GO), através de seu líder, o Padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, é pioneiro em lutar contra as autorizações judiciais para interrupções de gravidezes de feto anencéfalos. Atuou, inclusive, decisivamente, contra o requerimento de Gabriela (o primeiro habeas corpus que chegou ao Supremo). Entre outros serviços, mantém uma página na internet, com artigos contra o aborto e a eutanásia, na qual ensina até mesmo como proceder na Justiça.84

A CNBB tem utilizado todas as sua forças para vencer esse pleito no âmbito do Poder Judiciário. Tem mobilizado a sociedade e pressionado o Procurador Geral da República. Argumenta que há “relevantes interesses morais” em jogo. “Os fetos anencéfalos estão com seu direito constitucional de nascer ameaçado”85.

Até mesmo livros de medicina legal, como por exemplo, o de Genival França, utilizam as palavras de um papa, Paulo VI, para justificar a punição do aborto.86

Essas curtas considerações são apenas para dar ciência ao leitor de quanto o tema em debate está imerso em questões religiosas. Não poderia se furtar esse estudo de apontar essas tendências e influências sobre tema.

4.3. Argumentos favoráveis

4.3.1. A interpretação da norma penal

Divergindo da posição anteriormente exibida, passa-se agora aos argumentos contrários.

Para abordar a interpretação penal, a primeira questão a ser suscitada é a efemeridade do tempo e a patente alteração social cotidiana. A rapidez com que as relações sociais cambiam é a premissa inicial içada por essa posição sobre o tema. Diante dessas mudanças constantes e inegavelmente presentes na sociedade, não se pode esquivar-se de que as normas penais também estão sujeitas a esses efeitos.

Assim, desde já se questiona a necessidade de um ordenamento jurídico sempre a acompanhar as modificações sociais. No direito penal, como não poderia deixar de ser, também acontece assim. Por exemplo, outrora, adultério configurava-se um delito previsto no Código Penal. Entretanto, na atual conjectura, não mais é uma conduta típica.

Patentes as mudanças, o direito penal e as suas tipificações, impreterivelmente, precisam acompanhá-las. Para tanto, o melhor meio, sempre utilizado, é a interpretação. A necessidade de uma interpretação sempre hermética dos tipos penais é uma falácia. Pondere-se que o Código Penal vigente data de 1940. Desde lá, incontáveis foram as modificações na sociedade.

Sobre essa mudança essencial e constante, Assúa aduz em seus trabalhos, categoricamente, que “o juiz não pode viver alheio às transformações sociais, científicas e jurídicas. A lei vive e se desenvolve em ambiente que evolui e, uma vez que não queiramos freqüentemente, é mister adaptar a norma, como sua própria vontade o permite, às novas necessidades da época”.87

Outra razão para a imprescindibilidade da interpretação é a inexistência de uma norma penal perfeita, não gerando qualquer dúvida quanto ao seu significado. Por mais que os legisladores tenham visado a essa perfeição, ao analisar essas disposições legais, inúmeras são as compreensões aferidas. Sobre essa necessidade de interpretação, Damásio de Jesus elucida que “por mais clara que seja a lei penal, como qualquer regra jurídica, não prescinde do labor exegético, tendente a explicar-lhe o significado, o justo pensamento, a sua real vontade, a sua ratio júris”.88

Então, de acordo com uma expressiva parcela da doutrina, inegavelmente, cabe de maneira ampla a interpretação dos tipos penais. Partindo dessa idéia, esclareça-se que a interpretação comporta subdivisões. De uma forma superficial, apenas registre-se que quanto ao sujeito, são admitidas três modalidades de interpretação: a autêntica, a doutrinária e a judicial. Já no que concerne aos meios empregados, entre as muitas divisões, em regra são separadas em gramatical, teleológica, histórica e sociológica. Mas, para o presente estudo, os possíveis resultados obtidos pela interpretação são peças fundamentais. Dividem-se ainda em declarativa, restritiva, extensiva e progressiva.

Vejam-se as algumas das possibilidades interpretativas suscetíveis à proposta da ADPF 54:

Em primeiro lugar, a chamada interpretação sociológica. Consiste esta no acompanhamento das mudanças na vida do homem. Não se olvide que, em regra, todas as normas penais estão sujeitas a essas mudanças. Todavia, nesta interpretação, as transformações serão inseridas dentro do contexto da norma. As mudanças científicas também são introduzidas nesse conteúdo. Sendo assim, “vale-se a interpretação lógica de elementos extrajurídicos e extrapenais, porque não só devem considerar o meio político e social em que a lei veio à luz, como também freqüentemente é preciso ter conhecimento de outras ciências que a ela se refere ou com que se relaciona”.89 A norma não pode ficar alheia aos novos conceitos.

Os conceitos médicos cambiaram, conforme explanado no tópico 03. A definição hodierna da morte não se enquadra mais naquela aceita há alguns anos atrás. A doação de órgãos reformou o seu sentido. Diante da alteração desse conceito, necessariamente, o tipo penal do aborto reflete essas mudanças.

Para afirmar tratar-se de aborto, o aplicador da norma precisa avaliar, primeiramente, se o feto está vivo. Nesse exame, os conceitos médicos são sempre inseridos. A própria realidade é implantada na norma. Ao realizar esse procedimento, conclui-se que há morte encefálica. O feto já nasceu dentro do quadro de falecimento. Natimorto. Conseqüentemente, o aborto do feto anencéfalo não será crime, mas sim uma conduta atípica. Em verdade, um crime impossível.

Também integrando a matéria penal à realidade, existe ainda a possibilidade da interpretação progressiva, “que se faz quando novas concepções entram no âmbito da lei”.90 Exatamente, diante de alterações na realidade, adentram novas visões no contexto da lei. Isso, segundo relevante área da doutrina, aplica-se também no direito penal.

A despeito dos argumentos contrários, a interpretação aplica-se tanto para a extensão como para a compressão da norma. Critérios para essa aplicação são precisos. Abordando esse tema, Damásio de Jesus explica que, no caso de exegese da norma, quando a despeito desse exercício, não se obtém a sua vontade, abrem-se três caminhos para o exegeta: a) a dúvida seja resolvida contra o agente, b) ocorra o livre convencimento do intérprete e c) a dúvida seja resolvida a favor do agente. Segundo o autor, o Brasil adota a terceira posição.

No trabalho exegético, primeiro, observa-se o sentido visado pela lei. Não o encontrando, aplica-se o princípio do “in dubio pro reo”. Conclui Aníbal Bruno que a lei penal deve ser interpretada restritivamente quando prejudicial ao réu, e extensivamente, quando no caso contrário.91

Dessa feita, o Princípio da Legalidade não restringe o tipo penal, como antes afirmado. Ao inverso, termina por proteger o acusado contra abusos. Não gera a imutabilidade penal. Tanto é assim que existe o princípio do “in dubio pro reo” para auxiliar também na interpretação.

Aplicando todo o exposto ao tema desse trabalho, registre-se, novamente, que a questão da anencefalia não é um mote novo. Existem, como já frisado, registros de decisões judiciais sobre o tema, até mesmo datadas de 1989.92 Contudo, a questão é trazida à baila nacionalmente e de forma explícita, com a chegada de uma demanda ao Supremo Tribunal Federal.

Mas a própria sociedade já possui posições sobre o tema. O judiciário e suas aproximadas 3.000 liminares já falam por si93. A visão da matéria cambia no tempo. A própria visão do que seria morte também mudou.

Ora, sendo assim, nada mais correto do que, através da interpretação da norma penal, em conjunto com os princípios constitucionais antes abordados, trazer a interpretação penal para dentro da realidade hoje vivida. Então, far-se-á a interpretação extensiva dos tipos penais [não se esqueça que essa interpretação só é necessária ao se compreender o aborto como sinônimo da interrupção da gravidez]. Garante-se o sentido real à própria norma. Como pregado por Ihering, em “a luta pelo direito”, busca-se uma simbiose entre o parâmetro social jurídico e a própria norma94.

A divergência de decisões judiciais e a contradição entre as leis é também outro forte fundamento para a aplicação da interpretação. “Interpretar é desvendar o conteúdo da norma”. 95 Isso garante sanar contradições.

Todavia, para que não reste qualquer sombra de dúvida, trabalhar-se-á também com a hipótese da analogia.

