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Acerca da obrigatoriedade dos contratos: uma interpretação durkheimiana

19/02/2013 às 17:01

Resumo:


  • Propriedade pessoal surge quando um indivíduo se destaca do grupo familiar, tornando-se detentor de todos os direitos do grupo.

  • A apropriação tem como principais fontes a herança e o contrato, sendo este último um instrumento de mutações e criação de novos objetos de propriedade.

  • Os contratos evoluíram ao longo da história, passando de solenes e formais para consensuais, refletindo a necessidade de flexibilidade e adaptação às relações sociais cotidianas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Já os direitos e as obrigações que os indivíduos têm quanto a uma coisa dependem do estado dessa coisa, de sua situação jurídica. Se está contida no patrimônio de outrem, deve-se respeitá-la.

Considerações Iniciais

Como ensina Durkheim, de coletiva a propriedade veio a se tornar individual. A propriedade pessoal só apareceu quando, da massa familiar, um indivíduo se destacou, a encarnar em si toda a vida religiosa esparsa nas gentes e nas coisas da família, e a tornar-se o detentor de todos os direitos do grupo. Nesse sentido, hoje em dia os caracteres fundadores da propriedade residem na pessoa. Daí o surgimento do seguinte problema: que relações devem ter as coisas com a pessoa para poder, seguindo o caráter sagrado da pessoa, comunicar-se legitimamente às coisas?

Essa comunicação constitui a apropriação, a qual tem duas fontes principais: a herança e o contrato - duas vias essenciais para nos tornarmos proprietários. Pela herança adquirimos essas propriedades inteiramente prontas, e pelas trocas contratuais criamos objetos novos de propriedade. A obrigatoriedade dos contratos é o foco desta questão e o foco analisado por Durkheim no capítulo “O direito contratual” do livro “Lições de Sociologia”.


I- A formação dos contratos e sua obediência à evolução histórica

Um laço moral jurídico é uma relação concebida pela consciência pública entre dois sujeitos, individuais ou coletivos, ou então, entre esses dois sujeitos e uma coisa, e em virtude da qual um dos termos em presença tem, sobre o outro, ao menos um direito determinado. Decorre dessa definição o fato de não poder ser primitivo o laço contratual. Vontades não se podem entender, para contrair obrigações, a menos que essas obrigações não resultem do estado jurídico, desde esse momento adquirido, seja das coisas, seja das pessoas; não pode tratar-se senão de modificar a condição, de acrescentar, às relações existentes, relações novas.

O contrato é fonte de variações, a supor um primeiro fundo jurídico, de outra origem. O contrato é, por excelência, o instrumento das mutações. Por exemplo, faça-se uma mutação pacificamente, com o consentimento de duas famílias, e teremos o contrato de casamento sob forma mais ou menos rudimentar. O casamento, assim, é um tipo de contrato formado a partir do consenso das partes.

Na idéia de a concordância de duas vontades, quanto ao mesmo fim, poder ter caráter obrigatório para cada uma delas, havia grande novidade jurídica, a supor, inclusive, um desenvolvimento histórico já muito avançado. A noção jurídica do contrato, do laço contratual, bem longe de ser de evidência imediata, só pôde ser construída laboriosamente. Muito lentamente as sociedades chegaram a ultrapassar a fase inicial do direito puramente estatutário, e a supor-lhe um direito novo.

Quando os homens sentiram a necessidade de criar laços diversos dos resultantes de sua condição, laços desejados, vieram a concebê-los à imagem daqueles que lhes estavam à vista. Dois indivíduos, ou dois grupos distintos, entre os quais não existem laços naturais, combinam associar-se com vistas à obra comum. Essa operação é chamada de Blood-Covenant. Os dois indivíduos se achavam, com efeito, como formadores de uma espécie de grupo artificial, presos por laços análogos aos grupos naturais aos quais cada um deles pertencia. Aí são os laços do estatuto pessoal os modelos dos laços contratuais nascentes.

