Capítulo IV
Das Leis Ambientais que devem ser observadas pelo Administrador Público na implementação de Políticas Públicas
Desde o início da humanidade a questão ambiental sempre foi objeto de atenção pelos indivíduos, até pelo fato de que a sua devastação é um fenômeno que acompanha o homem desde os primórdios de sua história. Ocorre que a partir da jurisdicionalização dessas questões passou-se a presenciar um emaranhado de Leis, Decretos, Regulamentos que tem por escopo disciplinar a forma de exploração dos recursos ambientais renováveis/não renováveis, de modo a evitar sua escassez.
Este leque de regras jurídicas, muitas vezes até contraditórias, faz com que surja certa segurança para o indivíduo, na medida em que poderá ter a certeza, por exemplo, da licitude ou ilicitude de uma conduta que de algum modo possa vir a prejudicar o meio ambiente.
As leis lato sensu servem, pois, para regular a conduta do indivíduo, que, se agisse de forma livre e arbitrária, poderia, mesmo sem querer, causar danos ao ambiente, a exemplo do mencionado por Milaré:
“É que, como dissemos, dado que o embate de interesses para a apropriação dos bens de natureza se processa em autêntico clima de guerra – de prepotentes Golias contra indefesos Davis –, a ausência de postulados reguladores de conduta poderia redundar numa luta permanente e desigual, com o mais forte sempre impondo-se ao mais fraco. E é evidente que esse estado de beligerância não convém para a tranqüilidade social, já que o homem não pode estar em paz consigo mesmo enquanto estiver em guerra com a natureza”[27]
Assim, até a conferência de Estocolmo de 1972 (marco para o Direito Ambiental) algumas leis esparsas foram criadas com o intuito de regular diferentes ramos da área ambiental, porquanto, foram criadas, a título de exemplo, o Dec. 16.300 de 1923 (Regulamento de Saúde Pública), Dec. 23.793 de 1934 (Código Florestal), Dec. 24.114 de 1934 (Regulamento de Defesa Sanitária Vegetal), Dec. 24.643 de 1934 (Código de Águas) etc.
Também na década de 1960 regulamentos de extrema importância no controle dos recursos ambientais foram criados, assim a Lei 4.504 de 1964 (Estatuto da Terra), Lei 4.771 de 1965 (Código Florestal), Lei 5.197 de 1967 (Proteção à Fauna), Dec.-Lei 248 de 1967 (Política Nacional de Saneamento Básico), Dec.-Lei 303 de 1967 (Criação do Conselho Nacional de Controle da Poluição Ambiental) etc.
Foi, porém, após a Conferência de Estocolmo realizada em 1972 na Suécia, em que participaram 113 países e 250 ONGs, que a matéria ambiental passou a ganhar a relevância que merece. A partir desse encontro, foi editado a Declaração de Estocolmo contendo 26 princípios referentes a comportamentos e responsabilidades, que se destinam a nortear as questões de relevância ambiental.
A partir desse momento, foram estatuídos, na visão de Édis Milaré, quatro marcos de extrema relevância no tratamento de questões ambientais.
O primeiro marco foi a edição da Lei 6.938 de 31 de agosto de 1981 (Política Nacional do Meio Ambiente), trazendo uma nova concepção de meio ambiente como objeto específico de proteção, instituindo o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), e estabelecendo a obrigação do poluidor de reparar os danos ambientais causados de acordo com o princípio da responsabilidade objetiva.
De acordo com o referido autor, o segundo marco deu-se a partir da edição da Lei 7.347 de 24 de Julho de 1985 (Disciplina a Ação Civil Pública como instrumento processual específico para a defesa do ambiente e de outros interesses difusos e coletivos). A partir desse momento tem o Ministério Público legitimidade para levar ao controle jurisdicional as demandas ambientais.
A edição dessa lei ganha importância nessa monografia pelo fato de que, através de sua entrada em vigor, é regularizada a legitimação do parquet para intervir sempre que o bem público de natureza ambiental fosse prejudicado por atividades humanas, independendo do órgão que originou o ato.
O terceiro marco coincide com a promulgação da atual Constituição Federal de 1988, que deu tratamento ímpar a matéria, tendo destinado um capítulo próprio disciplinando o meio ambiente. Modelo, aliás, muitas vezes repetido, strito sensu, nas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios.
O quarto e último marco se deu com a edição da Lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais), que dispôs sobre as sanções penais e administrativas aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, sistematizando as sanções e tipificando organicamente os crimes ecológicos.
A partir do exposto, pode-se ter ao menos uma restrita visão do campo normativo brasileiro no que condiz com a proteção ambiental. Nenhuma conduta que possa direta ou indiretamente influir no ambiente pode ser executada sem a observância do diploma legislativo em que essa se enquadre.
Surge, porém, uma crítica a este conjunto legal regulamentador das diversas áreas ambientais tendo por base a coerência legislativa, na medida em que, ao serem instituídos diversos diplomas normativos, cada um versando sobre um tema específico, ramifica-se desordenadamente o sistema ambiental, que deveria ser uno.
Assim, até pelo fato de existirem inúmeras contradições nessas Leis, Decretos, Regulamentos, Portarias, etc., deveria ser implementado o projeto de consolidação todo sistema legislativo ambiental em um único documento, um “Código” que passaria a tratar do tema ambiental de forma uníssona e coerente.
Capítulo V
Do Controle Externo do Poder Executivo
5.1. Da Legitimação do MP para intervenção no Poder Executivo
Passada a análise da conceituação do órgão ministerial e das regras e princípios de observância obrigatória pelos membros da administração pública, nos dedicaremos nas próximas linhas ao estudo pormenorizado do objeto central da presente monografia.