4.3.2. A analogia no direito penal

Delimitou-se no tópico 03 deste estudo que o quadro apresentado pelo anencéfalo identifica-se perfeitamente com o da morte encefálica. Entretanto, por essa correlação não ser aceita pacificamente, faz-se mister enfrentar a questão da analogia.

A doutrina penal apresenta dois tipos de analogia possíveis no direito penal: a analogia “legis” (aplicação de uma norma penal a um fato) e a analogia “juris” (utilização dos princípios gerais do direito).

O primeiro dado a ser trazido à baila é o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que admite expressamente a aplicação da analogia. Não bastasse essa norma, a antiga Lei de Introdução ao Código Civil previa expressamente a vedação da analogia no caso de direito penal excepcional, como fazia o direito italiano. Ocorreu que tal norma não foi mantida na nova codificação. Conclui-se, portanto, que o nosso ordenamento não mais aceita essa vedação. Está certa a possibilidade da aplicação analógica.

Quanto ao princípio da legalidade, é certo que a analogia na pode agravar ou prejudicar o acusado. Isso está no próprio espírito do sistema penal. O referido princípio veda expressamente. “É proibida, pois, a analogia “in malam partem””.96 Contudo, não há nenhuma vedação legal para a chamada analogia “in bonam partem”. Não se trata de um entendimento isolado, mas de concepção de doutrinadores como “José Frederico Marques, Magalhães Noronha, Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Costa e Silva e tantos outros”.97

Por conseguinte, o recurso à analogia, nesse caso, não cria delito à margem da lei e, destarte, não colide com o princípio da reserva legal. Estaria trazendo a realidade para a aplicação da norma. Daí a admissibilidade somente da analogia in bonam partem, nos domínios penais, de que o aborto subseqüente à gravidez proveniente de atentado violento ao pudor é expressivo exemplo.98 Veja-se, nessa hipótese, visto a similitude dos casos (estupro e atentado violento ao pudor), a doutrina e a jurisprudência tem aplicado a analogia para abrigá-lo, a despeito da ausência de normas expressas, entre os casos em que é permitido o aborto.

No caso em tela, inegavelmente, a aplicação da analogia beneficiaria os acusados. Como exposto no tópico sobre o aborto, os eventuais réus são: os médicos, a mãe e outros que promovam a interrupção da gravidez. A analogia viria a beneficiar os acusados, o que é amplamente permitido no ordenamento. Evitaria que a mãe, após fazer a difícil escolha de retirar de seu ventre um feto sem viabilidade de vida, não fosse punida por essa conduta. Diversos estudiosos acham que a analogia, quando tem por fim favorecer o causado, deve ser acolhida.99 Ora, é exatamente o que ocorre no caso ora analisado.

Ademais, inegavelmente, o quadro médico do feto anencefálico é análogo ao do doador de órgão. Em outras palavras, o feto anencéfalo deve ser considerado morto. O procedimento de diagnóstico da morte encefálica é um processo sério e regulamentado. Para garantir a total autonomia, o atual Código de Processo Penal, em seu art. 72, veda ao médico “participar do processo de diagnóstico da morte ou da decisão de suspensão dos meios artificiais do prolongamento da vida do possível doador, quando pertence à equipe de transplante”.100 Isso torna o procedimento imparcial, uma vez que o médico que diagnostica a morte é um, enquanto o que realizará transplante será outro.

Na doação de órgão, conforme a Resolução 1.480/97 e o artigo 3º da lei 9434/97, é preciso apenas o diagnóstico da morte encefálica. “A prova mais consentânea da morte para a permissibilidade das cirurgias dos transplantes é dada fundamentalmente pela irreversibilidade das ondas electrencefalográficas isoelétricas, ou planas (...)”.101 Exatamente essa característica, a inatividade cerebral, é verificada no feto anencéfalo. São hipóteses análogas. Logo, cabe perfeitamente a analogia para a aplicar o artigo 3º da Lei de Doação de Órgão e concluir a morte do feto portador da anomalia. Isso beneficia os acusados de uma conduta de aborto.

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Descrevendo como ocorre a doação de órgão, Maria Helena Diniz:

A retirada post mortem de seus órgãos, tecidos ou partes de seu corpo para a fins terapêuticos ou de transplante, deverá ser precedida de diagnóstico de morte anencefálica, baseado em critérios clínicos definidos por resolução do conselho Federal de Medicina. (Lei n° 9.434/97). Tal morte deverá ser constatada, com prudência e segurança, por dois médicos não participantes da equipe de remoção e transplante, admitindo-se para tanto, a presença de médico de confiança da família do falecido. Exige-se, portanto, a prova incontestável da morte, mediante declaração médica da cessação da atividade encefálica, embora pulmonar e cardiovascular se mantenham por processos artificiais.102

Não adianta, então, que o bebê anencéfalo se mantenha respirando ou com funcionamento cardiovascular. Isso não descaracteriza a morte encefálica. Por todo o exposto, faz-se essencial a aplicação analógica para tornar o quadro da interrupção da gravidez de feto anencéfalo como conduta atípica. Configura-se, em verdade, crime impossível, ante a morte do anencéfalo.

4.3.3. Princípio da dignidade humana e da liberdade

O norte do debate travado neste trabalho, de modo incontroverso, está inserido no Princípio da Dignidade Humana. A Constituição consagrou essa premissa com enorme força. Tanto é assim que no primeiro artigo da Constituição Federal está expresso:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)

III - a dignidade da pessoa humana;

Mas apenas o conceito não basta. Permanece excessivamente abstrato. Tentando trazer à luz o conteúdo desse princípio, Manoel Gonçalves explica que está aí o reconhecimento de que, “para o direito constitucional brasileiro, a pessoa humana tem uma dignidade própria e constitui um valor em si mesmo, que não pode ser sacrificado a qualquer interesse coletivo”.103

Em uma tentativa mais completa de conceituar, Alexandre de Moraes:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto serem humanos.104

Parte-se de uma valorização do homem em si. Ressaltam-se as suas singularidades, como ser diferenciado, formador da sociedade. De acordo com Ângela Vivanco, em especial, possui o homem três particularidades: 1) a mundanidad – “como ser pensante y racional, siempre ha tenido consciencia de su existencia.” 2) a sociabilidad - “El hombre no existe, sino que coexiste” e 3) politicitad - “es necesario organizar su convivencia con los demás”.105

A dignidade humana advém, de certa forma, desses três atributos: mundanidad, sociabilidad e politicitad. Tudo isso para diferenciar o homem do reino animal e apresentá-lo com um ser social, interagindo, uns com os outros. Dessa relação, o Estado participa, proporcionando as mínimas condições de vida. Garante a individualidade do homem e a sua convivência em sociedade. Seus direitos.

O princípio da dignidade humana significa uma divisão, buscando garantir a autodeterminação do homem. Essa garantia de uma vida com parâmetros mínimos é um dos deveres do Estado. “Proporciona un sistema de estratificación de status y clases, de modo que cada individuo tenga una posición relativamente estable y reconocible en la estructura social”.106 O Estado deve garantir uma estrutura em que o homem possa se desenvolver.

O dever de garantir uma vida digna abarca não só um conceito material, mas também espiritual. Possui dois prismas. A Constituição enumerou diversos direitos, como moradia, salário, saúde e educação para salvaguardar a subsistência material do homem. Conforme Ingo Sarlet, existe a necessidade de preservar a própria vida humana, “não apenas na condição de mera sobrevivência física do indivíduo (aspecto que assume especial relevância no caso do direito à saúde), mas também de uma sobrevivência que atenda aos mais elementares padrões de dignidade”.107

Eis que surge a controvérsia sobre o que seria um padrão digno. Alguns doutrinadores entendem que é impossível sua quantificação. Mas, a ampla maioria, concorda que é possível aferi-lo. Deve-se observar que o conceito de tratamento desumano ou degradante não é dos mais fáceis de estabelecer. “Diferentes pessoas, diferentes grupos sociais, diferentes épocas vêem ou não vêem num tratamento, por exemplo numa pena, caráter desumano ou degradante, ou não o vêem, entendendo-o perfeitamente adequado.”108 Logo, particularidades devem ser levadas em consideração, como o sistema socioeconômico vigente.109 Mas, repise-se, a dignidade humana não se restringe ao aspecto material.

Para esse trabalho, maior relevo possui a face subjetiva do Princípio da Dignidade Humana. Nas palavras de Scholler, a Dignidade Humana “apenas estará assegurada quando for possível uma existência que permita a plena fruição dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade”110 Em outras palavras, existe dignidade quando o cidadão pode exercer os seus direitos fundamentais.