Já os direitos e as obrigações que os indivíduos têm quanto a uma coisa dependem do estado dessa coisa, de sua situação jurídica. Se está contida no patrimônio de outrem, deve-se respeitá-la. Se, apesar disso, vem a penetrar em seus patrimônios, devo restituí-la, ou restituir-lhe o equivalente. Tal é a origem do chamado contrato real, isto é, o contrato formado pela tradição real de uma coisa. Entretanto, segundo Durkheim, nem o blood covenant, nem o contrato real, são propriamente, contratos, pois nesses dois casos, a obrigação não resulta da eficácia das vontades concordantes. Mais uma vez, o que constitui o contrato é a concordância afirmada das vontades em presença.

É necessário que se tenha criado, imediatamente, um estado de coisas e de pessoas, de natureza própria a produzir efeitos jurídicos. Enquanto esse intermediário estiver presente, o contrato não será contrato. Além disso, há outra via pela qual chegamos ao contrato propriamente dito. As vontades só se podem ligar se houver uma afirmação feita por palavras, que podem se tornar sagradas através de um juramento, por exemplo. Eis aí a origem dos contratos formalistas e solenes, cuja característica está em levar as partes a se comprometer segundo fórmula determinada, solene.

Ressalta Durkheim que não é porque alguém se haja comprometido com outro que esse compromisso é, mais, ou menos, obrigatório. Um não é de natureza diversa da do outro; e, se nenhum dos dois tem, em si, prestígio moral coercitivo da vontade, não será o concurso de ambos que lhe possa dar. Para haver contrato, não é necessário que haja compromisso de prestações recíprocas, pois existem contratos unilaterais (o contrato de doação e o contrato de penhor, por exemplo, não implicam troca).

Os variados tipos de contrato estão vinculados ao tempo histórico. Durante o contrato feudal, por exemplo, o contrato unia o servo ao senhor. Para fazer fé e homenagem, ajoelhava-se o servo e punha suas mãos nas mãos do senhor, e lhe prometia fidelidade. A mesma prática, entretanto, está na sociedade contemporânea através do casamento na igreja católica, em que pela junção das mãos os noivos prometem o casamento um ao outro.

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Várias foram as transformações pelas quais os contratos foram passando até ser o que se verifica atualmente. O desenvolvimento das trocas, a freqüência e a variedade delas, dificilmente poderiam suportar o formalismo embaraçoso do contrato solene. Faziam-se relações novas, por via de contrato, às quais não podiam convir as fórmulas estereotipadas, consagradas pela tradição. Cumpria-se se tornassem mais flexíveis as próprias operações jurídicas, a fim de poder tomar a forma da vida social. Como compra e venda são coisas de toda hora, e o comércio, por assim dizer, não conhece folga, não se pode estar a pedir, a cada comprador, e a cada vendedor, que prestem juramento. O caráter cotidiano, a continuidade dessas relações, delas exclui, por força, toda solenidade, e a sociedade buscou meios de reduzir o formalismo.

Do contrato solene nasceu o contrato consensual. Enquanto o contrato solene só se fixava por processos mágicos, ou religiosos, no contrato consensual a palavra adquiria a mesma fixidez, a mesma objetividade, pelo efeito único da lei; embora se deva ressaltar que aspectos do contrato solene não desapareceram. O contrato consensual é como que o remate, o ponto no qual veio convergir, desenvolvendo-se, o contrato real, e é essa tradição que engendra  a obrigação. Tal é o princípio do contrato consensual: consensual, em última análise, em substituir a tradição material do contrato real por tradição simplesmente oral, e até, mais exatamente, mental e psíquica. O puro contrato consensual implica, com efeito, simplesmente, seja o consentimento a condição necessária, mas suficiente, da obrigação.


Considerações finais

Os contratos, então, nos diferentes estágios histórico-sociais e nas suas diferentes formas têm sua obrigatoriedade assentada na moral contratual, que segue a lógica da relação entre partes interessadas nas relações sociais. Por isso diz Durkheim; “Quem diz contrato diz concessões, sacrifícios consentidos para evitar mal maior”.


Bibliografia:

DURKHEIM, Émile. Lições de Sociologia: a Moral, o Direito e o estado. Tradução e Notas de J. B. Damasco Penna. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1983.

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Sobre o autor
Walace Ferreira

Professor de Sociologia da UERJ. Pesquisador. Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Walace. Acerca da obrigatoriedade dos contratos: uma interpretação durkheimiana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3520, 19 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23755. Acesso em: 22 dez. 2024.

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