Durante décadas prevaleceu o entendimento, inspirado na idéia de tripartição de poderes proposta por Montesquieu, de que cada um dos três poderes já teria, diante da divisão constitucional, sua área de atuação pré-definida, ou seja, cumpriria ao Poder Legislativo a função de legislar, ao Poder Executivo a função de administrar e ao Poder Judiciário a função de julgar, no sentido de fazer prevalecer a liberdade individual contra os abusos outrora vigentes.
“Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou mesmo o Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria o Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares.”[28]
Com o passar do tempo percebeu-se que a simples divisão de poderes não era a melhor forma de governar o Estado, tendo em vista que, sem uma limitação por um agente externo dos seus respectivos poderes, cada órgão estatal poderia agir arbitrariamente, atuando de forma a fazer prevalecer suas convicções ao revés dos interesses da sociedade.
Constatou-se, portanto, que apesar da manutenção da divisão tripartite das funções estatais como forma de fazer prevalecer a liberdade, deveria haver certo controle para evitar o citado excesso de poder. Assim, foi sendo concretizada a partir da Common Law o sistema da “checks and balances” ou sistema de freios e contrapesos, que mantendo a concepção de áreas pré-definidas de atuação, inovou no sentido de assegurar que cada Poder teria certa influência sobre o outro, prevalecendo um controle recíproco nos órgãos estatais.
Assim não podemos deixar de citar o caso MARBURY versus MADISON, ocorrido em 1803, que inaugurou o poder da judicial review, segundo o qual caberia ao Poder Judiciário dizer se a lei em questão seria ou não aplicável, devendo considerar lei somente aquele ato normativo em conformidade com a Constituição.
A título de exemplificação, temos a figura do Veto Presidencial e do impeachment. A primeira, como forma de o Poder Executivo controlar o processo de elaboração das leis pelo Poder Legislativo, e a segunda, como forma de o Poder Legislativo julgar atos praticados pelos membros do Poder Executivo contrários à Constituição.
É importante ressalvar que, apesar da possibilidade de questionamento acerca da legitimidade de tais ingerências em órgãos alheios, existe atualmente previsão constitucional autorizando tais condutas, assim como nos arts. 66, §1º; 84, III, IV e V; 102, I, “a”; 103, §2º, etc.
Ocorre que, assim como o Poder Executivo, Legislativo e Judiciário possuem seus campos de atuação e intervenção definidos, as condutas dos membros do Ministério Público, órgão constitucionalmente definido como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbido da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, também devem se pautar pelo que está previsto em nossa Carta Magna.
A partir de tal constatação podemos ser levados a crer que, baseando-se na interpretação gramatical da nossa Lei Maior, toda área de atuação do parquet já estaria pré-determinada e que, caso pretendesse se aventurar em seara “alheia” estaria atuando contrariamente ao exposto naquele diploma.
Ocorre que, como melhor poderá ser explicado abaixo, o critério da legalidade estrita não deve prevalecer na interpretação de nossa Constituição Federal. Esta, dotada de inúmeras normas de natureza programática, tem privilegiado interpretação que seja condizente com seu fim almejado, baseando-se, portanto, em uma interpretação axiológica.
Assim, pergunta-se: diante da finalidade do parquet, caberia a este órgão sindicalizar as ações e omissões do Poder Executivo com o intuito de cobrar a efetivação de determinadas políticas públicas, mesmo sem menção no texto constitucional? ou, de outro modo, poderia o Ministério Público realizar o controle externo dos atos do Poder Executivo no que tange à implementação de políticas públicas sem respaldo em legislação específica?
Essa é uma questão muito complexa, até pelo fato de que, acolhendo tal argumentação, poderia o Ministério Público através da Ação Civil Pública levar ao Judiciário questões de ordem estritamente política, que, diante da concepção ate então dominante, não caberia ao Poder Judiciário apreciar.
Lançada a problemática central, cumpre expor os argumentos contrários e favoráveis a essa sindicalização para que possamos, a partir da contraposição entre as duas correntes, chegar a uma conclusão final.
5.1.1. Da Alegação de violação ao regime democrata
Este é um dos argumentos utilizados pelos adeptos da doutrina que rechaça a possibilidade de intervenção dos membros do Ministério Público nos assuntos que seriam privativos do Poder Executivo.
A partir dessa tese, não poderia o juiz dar a palavra final sobre assuntos que diriam respeito apenas aos membros do Poder Executivo pelo simples fato de que, por não terem sido eleitos através do voto popular, não teriam legitimidade para julgar casos que teriam por base o poder político.
Os administradores públicos ao assumirem suas funções, trariam consigo o voto de confiança de seus eleitores. A partir de suas promessas políticas, de sua competência, de sua experiência, carregam o fardo de, na execução de seus mandatos, devem agir com responsabilidade, devendo cumprir com suas propostas lançadas em sua campanha eleitoral, e, para tanto, devem realizar as escolhas políticas que, no seu entender, tornem eficazes seus programas.
Esta não é uma tarefa fácil, pois, na tomada de suas decisões devem levar em consideração vários fatores que, para efetividade de suas medidas, precisam concorrer de modo favorável para concretização do seu objetivo. Assim, o momento, local, modo de execução para a concretização de uma política pública é de competência privativa do administrador.
Assim, o ato administrativo, como o nome já diz, deve ser levado a efeito por membro da administração. Nas palavras de Carvalho Filho:
“Consideramos, todavia, que três pontos são fundamentais para caracterização do ato administrativo. Em primeiro lugar, é necessário que a vontade emane de agente da Administração Pública ou dotado de prerrogativas desta. Depois, seu conteúdo há de propiciar a produção de efeitos jurídicos com fim público. Por fim, deve toda essa categoria de atos ser regida basicamente pelo direito público.”[29]
Como se pode concluir, para cada ação do administrador, inúmeros procedimentos devem ser levados em consideração para que o fim pretendido seja condizente com os anseios sociais.