Ao elevar a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento da Constituição, justificam-se as restrições elencadas em vários incisos do art. 5º, (...)111 Trata-se de garantias à individualidade do cidadão. Limitações do ser humano frente aos outros seres humanos; do Estado, quanto ao homem.

Em outras palavras, existem direitos do homem que, necessariamente, precisam ser respeitados. É um núcleo da própria Constituição. O próprio Supremo Tribunal Federal, em decisão tratando sobre a educação, decidiu:

(...) o direito à educação - que se mostra redutível à noção dos direitos de segunda geração - exprime, de um lado, no plano do sistema jurídico-normativo, a exigência de solidariedade social, e pressupõe, de outro, a asserção de que a dignidade humana, enquanto valor impregnado de centralidade em nosso ordenamento político, só se afirmará com a expansão das liberdades públicas, quaisquer que sejam as dimensões em que estas se projetem: "(...) É por essa razão que os assim chamados direitos de segunda geração, previstos pelo 'welfare state', são direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade. Tais direitos - como o direito ao trabalho, à saúde, à educação - têm como sujeito passivo o Estado porque, na interação entre governantes e governados, foi a coletividade que assumiu a responsabilidade de atendê-los. O titular desse direito, no entanto, continua sendo, como nos direitos de primeira geração, o homem na sua individualidade.112

Está certo que o princípio da dignidade humana se encontra, portanto, no centro do ordenamento brasileiro. É base do Estado Democrático de Direito. Assevera a obrigação de haver a proteção dos direitos dos cidadãos. Adentrando no mérito desse estudo, conclui-se pela obrigação do respeito à liberdade e à saúde da mulher.

Em seu cerne, demonstra-se a íntima legação do princípio da dignidade humana e da liberdade. A mulher deve ter a prerrogativa, em um Estado de Direito, de dispor de seu corpo. Deve lhe ser concedido o livre arbítrio para decidir se, no caso em que o feto é natimorto (anencéfalo) desejará prosseguir com uma dolorosa gestação. Não se busca com a ADPF 54 obrigar a antecipação do parto, mas sim, conceder a escolha para que a mulher decida se, diante da ausência de viabilidade do feto, deseja prosseguir com a gestação. Almeja-se a aplicação da liberdade de consciência.

Em suma, há uma tentativa de aplicar o direito à liberdade. De fato, o Estado deve intervir na sociedade, mas, para salvaguardar direitos e não para obrigar uma mulher a sofrer a triste dor de carregar em seu ventre uma criança sem vida. Violação à saúde da mulher. O artigo 5º da CF, expressamente garante o direito à liberdade.

Resta evidente que o homem, conforme a Constituição, é livre. Isso é chancelado pelo direito à liberdade e à dignidade da pessoa humana. Afinal, “uma das principais funções da Constituição é a função garantística. Garantia de quê? Desde logo dos direitos e liberdades.”113

Mais uma vez se obriga à ponderação de custos e resultados:

O princípio da autonomia está justificado pelo acatamento que se deve à liberdade do paciente e pelo respeito que merece a dignidade humana, mas que não se pode sobrelevar ao princípio anterior. Nos casos de tratamento fetal, o seu interesse não depende tão só do entendimento dos pais, pois eles têm apenas o direito de proteção e não o de recusar condutas que possam trazer benefícios ao filho que vai nascer. Por fim, o princípio da justiça se impõe quando há necessidade de estabelecer a relação entre os custos e os resultados, não podendo, é claro, prevalecer sobre os princípios anteriores.114

Frente ao direito da mulher e ao do feto anencéfalo, avaliam-se os resultados de cada um. O feto, por já se encontrar morto e a mulher, que sem nenhuma causa, será obrigada a sofrer uma gestação sem uma finalidade.

Infelizmente, na questão em tela, ao envolver os direitos da mulher, há, indiscutivelmente, um preconceito de sexo. Esses reflexos ainda são marcantes na sociedade. Demonstrando isso, observe-se um trabalho, no ramo da sociologia do direito, sobre a violência contra mulheres, em que é explicado que em um julgamento de crime passional cometido pelo companheiro, pouco se leva em consideração o direito a ser mulher. Sobre essa questão, ressaltam as autoras do estudo que “há uma resistência entre os operadores do direito para reconhecer os direitos da mulher sobre o seu próprio corpo e sua sexualidade”.115

Enfim, para avaliar o cerne dessa discussão, não se pode esquecer do princípio central do ordenamento jurídico - o da dignidade humana - garantindo em suma, liberdade aos cidadãos, através do respeito aos seus direitos. Além disso, avalie-se a questão, sempre aos olhos da liberdade e com isenção de preconceitos de sexo.

4.3.4. Direito à saúde

A matéria abordada adentra nos meandros da saúde. Afinal, envolve, inexoravelmente a saúde do feto e de sua genitora. Nesse diapasão, não se olvide que, anteriormente, os cidadãos proviam suas necessidades sem ter o Estado qualquer responsabilidade pelo bem estar da população. Com a evolução da sociedade, passou a ser competência do Estado a garantia à saúde, só inserida, explicitamente, na Constituição brasileira de 1988.

No artigo 6° da Constituição Federal estão enumerados os direitos Fundamentais de 2° geração, aduzindo que "são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Ocorre aqui, então, o embasamento normativo ao cidadão para os exigir através dos meios judiciais pertinentes. Frise-se que não se permite que o cidadão pleiteie do Estado uma providência, mas também que seja assegurado o respeito à saúde da pessoa humana.

De forma mais expressa, há a chancela de que a saúde é um direito de toda a comunidade:

Art. 196. “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Assim, os pleitos concernentes à matéria possuem fulcro no texto da própria Carta Magna. São direitos de toda a coletividade. “O direto à saúde rege-se pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperam”.116 Bem se vê que a gestante de um feto portador da anomalia tem garantido o seu direito à saúde.

Em se tratando da eficácia dessa norma, a Constituição é expressa sobre o assunto, ao estatuir que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. “Mas, é certo que isso não resolve todas as questões, porque a Constituição mesma, faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade de algumas normas definidoras de direitos sociais, enquadrados dentre os fundamentais”.117 É fato, pois, que a eficácia não só depende da conjuntura, como já exposto, mas também de uma legislação para colocar em prática a disposição constitucional e, de maneira gravosa, das escolhas realizadas pelo Administrador e até mesmo pelo Judiciário.

A despeito da questão da eficácia, o direito à saúde deve ser aplicado como princípio. Não se pode, sob o fundamento da limitação da norma, olvidar a determinação constitucional. Quanto à saúde, Lobo Torres aduz: “Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas”.118

A obrigação de aplicar a norma já foi observada em decisão até do Supremo Tribunal Federal. Observe-se um trecho de decisão dessa Corte Suprema quanto ao fornecimento de medicamentos para doenças graves pelo Estado do Rio Grande do Sul aos cidadãos:

A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.119

Portanto, até mesmo a Corte Suprema brasileira entende que o direito fundamental à saúde, não pode ser entendido como apenas uma promessa constitucional. Dessa forma, resta evidente que há obrigação do cumprimento pelo Estado daquilo que dispõe a Constituição, mas com a devida análise dos bens que se encontram em perigo.

Conforme apresentado na caracterização da anencefalia, a maioria dos fetos nem ao menos chaga a nascer. Em grande parte, ocorre a deterioração do feto dentro do útero da mãe. Isso gera, em regra, a infertilidade e, em alguns casos, a morte da gestante. São algumas das conseqüências:

Em primeiro lugar, há pelo ao menos 50% de possibilidade de polidrâmnio, ou seja, excesso de líquido amniótico que causa maior distensão do útero, possibilidade de atonia no pós-parto, hemorragia e, no esvaziamento do excesso de líquido,a possibilidade do deslocamento prematuro da placenta, que é um acidente obstétrico de relativa gravidade.Além disso, os fetos anencefálicos, por não terem o pólo cefálico, podem iniciar a expulsão antes da dilatação completa do colo do útero e ter o que nós chamamos de distorcia do ombro, porque nesses fetos, com freqüência, o ombro é grande ou maior que a média e pode haver um acidente obstétrico na expulsão do parto no ombro, o que pode acarretar dificuldades muito grandes no ponto de vista obstétrico. Assim sendo, há inúmeras compilações em uma gestação cujo o resultado é um feto sem nenhuma perspectiva de sobrevida.120

Conta-se, então, com mais um argumento favorável à interrupção da gravidez do feto anencéfalo. Isso porque, o quadro do feto já é de um natimorto, tanto é assim que é possível a doação de seus órgãos. Contudo, a saúde da mãe, que é obrigada a sujeitar-se a todo tipo de problemas de saúde e seqüelas, não é levada em consideração. Esquece-se que, em muitos casos, ocorre até mesmo a morte da genitora. Tudo isso poderia ser evitado pela interrupção terapêutica do parto. Salvaguarda-se a gestante, visto que o feto anencéfalo não pode ser considerado como uma forma de vida. E caso considerado vivo, essa vida não tem viabilidade futura.

O próprio procedimento do parto não é seguro. Em verdade, ao se colocar a mãe nessa situação, contra a sua vontade, tolhendo-se-lhe o livre arbítrio, afronta-se o direito à saúde. Ocorre exposição desmotivada a riscos. “Todo parto está sujeito à álea e ao risco inerentes à atividade médica. Também aqui o médico não poderá assegurar, de antemão, que tudo correrá de modo perfeito”.121

Nesses casos, a questão precisa ser avaliada sobre dois ângulos, conforme assevera França:

A primeira coisa a ser feita, neste particular, é a avaliação dos riscos sobre a vida e a saúde da gestante, pois sem a segurança e o bem estar da matriz seria irrelevante qualquer raciocínio em favor do feto. Depois dessa avaliação, chegando-se à conclusão de que o risco não existe ou é menor que o mínimo para a mãe, faz-se a avaliação dos riscos sobre a intervenção na criança que vai nascer, cuidando-se não só dos atos lhe tragam malefícios, mas também da importância e do alcance do resultado que se quer obter.122

Resultado: existe, em primeiro lugar, um enorme risco à gestante, inerente ao parto. Mais grave, com certeza, é o resultado a ser obtido, um feto que, se muito, só respirará por um curto tempo, sem esperança de vida.

No direito à saúde são pesados os benefícios e os malefícios. Devem ser aplicados os fundamentos dos princípios de beneficência ou da não-maleficência, da autonomia e da justiça. O princípio da beneficência ou da não maleficência é aquele que se baseia na condição de o médico saber aliar as possibilidades terapêuticas com uma expectativa de cura ou a certeza de não ter mais sofrimento, mal estar e constrangimento ao paciente, inspirado nas razões do primum non nocere e entendendo que, na maioria das vezes, deve prevalecer a beneficência sobre a maleficência. Ora, o que se pretende na ADPF 54 é sobrepor a beneficência da saúde da mulher, em face da existência de um feto que não vive.

O tema também adentra na “futilidade médica”123 – prolongamento de uma “vida” sem esperanças. Esta é uma questão muito delicada. Por isso, é preciso que se faça uma análise bem cuidadosa e só se considere tratamento fútil aquele que não tem objetivo definido, que não é suficiente ou capaz de oferecer esperanças de uma qualidade de vida mínima e que não permite qualquer eventualidade de sobrevida. Enquadra-se, perfeitamente, ao caso do anencéfalo.

Quanto ao argumento referente ao diagnóstico, frise-se que não apenas um exame será feito. A lei determina que mais de um diagnóstico seja realizado, com intervalo de tempo, com médicos distintos, para diagnosticar a morte cerebral. Isso gera maior segurança. Não é um procedimento leviano.

Por fim, repise-se que o resultado dessa gestação é um feto morto ou, no máximo, inviável. A saúde da gestante será colocada em risco, sem que advenha qualquer resultado positivo. “Concluímos que, se as técnicas e os recursos utilizados em torno do feto não alcançarem o sentido de proteção e de melhoria da qualidade de vida da criança que vai nascer, tudo isso não passaria de algo muito pobre e insignificante”.124O procedimento perde o seu sentido.

O argumento da saúde da gestante é amplamente aceito pela justiça, na concessão de liminares autorizando a antecipação terapêutica do parto. O judiciário não entende “esta prática como indicação eugenésica, mas, tão-só, levando em conta a existência de um feto cientificamente sem vida, incapaz de existir pó si só”.125 Em outras palavras, considera os perigos à vida da gestante e a inviabilidade do feto, aplicando-se o direito à saúde.

4.3.5. Vedação à tortura

Na Antiguidade, a tortura era considerada como um meio de obter a confissão dos acusados. Já para os persas e cartagineses, a tortura visava aumentar o sofrimento dos condenados à morte. Em Roma, a partir do édito de Caracala, era prática permitida e reiterada contra todos os homens livres, escravos e estrangeiros. Na era Crista, a tortura consistia em um meio de descobrir a verdade. Considerava-se que a sua permissão era para o bem das almas e maior glória de Deus.126

Do século XIII ao Século XVIII, a tortura, em diversos países, foi abolida. Segundo Wolgran Junqueira, a abolição da tortura ocorreu na Prússia, em 1740, três dias depois de Frederico II subir ao trono. Mas, continuava sendo permitida para os crimes mais graves. Só em 1756, foi vedada essa prática por inteiro.127

Passando para a modernidade, Dalmo de Abreu Dallari define a tortura como “uma atitude covarde de exercer a violência física, psíquica e moral sobre a pessoa.” Quanto aos seus efeitos, explica que quando se tortura alguém, levando uma vítima a um sofrimento cruel, está se aviltando o próprio torturador, a ponto de injuriar ou insultar toda a humanidade.”128 No século XX, registrou-se a prática da tortura nos períodos de guerra e nos regimes de força ditatorial. Comprovou-se o uso da tortura, também, em países submetidos a governos militares, prática que chamou atenção mundial”.129 Infelizmente, o Brasil foi um dos principais exemplos dessas condutas.

Frente a esse problema global, a Assembléia Geral da ONU aprovou, em 10/12/84, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. O Brasil aderiu à convenção em 1991.Como reflexo desse momento histórico, a Constituição Federal, no art 5º, consagrou a expressa vedação à tortura:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

Para a doutrina, a norma acima pontada representa uma chamada norma de eficácia limitada. Em outras palavras, seria necessária uma norma infraconstitucional para a sua aplicação. Preenchendo essa lacuna, e terminando com a controvérsia se já existia ou não o crime de tortura130, a Lei nº 9.455/97 pôs um fim ao dilema. Começou conceituando a tortura como:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: (...)

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

Os primeiros elementos caracterizadores são a guarda, o poder ou a autoridade. Explicando esses elementos, Mauro Faria de Lima explica que “submeter (do latim submittere) significa sujeitar, subjulgar, subordinar, outrem. Guarda é cuidado, proteção, amparo, pressuposto de vigilância. Poder significa a faculdade de deliberar, agir, mandar, exercer domínio e força. Autoridade é o poder de se fazer obedecer, de dar ordens, tomar decisões, de agir”.131 Exatamente sob essas condições estão os cidadãos perante o Estado. O Estado os submete às suas decisões, devendo ao mesmo tempo zelar pelas pessoas e seus direitos e com a certeza de ser o portador de autoridade.

Exatamente esse papel termina sendo desempenhando pelo Estado, ao não permitir que uma mulher a interrompa a gestação de uma criança que já está morta, não tendo nenhuma chance de vida. Em virtude desse ato, inegavelmente, a mulher tem intenso sofrimento físico e mental, ao carregar em seu ventre uma criança que tem 0% de viabilidade. As dores decorrentes desse ato são incalculáveis. Não há outra conclusão senão que há desobediência à vedação da tortura, determinada na Constituição Federal.

Esse conceito amplo de tortura já foi inclusive discutido e determinado pelo Supremo Tribunal Federal. Em decisão sobre a tortura de criança, o pleno da Corte Maior definiu que:

Trata-se de preceito normativo que encerra tipo penal aberto suscetível de integração pelo magistrado, eis que o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade. - A norma inscrita no art. 233 da Lei nº 8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente, ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional da tipicidade dos delitos (CF, art. 5º, XXXIX). A TORTURA COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA. A simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo. 132

Destarte, o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu a tortura como atentado ao direito da pessoa humana. Traz à baila as características impregnadas na lei de tortura. Elucida que o tipo penal é aberto, adequando-se à realidade. Não há outra conclusão senão a perfeita simetria entre as dores e aflições suportadas pela gestante de um feto anencéfalo e aquelas decorrentes do exercício da tortura.