Assim, questiona-se: como poderia o Ministério Público/Judiciário se imiscuir nas atividades deste órgão para dizer o que entende por melhor? Como poderia o MP ignorar todo este processo escolhas tomadas por membros eleitos para efetivar sua decisão e simplesmente, através de uma Ação Civil Pública, passar ao Poder Judiciário a palavra final sobre o que é melhor para o povo?
Os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário não foram eleitos democraticamente a partir do voto popular. Eles não carregam consigo toda responsabilidade de melhor representar seus eleitores, e muito menos de engendrar a melhor política para eles.
Não há dúvidas de que compete ao Poder Judiciário resolver eventual conflito decorrente do implemento de determinada obra pública que, por exemplo, prejudique determinados indivíduos, ou até responsabilizar civil e/ou criminalmente os agentes públicos que desviem verba destinada a um determinado serviço público, ou fraudem o processo licitatório; porém, decidir acerca da implementação de certa política pública não seria uma indevida intromissão em assuntos privativos do poder político?
Não é à toa que o Poder Executivo exerce o autocontrole político de seus atos, tornando inviável um duplo (pelo Ministério Público) ou triplo (Pelo Poder Judiciário) controle sobre os mesmos atos. Assim ensina Miguel Seabra Fagundes:
“O controle administrativo é um autocontrole dentro da Administração Pública. Tem por objetivos corrigir defeitos de funcionamento interno do órgão administrativo, aperfeiçoando-o no interesse geral, e ensejar reparação a direitos ou interesses individuais, que possam ter sido denegados ou preteridos em conseqüência de erro ou omissão na aplicação da lei.”[30]
A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro corroborara esta tese, como se pode constatar a partir do julgado abaixo colacionado.
“CADERNETA DE POUPANCA. SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. ÍNDICE DE REAJUSTAMENTOI.P.C. Sumaríssima. Cobrança de diferenças resultantes da variação do IPC subtraídas pelos diversos planos econômicos do Governo Federal. Impossibilidade. Ao Judiciário compete aplicar a lei vigente e não aplicar uma outra que lhe pareça mais justa. Certa ou errada, a política econômica do Governo submete todos os negócios ao seu império. Os inconformados não podem acionar o Judiciário para mudar a lei. O recurso ao seu alcance, nos Estados democráticos, é votar em outras pessoas mais credenciadas para o exercício da função pública.(JRC) - Embargos rejeitados. Vencidos os Des. Pedro Américo e Ellis Figueira”.[31]
No mesmo sentido julgou o atualmente Ministro do STJ, Sr. Teori Albino Zavascki:
“ADMINISTRATIVO. INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICO. CONTROLE DE PREÇOS. MATERIALIDADE DA INFRAÇÃO CONFIGURADA. SENTENÇA QUE, ADMITINDO A IMPROCEDÊNCIA DOS EMBARGOS SOB O PONTO DE VISTA LEGAL, ACOLHEU-OS COM BASE EM "ENFOQUE SOCIOLÓGICO", JÁ QUE "O GOVERNO TAMBÉM VIOLOU O CONGELAMENTO". ILEGITIMIDADE DA DECISÃO. AS QUESTÕES TRAZIDAS PELOS JURISDICIONADOS AO EXAME DO JUDICIÁRIO, O SÃO PARA QUE DELE RECEBAM SOLUÇÃO DE NATUREZA JURÍDICA. JUÍZOS DE CONVENIÊNCIA OU DE ADEQUAÇÃO SOCIOLÓGICA DAS NORMAS, SÃO DE ATRIBUIÇÃO DOS PODERES LEGISLATIVO E EXECUTIVO, QUE, INTEGRADOS POR REPRESENTANTES ELEITOS, ATUAM SOB O SIGNO DO VOTO E SOB A VIGILÂNCIA DOS ELEITORES. RECURSO PROVIDO”.[32]
Ocorre que, a despeito da citada tese ter prevalecido no sistema jurídico pátrio, consideramos atualmente que a democracia brasileira não se cinge à representatividade em que se funda a eleição dos integrantes do Poder Legislativo e Executivo. Tampouco se esgota no exercício do sufrágio popular, evidenciado o amadurecimento do sistema jurídico-político para abarcar também formas de democracia participativa.
Prevalece entre nós a idéia de que a eleição não pode ser utilizada como um escudo para qualquer ataque por parte do Ministério Público (que vem representar a própria sociedade) ou de qualquer outro órgão constitucionalmente previsto.
O controle externo do Poder Executivo tanto pelo Ministério Público quanto pelo Poder Judiciário estaria, ademais, evitando a hipertrofia de uma função estatal em detrimento da outra. Prevalecendo a idéia da vedação do controle dos atos administrativos estar-se-ia viabilizando odioso engessamento das funções legislativas e judicial, supervalorizando indevidamente a função governamental (executiva), que estaria imune à fiscalização externa e, com isso, autorizada inclusive à prática de atos inconstitucionais, nocivos ao Estado de Direito.
Aqui atua o Poder Judiciário no sentido de fazer prevalecer os anseios constitucionais aos programas propostos pelos membros do Poder Executivo. Não se trata de uma modificação da política ao seu bel prazer, mas sim, de adequá-las em função dos ditames constitucionais que devem ser respeitados pelos órgãos públicos; logo, não se trata de modificação, mas apenas de adequação das políticas à ideologia do Estado Democrático de Direito.
Tanto a ação quanto a omissão da administração pública na concretização de Políticas Públicas podem ser adequadas pelo Poder Judiciário quando acionado pelo Ministério Público. Não realizando, por exemplo, medidas que propiciem aos indivíduos programa de saúde gratuito e com eficiência, nada obstará que o parquet atue e cobre no judiciário (a partir da Ação Civil Pública) a implementação de tal medida em determinado município.
Ensina o mestre Luís Roberto Barroso que “A atuação do Poder Judiciário no controle das políticas públicas, portanto, longe de constituir afronta à democracia, conduz ao respeito do próprio princípio democrático, possibilitando o acesso da coletividade aos serviços e ações públicas essenciais”.[33]
Não é outro o entendimento de Luiza Cristina Fonseca Frischeisen:
“(...) após a positivação dos direitos sociais, seguiu-se um processo de positivação de suas garantias, o que levou a um processo de judicialização de tais direitos, pois que, entre aquelas garantias, estava a criação de mecanismos de tutela judicial para seu efetivo exercício.
Tal judicialização levou ao fenômeno conhecido como politização do Judiciário, papel que vai além da solução do conflito individual, de direito privado intra partes para incorporar uma função criativa de interpretação e de preenchimento do conteúdo das normas, como a do art. 196 da Carta Magna, para efetivação de direitos de ordem social.
(...) não de um Juiz Legislador ou da substituição do Executivo pelo Judiciário, mas sim de um Juiz intérprete da Constituição Federal, que deve estar em sintonia com as demandas dos diversos setores da sociedade em que vive e trabalha.”[34]
Corrobora este entendimento a jurisprudência de nossa Magna Corte Constitucional.
“DIREITO CONSTITUCIONAL E DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. GARANTIA ESTATAL DE VAGA EM CRECHE. PRERROGATIVA CONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE INGERÊNCIA NO PODER DISCRICIONÁRIO DO PODER EXECUTIVO. PRECEDENTES. 1. A educação infantil é prerrogativa constitucional indisponível, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a creches e unidades pré-escolares. 2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. 3. Agravo regimental improvido.”[35]
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CARÊNCIA DE PROFESSORES. UNIDADES DE ENSINO PÚBLICO. OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL INDISPONÍVEL. DEVER DO ESTADO. ARTS. 205, 208, IV E 211, PARÁGRAFO 2º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício. Dever a ele imposto pelo preceito veiculado pelo artigo 205 da Constituição do Brasil. A omissão da Administração importa afronta à Constituição. 2. O Supremo fixou entendimento no sentido de que "[a] educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental[...]. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais impregnados de estatura constitucional". Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento.”[36]
Para concluir, cumpre mencionar que, conforme leciona João Paulo Bachur, o controle jurídico de políticas públicas se insere em um contexto substancialmente diverso dessa democracia individualista (com a ilusão de que os representantes do executivo e legislativo, por serem eleitos pelo voto da maioria, irão sempre atuar de linear conformidade com os interesses dos representados), embora tal visão ainda persista. Trata-se de uma democracia das sociedades de massa, na qual o indivíduo sucumbe ante os múltiplos grupos de pressão.[37]
5.1.2. Da Alegação de violação à separação dos poderes
Eis o argumento mais utilizado pelos refratários à sindicabilidade ministerial ao Poder Executivo. Partem da premissa de que, diante da divisão constitucional das competências das funções estatais, não haveria legitimidade para se sobrepor ao traçado pelo texto maior, reputando inconstitucional qualquer ingerência alheia.
Miguel Seabra Fagundes, com a clareza que lhe é peculiar, dedica várias páginas de sua obra à refutar tal intervenção, ao expor que “não podem os juízes e tribunais assomar para si a deliberação de prática de atos de administração, que resultam sempre e necessariamente de exame de conveniência e oportunidade daqueles escolhidos pelo meio constitucional próprio para exercê-los(...)”.[38]
A partir das idéias do filosofo Aristóteles, complementadas mais tarde por Montesquieu, os adeptos da não intervenção ministerial se dedicam a refutar a intervenção de um órgão sobre outro ao argumento da liberdade individual, no sentido de que, estando previamente constituídas as áreas de competência de cada poder, o indivíduo estaria resguardado de qualquer tirania por parte do órgão estatal que poderia se arvorar em qualquer outra área do poder.
Dedica-se o historiador e jurista Paulo Bonavides ao tema:
“Com efeito, observava-se em quase toda a Europa continental, sobretudo na França, a fadiga resultante do poder político excessivo da monarquia absoluta, que pesava sobre todas as camadas sociais interpostas entre o monarca e a massa de súditos.
Arrolavam essas camadas em seus efeitos a burguesia comercial e industrial ascendente, a par da nobreza, que por seu turno se repartia entre nobres submissos ao trono e escassa minoria de fidalgos inconformados com a rigidez e os abusos do sistema político vigente, já inclinado ao exercício de práticas semidespóticas.
(...)
Todos os pressupostos estavam formados, pois na ordem social, política e econômica a fim de mudar o eixo do Estado moderno, da concepção doravante retrógrada de um rei que se confundia com o Estado no exercício do poder absoluto, para a postulação de um ordenamento político impessoal, concebido segundo as doutrinas de limitação do poder, mediante as formas liberais de contenção da autoridade e as garantias jurídicas da iniciativa econômica”.[39]
Nesse sentido, veja-se julgado da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, segundo o qual a ação civil pública não seria viável como instrumento legítimo para condenar o município ao tratamento prévio de detritos nas águas de rios e esgotos domésticos.
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA - ESGOTO DOMÉSTICO - AÇÃO VISANDO O TRATAMENTO PRÉVIO DOS DETRITOS LANÇADOS NAS ÁGUAS DE RIOS - ATO ADMINISTRATIVO QUE NECESSITA DE EXAME DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE PELO PODER EXECUTIVO - IMPOSSIBILIDADE DE INVASÃO DE TAL ESFERA PELO PODER JUDICIÁRIO - RECURSO PROVIDO. (PASTA- POLUIÇÃO). A pretensão do autor não encontra admissibilidade no direito objetivo, na medida em que não podem os juízes e tribunais assomar para si a elaboração de atos de administração, que resultam sempre e necessariamente de exame de conveniência e oportunidade daqueles escolhidos pelo meio constitucional próprio para exercê-los”.[40]
Também o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela não legitimidade do Juiz para substituir a Administração Pública para determinar que obras de infra-estrutura fossem realizadas em conjunto habitacional, ou que fossem desfeitas construções já realizadas, para atender projetos de proteção ao parcelamento do solo urbano.
“ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
1. O Ministério Público está legitimado para propor ação civil pública para proteger interesses coletivos.
2. Impossibilidade do juiz substituir a Administração Pública determinando que obras de infra-estrutura sejam realizadas em conjunto habitacional. Do mesmo modo, que desfaça construções já realizadas para atender projetos de proteção ao parcelamento do solo urbano.
3. Ao Poder Executivo cabe a conveniência e a oportunidade de realizar atos físicos de administração (construção de conjuntos habitacionais, etc.). O Judiciário não pode, sob o argumento de que está protegendo direitos coletivos, ordenar que tais realizações sejam consumadas.
4. As obrigações de fazer permitidas pela ação civil pública não têm força de quebrar a harmonia e independência dos Poderes.
5. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário está vinculado a perseguir a atuação do agente público em campo de obediência aos princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade, da finalidade e, em algumas situações, o controle do mérito.
6. As atividades de realização dos fatos concretos pela administração depende de dotações orçamentárias prévias e do programa de prioridades estabelecidos pelo governante. Não cabe ao Poder Judiciário, portanto, determinar as obras que deve edificar, mesmo que seja para proteger o meio ambiente.
7. Recurso provido.”[41]
Ocorre que, atualmente, vem ganhando prestígio a doutrina que admite a intervenção judicial nas atividades do Poder Executivo ao argumento de que, com as devidas limitações, esse controle dos atos administrativos é crucial para a própria eficácia do sistema de separação de poderes.
Devemos adaptar aquela rígida visão do sistema de separação de poderes proposta por Aristóteles e aperfeiçoada por Montesquieu à realidade atual, no sentido de fazer com o sistema seja condizente com os preceitos constitucionalmente vigorantes. Assim, nas palavras de Clèmerson Merlin Clève, “a missão atual dos juristas é a de adaptar a idéia de Montesquieu à realidade constitucional de nosso tempo, aparelhando-se o Executivo para que possa responder às crescentes e exigentes demandas sociais”.[42]
Já Lídia Helena Passos adota uma opinião ainda mais rígida ao rechaçar a possibilidade de se manter a separação de poderes nos moldes das concepções até então vigentes. Assim:
“se o princípio da separação de poderes, seja como instrumento de racionalização do aparato estatal, seja como técnica de organização do poder para a garantia das liberdades, tem importância fundamental, ocorre que, hoje, a absoluta autonomia dos poderes no âmbito do Estado Democrático é um mito que não encontra respaldo no texto constitucional e é já insustentável na esteira da argumentação retórica que o inspirou”.[43]
Continua a ambientalista no seguinte sentido:
“A extrema polemicidade dos conflitos sociais – agora coletivos e difusos, não só individuais – gera necessidades inéditas de articulação política, que só podem ser atendidas mediante a criação e implementação de políticas públicas, estratégias decisórias e mecanismos processuais igualmente inéditos, os quais requisitam uma nova organização das estruturas e instituições estatais, bem como novas pautas de articulação política e negociação social entre os grupos representados”.[44]
Não creio que simplesmente abandonar toda a evolução acerca do princípio da divisão de poderes seja a forma certa para se dedicar ao assunto. Assim, diante do art. 60, §4º, inciso III, da CF/88, não poderão ser suprimidos os poderes da União, quais sejam, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, e assim deve ser.
A Constituição Federal é uma carta política completa, no sentido de tentar abarcar, a partir de suas normas e princípios, todo o campo de conflituosidade social. Não é à toa que estabelece como forma de controle recíproco dos supracitados poderes o sistema de freios e contrapesos, asseverando a complexidade do tema.
Leciona Fábio Konder Comparato que “no atual contexto político, a separação de poderes apresenta-se como o remédio mais eficaz contra os erros ou desvios técnicos na condução das políticas públicas, propiciando o estabelecimento de controles múltiplos e recíprocos entre os órgãos estatais”.[45]
Para que seja concretizado eficazmente o sistema de freios e contrapesos, entra o Ministério Público como órgão fiscalizador e impulsionador da mecânica dos contrapoderes, para que se possa, quando se fizer necessário, atuar no sentido de movimentar ou frear a administração conforme o exija a dinâmica institucional traçada pelo ordenamento jurídico.
Devemos ter em mente também que na teoria concebida por Aristóteles a partir de sua obra “A Política” e aprimorada por Montesquieu em “O Espírito das Leis”, o princípio da separação dos poderes deveria ser entendido como um meio de evitar o despotismo real de um poder sobre o outro, e não como um princípio para a organização do sistema estatal e de distribuição de competências.
O modelo tripartite deve ser conformado, em tempos atuais, à forma de Estado a que se encontra vinculado: no Estado Social, diferentemente no ocorrido no Estado Liberal, impõe-se o controle de um Poder sobre o outro como forma de concretização dos objetivos buscados pela ordem constitucional, mormente diante da nova feição prestacional do Estado.
Diante da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar nº 75/93) é função institucional do parquet a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses individuais indisponíveis, considerando, entre outros, o princípio da “independência e harmonia dos Poderes da União” (art. 5º, inciso I, e).
Além do citado diploma legal, a própria Constituição Federal legitima o Ministério Público para defesa da ordem jurídica, da qual a harmonia entre os poderes é princípio fundamental. Cabe-lhe, pois, agir para restaurar o equilíbrio violado, desde que resulte em lesão a direitos difusos e coletivos.
Diante da atual conformação do Estado, portanto, não pode a separação de poderes obrar em empecilho à realização dos objetivos firmados na Carta Política de 1988. Necessário se faz, pois, o reconhecimento da possibilidade de interferência de um órgão em outro, de forma a viabilizar o efetivo controle dos atos públicos.