Trata-se de um direito fundamental, a ser respeitado. Reiteradamente, o Brasil assumiu compromissos internacionais em combater esse tipo de Prática. Nesse sentido, pode-se citar a Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU (1984), da Convenção Interamericana contra a Tortura, concluída em Cartagena (1985), e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), formulada no âmbito da OEA (1969).

Por todo o exposto, a vedação à tortura, reconhecida pelo Brasil e consistente num dos pilares do Estado de Direito, é mais um argumento favorável à procedência da ADPF 54.

4.3.6. A Separação de Poderes, a Segurança Jurídica e o Supremo Tribunal Federal

O argumento contrário ao pedido da ADPF 54 mais utilizado é a separação de poderes. Como já ventilado, através da teoria de Montesquieu, fazem uma divisão absoluta do poder, entendendo que o Supremo, ao prover a ADPF, estaria agindo na qualidade de legislador positivo. Parte-se do pressuposto de que cada poder teria uma função própria, sem qualquer interferência de outra. Desse raciocínio, haveria turbação da competência do poder legislativo.

Entretanto, como alerta inúmeras vezes Canotilho, há um certo equívoco na interpretação da separação dos poderes. Não é um critério absoluto. A forma de alguns doutrinadores a compreenderem é um mito. “Mais do que separação, do que verdadeiramente se tratava era de combinação de poderes”.133

Dessa forma, os poderes não são mais tão estáticos. Sobre a questão, José Afonso explica que “o princípio não se configura mais com aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação dos poderes, e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário.”134

Ocorre que, na verdade, ao julgar procedente a ADPD 54, não estaria o Supremo Tribunal Federal agindo como legislador positivo. O que de fato seria feito é apenas a concretização e defesa dos direitos presentes na Carta Magna. Isso porque “a força normativa das regras e princípios constitucionais vincula todos os poderes públicos (mesmo os de controlo), obrigando-os a uma tarefa positiva de concretização e desenvolvimento do controle constitucional”.135

O que se propõe ao Supremo Tribunal Federal é a análise do caso em que há gestação de um feto anencefálico à luz dos direitos fundamentais consagrados pela Constituição: igualdade, dignidade da pessoa humana, vedação à tortura e proteção à mulher. Leva-se em consideração o feto não ter chances de sobrevida. O sofrimento que se impõe à mulher. Os direitos fundamentais constitucionais.

Além disso, leva-se em apreço a própria segurança jurídica a ser preservada pela Corte Máxima. Atualmente, a decisões dos tribunais, sobre a matéria, têm sido dessemelhantes, gerando desigualdade de direitos entre os cidadãos. “Deduz-se que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo ou judicial”.136 Exatamente esse resultado seria obtido através de um pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em outras palavras, ao julgar o mérito da ADPF conceder-se-ia segurança às decisões sobre a anencefalia.

Carece o cidadão de segurança quanto aos seus direitos. “O homem precisa de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito”.137

Está apresentado que se pretende, em verdade, a perfeita atuação pelo Supremo Tribunal Federal de sua competência, protegendo a Constituição.

Hoje em dia, não cabe mais apenas discutir os direitos fundamentais apenas em abstrato. É imperioso aplicá-los, concretizá-los. “A questão jurídica hoje não é classificar os direitos fundamentais como absolutos ou relativos, mas sim discutir qual é a forma mais segura e eficiente de torná-los eficazes, impedindo as constantes violações dos direitos declarados em documentos internacionais e nacionais (...)”.138

Sem prejuízo desses argumentos, registre-se também que, quanto à função de legislar, existem duas facetas: “o dever de legislar”, para o legislador originário, e de um correspondente “direito à emissão de normas”, da parte do cidadão (...)139. Abarcam-se dois direitos: o dos legisladores e o dos legislados.

Diante dessa divisão, bem se vê que, na omissão do legislador, termina-se por violar os direitos dos administrados. Conseqüentemente, os direitos do próprio cidadão e os direitos positivados na Constituição. Sobre esse ponto, Jorge Hage explica:

A norma constitucional – se é norma-regra ou norma-princípio – já confere um direito a alguém. E esse direito, conferido pelo Poder Constituinte, não pode restar inexeqüível, ou inexigível, apenas pela inércia ou mora do legislador ordinário em dar cumprimento à segunda parte da norma, ou à segunda norma: aquela que ordenou a regulamentação geral da primeira. Isso, aliás, resultaria em intolerável inversão da lógica do ordenamento jurídico, que tem a Constituição em seu vértice, e onde o Poder Legislativo é simples “Poder Constituído”. 140

Ao se furtar a apreciar o pedido da ADPF, sob o argumento da divisão dos poderes, o Pretório Excelso termina por ofender todo o ordenamento e direitos criados pela Constituição e, conseqüentemente o direito do cidadão de emissão às normas. Essa inversão vai de encontro a todo o ordenamento constitucional. O Tribunal Constitucional é na verdade obrigado a colocar os direitos constitucionais em prática. O profesor Alexy explica que “cuando los derechos fundamentales representan normas de principio con tendencia a la optimización, el Tribunal Constitucional está obligado a dotarlos de validez y de contenido normativo.”141

O Poder Judiciário não pode se esquivar do problema. Em homenagem ao princípio da separação dos poderes, “a noção atual de Estado de Direito traz ínsita a exigência de mecanismos de controle de ato legislativo, tendo em vista o princípio da constitucionalidade.142

Nesse sentido, registre-se que existem 118 projetos de lei e requerimentos que versam sobre o aborto pendentes só na Câmara dos Deputados. Um deles, o PL 2684, chama a atenção por ser datado de 1965.143

Esse entendimento não é novidade, sendo inclusive aceito e aplicado por vários dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Em seus votos, ao tratar sobre o mandado de injunção144, entendem que o Tribunal Constitucional não pode se furtar de aplicar os princípios constitucionais, em função de omissão do legislador.

Comprovando essa afirmação, apresente-se que o Ministro Celso de Mello ponderou que:

As Constituições consubstanciam ordem normativas, cuja eficácia, autoridade e valor não podem ser afetados ou inibidos pela voluntária inação dos órgãos e instituições estatais, que simplesmente descumprem - por inércia ou omissão - o dever, constitucionalmente prescrito, de emanar normas(...).145

Aldir Passarinho, por sua vez, aduz que “inicia-se, contudo, com a inovação constitucional, uma fase promissora para a asseguração dos direitos constitucionais, que o aperfeiçoamento do sistema constitucional e legal talvez chegue à obtenção de mais amplos e concretos resultados”.146

Portanto, o próprio Supremo Tribunal já superou essas barreiras produzidas pela separação de poderes. Hoje, esse princípio possui novas nuanças, inolvidáveis. O STF precisa levar em consideração, primeiro, os princípios constitucionais e os direitos de seu cidadão. Conclui-se que não ocorre turbação de competência, na atuação do STF na hipótese da ADPF 54. O que haverá é a concretização de direitos positivados na Constituição e a salvaguarda dos direitos do homem. Essa posição já é consagrada até mesmo pela Corte Máxima, conforme já abordado. Além do mais, não haveria furto de atribuição. Brilhantemente, Canotilho sistematiza a legitimidade dessa atuação do judicuiário: “o problema não reside aqui em, através do controle constitucional se fazer política, mas em apreciar a constitucionalidade da política”.147

4.3.7. O Princípio da Proporcionalidade

Uma conclusão inevitável desse trabalho é a de que na questão em tela existe um embate entre Princípios. Esse estudo enfrenta, caso observado em fundo, um confronto entre o Direito à Vida do anencéfalo e o Princípio da Dignidade Humana da gestante. Frente a essa colisão, a maneira encontrada para solucionar essa divergência é inegavelmente ponderar.

Ciente da possível divergência entre os Princípios Constitucionais é que nasceu o chamado Princípio da Proporcionalidade. Decorre da constatação de que os Direitos e Garantias podem conter um atributo de relatividade. Isso significa, segundo Suzana de Toledo, que “na maioria das situações em que está em causa um direito do homem, ocorre que dois direitos igualmente fundamentais se enfrentem”.148Nessa situação, não existe outra solução, senão a ponderação de resultados.

A despeito do ordenamento buscar uma harmonia entre as suas disposições, inevitavelmente, algumas de suas proposições terminam por se contrapor, dentro do caso concreto. Como exemplo, vejam-se os direitos à liberdade de expressão e proteção à intimidade. Pois bem. Da mesma forma termina por acontecer no caso em discussão (os Direitos do feto anencéfalo x os Direitos da gestante). A forma de soluciona essa contradição foi o Princípio ora em debate.

Mais um importante motivo para a sua aplicação é evitar que injustiças arbitrárias sejam escudadas pela chamada “justiça na forma da lei”, com base no Princípio da Legalidade. Melhor desenvolvendo o tema, explica-se que nem sempre a norma, em sua estreita aplicação, pode gerar uma solução justa e correta. Exatamente quando acontecem gritantes distorções, decorrentes da aplicação da lei, é que entra em ação o Princípio da Proporcionalidade. Contudo, registre-se que isso não significa deturpar a aplicação do Princípio da Legalidade. Em contrário, tentando concretizar os Preceitos Constitucionais, é que são avaliados os possíveis resultados decorrentes na norma para os adequar ao mais próximo do espírito constitucional. Em outras palavras, é utilizado para detectar situações inconstitucionais.

Segundo Gilmar Mendes, deve ser “pronunciada a inconstitucionalidade da lei que contenha limitações inadequadas, desnecessárias e desproporcionais (não-razoáveis).149 Sob outro viés, decompõe no que se funda o Princípio da Proporcionalidade e chancela a declaração de inconstitucionalidade.

O próprio Supremo Tribunal Federal já vem reiteradamente aplicando o Princípio da Proporcionalidade. Essa ponderação é considerada universalmente. Por exemplo, nos Estados unidos, em 1970, uma mulher grávida – Jane Roe – que residia em Dallas buscou autorização para realizar um aborto legal. As leis do Texas incriminam todas as formas do aborto, exceto aquela para salvar a vida da mãe.150 De acordo com as evoluções sociais, o conceito de aborto se relativizou. A Suprema Corte Americana decidiu que “It is indispulated that a commom law [court decisions], abortion performed before “quickening” – the first recogzinable movement of the fetus in utero, appearing usually from the 16th to the 18 th week of pregnancy – was not an indictable offense”.151

O princípio da proporcionalidade (verhältnismässigkeitsprinzip) é formado por três elementos ou subprincípios, os quais sejam: adequação (Geeignetheit), a necessidade (Enforderlichkeit) e a proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit).152 Trazendo essas considerações para o caso em tela conclui-se que a adequação, por exemplo, não está presente. Primeiro, porque o feto já se caracteriza como morto encefálico. Não há vida.

Segundo, por a conduta da gestante, quando decide interromper a gravidez que na resultará em uma vida viável, em sendo tipificada, não trará outra solução senão a punição de uma mulher que já sofreu muito com a anomalia no feto. Para mãe alguma é fácil saber que o seu filho não viverá.

Então, prosseguindo na adequação ao caso em debate, surgem as seguintes indagações, para aferir se existe a necessidade: Existe precisão de punir a gestante que pretende realizar a antecipação terapêutica do parto? Existe aí um interesse do Estado em puni-la? Há algum perigo à sociedade decorrente dessa conduta? Aparentemente, todas as respostas são não.

A gestante que escolhe interromper a gravidez não produz qualquer perigo à sociedade. Em verdade, apenas busca minimizar uma dor pertinente a si mesma. Não existe qualquer lição a ser retirada, pela sociedade, ao aplicar a lei penal ao caso em tela. Em contrapartida, a gestante terá uma dupla punição: carregar um filho encefalicamente morto em seu ventre e, após a retirada do feto, ser punida, novamente, com uma sanção penal.

Demonstrando ainda a impertinência da sanção penal, de acordo com pesquisa realizada em 1993, no Congresso Nacional, apenas 7% dos parlamentares são a favor da prisão de uma mulher que recorre ao aborto. 67% são contra a criminalização e 19% não tem opinião formada. 153 A pesquisa aborda o aborto em si. Com certeza, na hipótese da anencefalia, os números seriam ainda mais favoráveis à antecipação terapêutica do parto.

Apresentando ainda a ausência de necessidade, frise-se que, no caso do único habeas corpus sobre esta matéria, no Supremo Tribunal Federal, a gestante passou toda a gravidez submetida a um vaivém de decisões judiciais, para que, ao final, o seu bebê vivesse apenas sete minutos.154 Não há outra conclusão senão tratar-se de medida desproporcional a tentativa de aplicar o Princípio da Vida sem ponderações sobre os resultados decorrentes dessa conduta.

Por fim, dentro da proporcionalidade estrita temas duas situações a serem analisadas. A primeira é a do feto, que caso não tenha a sua gestação interrompida, poderá respirar por alguns minutos, no máximo dias, para, sem qualquer chance de sobrevida, vir a perder todas as suas funções vitais (recordando que a cerebral ele já não possuía) e finalmente perecer. Nessa hipótese a gestante suportará a gestação por nove meses, consciente de que o bebê que carrega em seu ventre não sobreviverá.

A segunda é, após o diagnóstico seguro, de mais de um médico, e depois de de decidido pela gestante (recorde-se que a ADPF 54 pretende a liberdade de escolha da mulher e não a obrigação) proceder a retirada do feto anencéfalo, visto seu quadro de morte encefálica, minorando as dores e sofrimentos a serem suportados. Concede-se, assim, em menos tempo, e de forma de menos traumática, a chance de o casal tentar uma nova gestação.

Dentro da proporcionalidade estrita, avaliando os dois casos, bem se vê que a segunda hipótese é a que melhor se enquadra nos Ditames e Preceitos Constitucionais. Ponderando, a solução menos gravosa é a segunda. Logo, a primeira hipótese deve ser compreendida como inconstitucionalidade.

Mais uma vez, asseverando a desproporção, não cabe olvidar que a pena de prisão prevista no Código Penal normalmente não é aplicada. Em regra, quando a mulher chega a ser ré, é feito um acordo com a promotoria, que solicita a suspensão do processo. 155 Existe uma previsão penal inócua.

Por todos os argumentos já ventilados, entende-se que inexiste adequação, necessidade ou proporcionalidade. Não se apresenta necessária a punição de uma atitude que só visa poupar a mulher de dores e maiores seqüelas. O anencéfalo está fadado, desde quando surge a anomalia, à morte. Já se configura, dentro do ordenamento jurídico atual, como morto encefalicamente. Do mesmo modo, não é proporcional infligir à mulher, além do sofrimento pela gestação de um bebê sem vida, a punição por tentar reduzir esse mal.

Não há outra conclusão senão de a que o Princípio da Proporcionalidade põe a salvo o direito da gestante de realizar a intervenção cirúrgica para interromper a gestação do feto anencéfalo.

4.3.8. A Interpretação Constitucional do Aborto

Após a apresentação dos princípios constitucionais em debate, faz-se mister oferecer como se dá a interpretação destes, frente ao tipo penal aborto. Na mesma ocasião, completando a matéria, apresentar o Princípio da Proporcionalidade e sua pertinência para o deslinde dessa discussão.

Então, novamente se ressalta que “a tarefa do jurista é descrever e interpretar normas, determinando, descritivamente, as conseqüências, ou efeitos, que delas decorrem; para tanto procura estabelecer um nexo lógico entre as normas e demais elementos do direito, dando-lhe uma certa unidade de sentido.”156

O primeiro arremate é a necessidade de interpretar, estabelecendo um liame lógico entre as duas normas. Além disso, faz-se essencial compreender a força dos princípios. Isso porque:

PRINCÍPIOS são categoria lógica e, tanto quanto possível, universal, muito embora não possamos esquecer que, antes de tudo, quando incorporados a um sistema jurídico-consttucional-positivo, refletem a própria estrutura ideológica do Estado, como tal, representativa dos valores consagrados por uma determinada sociedade.157

Devem, portanto, os princípios serem aplicado refletindo a realidade lógica e sistemática da realidade. Deve existir uma ligação ente os princípios e o entorno fático social. Ivo Dantas, nas palavras de Jorge Xifras Heras: para captar o alcance “jurídico-positivo de la Constituición es necesario comprender el derecho como uma manifestación normativa de la vida social, de toda la vida social, orientado hacia la realixación, nunca lograda del todo, de la justicia”.158

Sendo expoente máximo da Constituição, os princípios, inegavelmente, precisam ser respeitados. Cabe analisar se, no caso dos fetos anencéfalos, há ou não violação dos princípios anteriormente enumerados. Remarque-se que o anencéfalo já se encontra em um quadro de falecimento encefálico. A gestante, sem qualquer resultado benéfico da gravidez (ter em seus braços o seu filho vivo), não terá escolha, restando violada em seus direitos à preservação da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da vedação à tortura e da saúde da mulher. A ofensa aos princípios constitucionais é, sem dúvidas, inconstitucional. “A violação de um princípio constitucional importa em ruptura da própria Constituição, representando por isso mesmo uma inconstitucionalidade de conseqüências muito mais graves do que a violação de uma simples norma, mesmo constitucional”.159.