Assim, cabe ao órgão ministerial ingressar com uma ação civil pública com objetivo de sanar ação/omissão administrativa ilícita, e ao fazê-lo estará, por via direta, salvaguardando o princípio do equilíbrio dos poderes na medida em que, descumprindo preceito maior, a administração pública atuando indevidamente ou deixando de atuar quando devido, quebrando com a harmonia que deve prevalecer entre os Poderes Administrativo, Legislativo e Judiciário.
Ao decidir o conflito, o Poder Judiciário nada mais faz do que assegurar o cumprimento das leis ao declarar que o Poder Executivo deixou de agir quando deveria, tendo violado, ipso facto, disposição legal. Nessa hipótese, o juiz reconhece a existência de ação/omissão ilícita que prejudica diretamente interesses difusos ou coletivos. Funciona, pois, como instrumento de restauração da ordem jurídica violada e, portanto, de retorno ao estado de equilíbrio entre os poderes.
Incumbe ao Judiciário não a obrigação de criar uma política pública inexistente, em substituição à Administração omissa, por exemplo. Compete-lhe, tão-somente, determinar o cumprimento e a execução de obrigação já fixada, apenas não-implementada pelo Executivo.
Assim decidiu a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no RESP nº 88776/GO, de relatoria do Ministro Ari Pargendler, ao considerar a Ação Civil Pública via adequada para obrigar às construções necessárias à eliminação de dano ambiental em caso que o Estado edificou obra pública sem dotá-lo de um sistema de esgoto adequado.
“PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANOS AO MEIO AMBIENTE CAUSADO PELO ESTADO.
SE O ESTADO EDIFICA OBRA PÚBLICA – NO CASO, UM PRESÍDIO - SEM DOTÁ-LA DE UM SISTEMA DE ESGOTO SANITÁRIO ADEQUADO, CAUSANDO PREJUÍZOS AO MEIO AMBIENTE, A AÇÃO CIVIL PÚBLICA É, SIM, A VIA PRÓPRIA PARA OBRIGÁ-LO ÀS CONSTRUÇÕES NECESSÁRIAS À ELIMINAÇÃO DOS DANOS; SUJEITO TAMBÉM ÀS LEIS, O ESTADO TEM, NESSE AMBITO, AS MESMAS RESPONSABILIDADES DOS PARTICULARES. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.”[46]
Imprescindível colacionar a recente decisão proferida por esta mesma 2ª turma do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do Ministro Humberto Martins, acerca da legitimidade de o Poder Judiciário analisar, através de Ação Civil Pública, certos atos do Poder Executivo em benefício da sociedade.
“ADMINISTRATIVO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS – POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS – DIREITO À SAÚDE – FORNECIMENTO DE EQUIPAMENTOS A HOSPITAL UNIVERSITÁRIO – MANIFESTA NECESSIDADE – OBRIGAÇÃO DO ESTADO – AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – NÃO-OPONIBILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL AO MÍNIMO EXISTENCIAL.
1. Não comporta conhecimento a discussão a respeito da legitimidade do Ministério Público para figurar no pólo ativo da presente ação civil pública, em vista de que o Tribunal de origem decidiu a questão unicamente sob o prisma constitucional.
2. Não há como conhecer de recurso especial fundado em dissídio jurisprudencial ante a não-realização do devido cotejo analítico.
3. A partir da consolidação constitucional dos direitos sociais, a função estatal foi profundamente modificada, deixando de ser eminentemente legisladora em pró das liberdades públicas, para se tornar mais ativa com a missão de transformar a realidade social. Em decorrência, não só a administração pública recebeu a incumbência de criar e implementar políticas públicas necessárias à satisfação dos fins constitucionalmente delineados, como também, o Poder Judiciário teve sua margem de atuação ampliada, como forma de fiscalizar e velar pelo fiel cumprimento dos objetivos constitucionais.
4. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais. Com efeito, a correta interpretação do referido princípio, em matéria de políticas públicas, deve ser a de utilizá-lo apenas para limitar a atuação do judiciário quando a administração pública atua dentro dos limites concedidos pela lei. Em casos excepcionais, quando a administração extrapola os limites da competência que lhe fora atribuída e age sem razão, ou fugindo da finalidade a qual estava vinculada, autorizado se encontra o Poder Judiciário a corrigir tal distorção restaurando a ordem jurídica violada.
5. O indivíduo não pode exigir do estado prestações supérfluas, pois isto escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus. Eis a correta compreensão do princípio da reserva do possível, tal como foi formulado pela jurisprudência germânica. Por outro lado, qualquer pleito que vise a fomentar uma existência minimamente decente não pode ser encarado como sem motivos, pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado Democrático de Direito. Por este motivo, o princípio da reserva do possível não pode ser oposto ao princípio do mínimo existencial.
6. Assegurar um mínimo de dignidade humana por meio de serviços públicos essenciais, dentre os quais a educação e a saúde, é escopo da República Federativa do Brasil que não pode ser condicionado à conveniência política do administrador público. A omissão injustificada da administração em efetivar as políticas públicas constitucionalmente definidas e essenciais para a promoção da dignidade humana não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário.
Recurso especial parcialmente conhecido e improvido”.[47]
Cumpre ainda ressaltar que, diante das responsabilidades do Estado quanto ao respeito aos princípios da supremacia do interesse público primário na proteção do meio ambiente em relação ao interesse público secundário e aos interesses públicos privados, do princípio da indisponibilidade do bem ambiental, do princípio da obrigatoriedade da intervenção estatal e do princípio da defesa do ambiente, toda conduta que vise assegurar o cumprimento dos postulados inscritos no art. 225 de nossa Constituição Federal deve ser priorizada.
Assim no REsp 1114012/SC, em que se tratava de uma Ação de Demarcação de Terras Indígenas, foi decidido pela primeira turma do Superior Tribunal de Justiça, tendo como relatora a Ministra Denise Arruda, que “(...) é possível a fixação, pelo Poder Judiciário, de prazo razoável para que o Poder Executivo proceda à demarcação de todas as terras indígenas dos índios Guarani”.[48]
Também merece destaque o acórdão em que a Ministra do STJ, Sra. Eliana Calmon, remeteu processo para reapreciação na primeira instância, da qual teria sido julgado extinto, sem exame de mérito, pois, segundo fundamentação do juiz singular, teria ocorrido violação da separação de poderes. Decidiu a Ministra que a proteção do meio ambiente, no caso de licenciamento ambiental para a instalação, localização, funcionamento, fiscalização e operação de telefonia celular, se harmoniza perfeitamente com as competências funcionais do Ministério Público, bem como é compatível com a via da ação civil pública. Assim:
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE – ESTAÇÕES RÁDIO-BASE DE TELEFONIA CELULAR – PREQUESTIONAMENTO AUSENTE: SÚMULA 211/STJ – EXTINÇÃO LIMINAR DO FEITO – IMPOSSIBILIDADE – PROSSEGUIMENTO DA DEMANDA.
1. É inadmissível o recurso especial quanto a questão não decidida pelo Tribunal de origem, dada a ausência de prequestionamento.
2. Hipótese em que a instância ordinária extinguiu o feito, sem análise do mérito, sob o fundamento de que se tratava de pedido juridicamente impossível, por ofensa ao princípio constitucional da separação dos poderes.
3. O objeto da ação civil pública originária consiste na exigência de licenciamento ambiental para a instalação, a localização, o funcionamento, a fiscalização e a operação de telefonia celular (estações rádio-base).
4. É plenamente viável a apreciação pela instância ordinária do mérito da demanda, que busca a proteção do meio ambiente contra ações com potencial lesivo, pois seu objeto se harmoniza perfeitamente com as competências funcionais do Ministério Público, bem como é compatível com a via da ação civil pública.
5. Recurso especial parcialmente conhecido e provido, para determinar o prosseguimento da ação, devendo o magistrado de 1ª instância decidir o mérito da demanda como entender de direito”.[49]
Ao ajuizar a Ação Civil Pública estará o Ministério Público assegurando a execução de determinada política pública exigível, conforme previsto em nossa carta constitucional, passando o Judiciário apenas a adequar aquela omissão ou conduta inconstitucional por parte da administração pública ao que prevê nossa lei maior, tornando efetivo, conseqüentemente, o princípio da separação de poderes.
5.1.3. Da Alegação de violação à discricionariedade dos Atos Administrativos
Diante da visão doutrinária clássica, atos emanados da administração pública podem ser classificados como vinculados e discricionários, conforme a liberdade do administrador para sua prática.
É vinculado quando, na lição de Hely Lopes Meirelles, “o regramento é tão rígido que a lei não deixa margem a opções, significando que o agente público fica inteiramente preso ao enunciado da lei, em todas as suas especificidades, e que a liberdade do administrador é mínima, pois terá que se ater à enumeração minuciosa do direito positivo para realizá-los eficazmente”.[50]
Classifica-se, porém, como ato discricionário aquele em que há liberdade por parte do administrador na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo, não tendo a lei abrangido todos os aspectos acerca da materialidade do ato, como ocorre nos atos vinculados. Aqui há margem de liberdade de decisão, significando que a Administração tem a possibilidade de optar entre as várias soluções possíveis, desde que legalmente válidas, para atender o interesse público diante do caso concreto.
Traçados os conceitos, parece claro que, em se tratando de ato vinculado, onde todos os elementos para concretização do ato administrativo já estão previamente descritos na lei específica, sem deixar margem de opções para a administração, a possibilidade de controle por parte do Ministério Público e pelo Poder Judiciário é maior, já que, não agindo daquela determinada maneira, estará descumprindo seu dever legal, desobedecendo, consequentemente, a própria Constituição Federal.
Assim, afigura-se possível o ingresso com a Ação Civil Pública em face de Município que deixa de analisar pedido de licenciamento ambiental de determinada empresa, quando por ela solicitada. Também nos casos em que deixa de exigir da empresa potencialmente poluidora o Relatório de Impacto Ambiental para seu licenciamento.
Em tais casos, o controle da administração traduz-se em um controle de legalidade puro e simples, não dando azo a questionamento de legitimidade ou não da sindicabilidade, pois a palavra final dada pelo Poder Judiciário apenas refletirá o conteúdo da lei em questão.
Assim leciona Luiz Roberto Marinoni:
“(...) sempre que a lei regula de forma vinculada a atuação administrativa, obrigando a administração a um determinado comportamento, não se poder falar em insindicabilidade dessa atuação, justamente porque existindo o dever de atuar não há margem para qualquer consideração técnica e política”.[51]
Complementa Maria Sylvia Zanella di Pietro:
“(...) com relação aos atos vinculados, não existe restrição, pois, sendo todos os elementos definidos em lei, caberá ao Judiciário examinar, em todos os seus aspectos, a conformidade do ato com a lei, para decretar a sua nulidade ou se reconhecer que essa conformidade inexistiu”.[52]
Esse o entendimento que sempre prevaleceu em nossa Corte Maior.