Retome-se ainda que deve haver a imediata aplicação dos direitos fundamentais (artigo 5º §1º). Segundo o professor Alexy, um dos maiores estudiosos dos direitos fundamentais, existe um mandado de “otimização” quanto à aplicação dos direitos fundamentais. Em suas palavras, “em el centro de este libro se encuentrala tesis de que, más allá o menos precisa, los derechos fundamentales tienen el carater de principios son mandados de optimización”.160

Nessa otimização, merece destaque o fato de a sociedade, incessantemente, cambiar. Isso gera a modificação de questões sociais. Contudo, essas mudanças devem avançar no âmbito social, e nunca retroceder. Sobre esse princípio, Canotilho ensina:

Uma absoluta proibição da retroactividade de normas jurídicas impediria as instâncias legiferantes de realizar novas exigências de justiça e de concretizar as idéias de ordenação social plasmadas na Constituição. A articulação destas idéias conduz-nos à seguinte orientação normativo-constitucional: um norma retroactiva é apenas, mas sempre, inconstitucional, quando uma norma ou princípio constitucional (expresso ou implícito) conduzir a este resultado. 161

Por todo o exposto, resta incontroverso que a interpretação é uma forma de integrar a norma e os princípios à realidade. Quando ocorre a violação de um princípio consagrado constitucionalmente, há inequívoca inconstitucionalidade. Para superar esse problema, utiliza-se a interpretação, sempre consciente de que nos direitos fundamentais existe uma ordem de otimização e que em sua aplicação é vedado o retrocesso.

Então, em defesa da possibilidade da interrupção da gravidez de feto encefálico impende ao Supremo realizar algumas das chamadas técnicas de Controle de Constitucionalidade. Desde agora é imperioso frisar que tais métodos são criações derivadas, em parte, de ordenamos jurídicos alienígenas, e sua grande maioria em decorrência da necessária evolução do controle de constitucionalidade.

Nasceram da controvérsia sobre os efeitos da interpretação. Uma corrente entendia que havia apenas uma conclusão possível a ser extraída da norma. Contudo, uma outra visão, adotada no Brasil, partindo das idéias de interpretação - como a da moldura de Kelsen162 - entendeu que são possíveis múltiplas significações normativas.163 Afere-se que o Brasil adotou esse segundo ponto de vista, visto que, no art 28 da Lei 9.868/99 está disciplinado:

Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acórdão.

Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.

Incontroversa a aplicação no ordenamento brasileiro desses métodos, passa-se a apontar algumas dessas técnicas,que são úteis ao objeto desse trabalho. Nesse objetivo, elege-se o seguinte rol de possíveis formas de aplicação do controle de constitucionalidade: a) interpretação conforme a Constituição Federal; b) apelo ao legislador e c) norma em trânsito para a inconstitucionalidade.

a) Interpretação Conforme a Constituição e Declaração de Inconstitucionalidade sem Redução de Texto.

Para adentrar nesse ponto, mais uma vez, retome-se o objeto da controvérsia desse trabalho: “decorre do fato de que uma eventual interrupção de gravidez em caso de anencefalia poder, em princípio, ser enquadrada como uma das hipóteses de crime prevista no Código Penal.”164

Para resolver a questão, na ADPF 54 se propõe que seja realizada uma interpretação conforme da Constituição. Trata-se de um método importado de ordenamento alienígena. A Verfassungskonforme Auslegung, como é denominada na Alemanha, é um princípio constitucional, justamente em face da força normativa da Constituição. Nas palavras de Hesse, citado por Lênio Streck, o fundamento da interpretação conforme se funda no princípio de que “uma lei não deve ser declarada nula quando pode ser interpretada em consonância com a Constituição”.165

Possui inegavelmente um pressuposto: a viabilidade de múltiplas interpretações de uma norma. Decorre essencialmente das múltiplas respostas encontradas através de interpretação. Não é difícil se obter significados distintos de uma mesma norma. Exatamente para garantir o resultado dessa exegese é que existe a interpretação conforme.

Torna-se ainda mais necessária essa aplicação em se tratando de direitos fundamentais. Em regras, são conceitos abertos, sem delimitação legal. “O caráter polissêmico e aberto das normas constitucionais, sobretudo em se tratando de direitos fundamentais, muitas vezes já contém em si uma exigência de conformação”.166 Para garantir o respeito a esses direitos e seu correto significado, utiliza-se a interpretação conforme.

Em acordo com o direito brasileiro, André Tavares Ramos explica:

Quando uma norma infraconstitucional contar com mais de uma interpretação possível, uma (no mínimo) pela constitucionalidade e outra ou outras pela inconstitucionalidade, múltipla interpretação dentro dos limites permitidos ao intérprete, este deverá sempre preferir a interpretação que consagre, ao final a constitucionalidade.167

Através de outras palavras, Celso Ribeiro Bastos aduz que, pela interpretação conforme da Constituição, “uma lei não deve ser declarada nula quando seja passível de uma interpretação que a coloque em plena sintonia com o conjunto normativo constitucional.”168 Na verdade, a interpretação conforme aplica a soberania da Constituição sobre o ordenamento jurídico. Parte do pressuposto da validade das normas constitucionais. Ainda sobre o objetivo desse método e seus efeitos, Canotilho leciona:

No caso de polissemia de sentidos de uma acto normativo, a norma não deve considerar-se inconstitucional enquanto puder ser interpretada de acordo com a constituição. A interpretação das leis em conformidade com a Constituição é um meio de o TC (e outros tribunais) neutralizarem violações constitucionais, escolhendo a alternativa interpretativa conducente a um juízo de compatibilidade com do acto normativo com a Constituição.”169

De acordo com o Ministro Carlos Velloso, a forma de aplicação da interpretação conforme a Constituição foi estabelecida na ADIN 581/DF. Com base nesse julgamento, o Ministro do Supremo explica que o controle consiste em “a Corte, reconhecendo a constitucionalidade de uma interpretação de norma infraconstitucional, terá como inconstitucional as demais interpretações possíveis.”170 A declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto consiste no outro lado da moeda: declara a norma, em uma de suas interpretações, como inconstitucional e as outras como constitucionais. Para o Ministro Joaquim Barbosa, a interpretação conforme é “uma das várias técnicas ou mecanismos mediante os quais se procede ao exame da compatibilidade de normas com o texto constitucional”.171

Veja-se a o cabimento desse procedimento no caso em tela:

Como apresentado no tópico 4 deste estudo, o tipo penal aborto pode ter diversas interpretações. Trata-se de uma norma penal de tipo aberto, resumindo-se a apontar a palavra “aborto” na tipificação. Destarte, cabe interpretar, como já é feito amplamente na doutrina, as diversas formas do aborto. Entre os possíveis significados resultantes dessa interpretação, a interrupção da gravidez pode ser entendida ou não como aborto. Para essa aplicação, realiza-se um trabalho de hermenêutica. À luz das ilações de Tércio Ferraz, observe-se o procedimento:

Tendo por base as lições de Tércio Sampaio Ferraz Jr., por uma análise semiótica, que, ao estudar o preceito constitucional como um processo comunicativo, além de proporcionar um enfoque analítico lingüístico-pragmático em íntima conexão com o sintático e o semântico, possibilita não só a captação do fenômeno eficacial pelas funções que se desempenham no contexto normativo, mas também a leitura ideológica da significação normativa relacionada com outros comandos, com a realidade social, com o valor nela positivado, com seu emissor e com seus endereçados, analisando assim o papel dos fatores extranormativos na justificação da eficácia.172

Leva-se em consideração a interpretação da norma em consonância com a realidade social e suas particularidades. A linguagem da norma, sua finalidade, seu emissor, seus receptores são todos avaliados. “A eficácia social diz respeito à relação semântica da norma (signo) não só com a realidade social a que se refere, mas também aos valores positivos (objetos denotados)”173.

Frente à hipótese do feto anencéfalo – vistas suas particularidades no capítulo 1 deste estudo - configurando-se em um quadro de morte encefálica, faz-se mister a interpretação conforme da tipificação penal do aborto para garantir que, na hipótese de nascituro anencéfalo, não existe a incidência desse tipo. Tal interpretação, dar-se-á em conformidade com o princípio constitucional, universal, da pessoa humana. Ademais, a Constituição veda a tortura (o que ocorre na gestação de um feto sem vida). Registre-se também que há violação ao direito da gestante de ter a sua saúde preservada. Encerrando-se este ponto, não cabe olvidar do direito à liberdade da gestante.

Conclusão: a norma tipificadora, no caso da gestação do anencéfalo é inconstitucional. Afinal, vai de encontro a diversos princípios constitucionais. Em assim sendo, deve ser afastada do ordenamento, como pretende a ADPF 54, através da Declaração de Inconstitucionalidade sem redução de texto..

A interpretação conforme e a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto são, pois, mecanismos aptos a fazer cumprir - no limite – “a função intervencionista” do Poder Judiciário, para pôr freios à “liberdade de conformação do legislador (...)”.174 Trata-se, em verdade, de uma maneira de acompanhar as modificações sociais e aplicar o próprio ordenamento constitucional às normas infraconstitucionais, como é o caso dos tipos penais do aborto.

b) A Lei ainda Constitucional e a Análise do Caso Concreto.

De início, deixe-se bem claro que o presente estudo não se esquiva de alguns conceitos consagrados no direito Constitucional. Um dos principais dele, reiteradamente apresentado pelos livros de direito constitucional, é o fato de o controle de constitucionalidade, no caso da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, dever ser realizado de maneira abstrata.

Todavia, o Supremo Tribunal Federal não se omite às evoluções da sociedade, bem como às necessidades concretas dos cidadãos brasileiros. Por essas razões, nos últimos tempos, tem inovado, consagrando algumas leis como “ainda inconstitucionais”, levando em consideração, em suas argüições, motivos concretos.

Em outras palavras, existem no ordenamento jurídico brasileiro certas normas que são consideradas como possuidoras de certo “prazo de validade”. Trata-se do que se arrisca conceituar como normas de transição, ante a dificuldade momentânea social.

Para que se obtenha uma apreensão desse conceito de “normas ainda constitucionais”, utiliza-se como premissa a situação precária das Defensorias Públicas dos Estado. Como se sabe, essas instituições ainda não possuem uma composição e organização necessária ao atendimento da enorme demanda de pobres na forma da lei. Sendo assim, o Estado colocou no Código de Processo Penal, a defesa de certos direitos dos pobres sob a égide do Ministério Público. Como prova disso, veja-se:

Art. 68. Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1º e 2º), a execução da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 4) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público.

A competência que deveria ser claramente da Defensoria Pública dos Estado foi concedida ao Ministério Público. Nesse diapasão, ao se manifestar sobre a questão, o Supremo Tribunal Federal, em sua decisão sobre a constitucionalidade dessa norma, analisou, em verdade, as circunstâncias concretas. Levou-se em consideração que os pobres ficariam descobertos de seu direito de acesso ao judiciário. Logo, de forma inquestionável, uma conclusão referente ao caso concreto.

Observe-se a decisão nesse sentido:

EMENTA: Ministério Público: legitimação para promoção, no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito à reparação: C. Pr. Pen., art. 68, ainda constitucional (cf. RE 135328): processo de inconstitucionalização das leis. 1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da Constituição - ainda quando teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada - subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem. 2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68 C. Pr. Penal - constituindo modalidade de assistência judiciária - deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que - na União ou em cada Estado considerado -, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68 C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente: é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o plenário no RE 135328..175

Veja-se que, de acordo com a redação do acórdão em referência, claramente foram utilizadas as expressões onde e quando. Ademais, já se faz uma previsão futura de que, quando existirem condições concretas de pleno funcionamento e estrutura organizada, essa competência será devolvida à Defensoria Pública.

Dessa sorte, a Corte Constitucional não só faz ilações sobre os resultados práticos, mas também acompanha o desenvolvimento da sociedade. Afinal, todo o corpo social encontra-se em plena e inconstante mudança. Exatamente essa posição é o que se espera da ADPF 54. Ter consciência da triste realidade de um bebê anencéfalo, até que seja introduzida uma norma no ordenamento, ou se encontre uma cura ou maneira de evitar a incidência da anomalia.

Ademais, como já visto anteriormente, no contexto cambiante, estão inseridos conceitos como vida e morte. Para fins desse estudo, enfatize-se o que outrora foi apontado quanto à morte. Retomando esse raciocínio, recorda-se que, inicialmente, a morte é um conceito proveniente da soma de diversos diagnósticos clínicos:

MORTE = parada da circulação + parada respiratória + falecimento dos órgãos + falecimento dos tecidos + morte encefálica.

Contudo, depois das evoluções sociais, com ênfase na área médica, e, sobretudo em decorrência da doação de órgãos, a morte hodiernamente possui apenas um critério a ser aferido:

MORTE = falecimento encefálico.

Mais uma vez se deixe claro que tal conclusão advém da Lei 9434/97 (Doação de órgãos) e da Resolução n º (1480/97)

Pois bem, juntando tais conhecimentos ao quadro médico em que se apresenta o anencéfalo, seja esse a ausência de cérebro, não há outra conclusão senão tratar-se a norma penal que condena a prática do aborto como não incidente ao caso do feto sem cérebro. Novamente, na busca de uma conclusão embasada em estudos, reveja-se que o quadro clínico do feto com a anomalia em discussão é de ausência de função cerebral.

Em consonância com a solução dada pelo Supremo Tribunal Federal, utilizando-se do caso concreto, e das evoluções dos conceitos médicos, não há outra conclusão senão a procedência da ADPF 54. Registre-se, novamente, que os argumentos trazidos na peça inaugural não vinculam os Ministros daquela Corte, podendo, assim, utilizarem-se amplamente de todos os estudo aqui apresentados.

Não há como se esquivar das mudanças sociais. Tudo faz com que o jurista, ao estudar o Direito, não se olvide das inevitáveis mudanças e progressos de vários subsistemas. Na tridimensionalidade jurídica de Miguel Reale, encontra-se a noção de que o sistema jurídico se compõe de um subsistema de normas, de fatos e de valores, isomórficos, entre si.176

Pela eficácia sociológica ou social “considerar-se-á eficaz a norma que encontrar na realidade social e nos valores positivos as condições de sua obediência, ou seja, a que tiver seus preceitos observados pelos destinatários”.177 No caso da anencefalia, já não é aplicada a tipificação penal. Os tempos mudaram e as concepções também.

Existem ainda alguns outros pontos, de ordem concreta, favoráveis à interpretação da norma como inconstitucional. São eles enumerados por Pedroso:

Força maior do preconício da legitimidade abortiva provém do combate ao flagelo do aborto clandestino. Com sua liberação condicionada à provocação por médicos e em clínicas especializadas, além do controle fático da ocorrência, evitar-se-iam aborto feitos por pessoas inabilitadas, diminuindo-se consideravelmente o risco de vida ou incolumidade da gestante.

O preço cobrado para as intervenções cirúrgicas e internações para este fito é exorbitante. Desse modo, a camada mais pobre da população, que concentra a maior parte do contingente abortador, continuaria, indubitavelmente, a procurar as famigeradas parteiras e curiosas, em ambientes nada assépticos. Persistiria, pois, a clandestinidade.178

Destarte, até mesmo o Pretório Excelso já reconhece a mutabilidade da realidade e sua influência para definir as normas como constitucionais ou não. Logo, no caso da anencefalia, a decisão da ADPF 54 não pode se furtar a observar os novos conceitos médicos, a opinião social e a omissão do legislador.

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Sobre a autora
Mariana Barbosa Cirne

Mestre em Direito, Estado e Constituição (UnB). Especialista em Direito Público (UnP) e em Processo Civil (IDP). Bacharela em Direito (UFPE). Procuradora Federal (AGU). Coordenadora do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência da República (PR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CIRNE, Mariana Barbosa. Anencefalia: acrescentando questões médicas a uma discussão jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3496, 26 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23524. Acesso em: 28 mar. 2024.

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