“MANDADO DE SEGURANÇA. ANISTIA. MAGISTRADO. REVERSÃO AO SERVIÇO ATIVO. PRESSUPOSTOS NEGATIVOS DO DEFERIMENTO. ATO ADMINISTRATIVO VINCULADO. - POSTAS, NA LEI, AS CONDICIONANTES NEGATIVAS DE REVERSAO AO SERVIÇO ATIVO DO SERVIDOR ANISTIADO, A VALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO INDEFERITÓRIO ESTÁ CONDICIONADA COMO REQUISITO ESSENCIAL, AOS RESPECTIVOS MOTIVOS DETERMINANTES, CUJA EXISTÊNCIA E CONGRUÊNCIA SE SUBMETEM AO CONTROLE JUDICIAL. INVALIDADE DO ATO INDEFERITÓRIO QUE NÃO EXPRESSA A NECESSÁRIA MOTIVAÇÃO LEGAL, IGUALMENTE INEXISTENTE NO PROCESSO ADMINISTRATIVO QUE LHE DA SUPORTE. MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO, EM PARTE”.[53]
No mesmo sentido:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA. CONCURSO PÚBLICO. AGENTE DE DISCIPLINA DO DEGASE. NÃO CREDITAMENTO DE PONTOS EM PROVA DE AVALIAÇÃO DE EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL PELO EXERCÍCIO DO CARGO DE GUARDA MUNICIPAL. ANULAÇÃO DE ATO JURÍDICO. ATO VINCULADO E ATO DISCRICIONÁRIO. DISTINÇÃO. PRELIMINARES QUE SE AFASTAM. PRESCRIÇÃO INOCORRENTE.
Constando do Edital do concurso exigência de experiência profissional em atividades equivalentes às necessárias ao cargo em disputa é preciso observar que equivaler, segundo o dicionário de Caldas Aulete, é ser igual em valor, preço, estimação etc. ou seja, uma coisa equivalente a outra não significa que sejam iguais mas que uma pode ser substituída pela outra. Equivalência não é o mesmo que igualdade e, no caso em apreço, as atribuições do Guarda Municipal não são iguais às do Agente de Disciplina mas, sem dúvida, são equivalentes. Distinção entre atos discricionários e vinculados. “Se o motivo e o objeto forem expressos em lei, o ato é vinculado se não o forem, resta um campo de liberalidade ao administrador e o ato é discricionário.” Segundo a melhor doutrina, sendo vinculado, o ato administrativo fica sempre sujeito ao controle jurisdicional, recomendando-se que a administração deva adequar-se para poder dar às suas decisões caráter de razoabilidade, de logicidade, de congruência. Faltando qualquer dessas qualidades as decisões se manifestam viciadas de excesso de poder, saindo por assim dizer do campo da discricionariedade para ingressar no limiar da arbitrariedade. Sentença confirmada em sua totalidade. DESPROVIMENTO DO RECURSO”.[54]
A questão não é tão simples assim ao tratarmos de ato discricionário, motivo pelo qual dedicaremos mais algumas linhas para sua definição.
Apesar de não haver divergência doutrinária no que tange à concepção de discricionariedade propriamente dita, dividem-se os autores no que tange à sua natureza, conceituando ora como ato político, de faculdade ou de competência atribuída em lei.
Subsistiu durante décadas o entendimento de que, em se tratando de ato administrativo discricionário, estaria o administrador imune a qualquer controle externo, tendo em vista que, ao decidir por um ou por outro caminho, estaria exercitando um ato de poder, portanto, um ato político, que, diante daquela visão, não poderia ser substituída por qualquer outro órgão.
Assim, cabendo privativamente ao membro do Poder Executivo optar, diante dos critérios de oportunidade e conveniência, o momento adequado para implementação de certa política pública, não poderia o Judiciário, que tem por finalidade julgar as demandas de modo imparcial, imune a questões de ordem política, substituir a vontade do administrador pela sua.
De fato, tendo a necessidade de melhor desempenhar o "governo", foi conferida pela doutrina, tradicionalmente, e outrora prevista a nível constitucional (1934 e 1937) maior discricionariedade ao ato político. Neste caso, não haveria razão para interferência judiciária, posto que esta função refere-se à aplicação concreta da lei quando há conflitos de interesses, uma invasão na esfera jurídica de outrem.
Assim leciona José dos Santos Carvalho Filho:
“os atos políticos sofrem um controle especial, que não significa ausência de controle, posto que em razão da proteção a direitos e garantias fundamentais, não se poderia excluir da apreciação judicial nenhum Poder ou função. Diferencia os atos políticos dos administrativos em razão do fundamento constitucional do primeiro”. [55]
Assim também concluiu a D. Desembargadora Selene Maria de Almeida em julgado proferido no ano de 2001, no sentido de que “Existem atos do Poder Público que em decorrência de sua natureza ou finalidade são insuscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário. São os praticados com fundamentos políticos que, por sua natureza discricionária e refratária à apreciação de outro Poder não estão no âmbito do controle judicial”.[56]
Vigorava também a opinião que entendia que o administrador público, ao atuar discricionariamente, estaria realizando a vontade de lei, que lhe outorgou a faculdade de agir mais livremente na escolha da conduta que entende ser apropriada para o caso concreto. Assim, caso fosse o Poder Judiciário legitimado para sindicalizar este ato conferido por lei, estaria desobedecendo a preceito legal.
Fato é que o tratamento em relação à matéria vem sendo modificado, assim, no entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, “não se pode mais conceber a discricionariedade como mera faculdade, ou poder, do agente público, simplesmente porque os institutos do Direito Administrativo hodierno devem se articulados em torno da idéia de dever, de finalidade a ser cumprida, em face da qual a Administração Pública está posta numa situação que os italiano chamam de doverosità, isto é, sujeição a esse dever de atingir a finalidade”.[57]
Tal espectro de liberdade, característico dos atos discricionários, não pode ser tomado pelo administrador sem responsabilidade, nem pode servir de instrumento de legitimação de atuação contrária à ordem instituída, sob pena de converter-se em arbítrio não desejado pelo Estado de Direito.
Dedica-se Maria Silvia Zanella Di Pietro ao tema da seguinte maneira:
“Abandonando o conteúdo puramente político que a discricionariedade tinha no período do jus politiae, insuscetível de controle jurisdicional, assumiu no Estado hodierno uma feição jurídica, compatível com o Estado de Direito Social e Democrático, acompanhando, portanto, a nova conformação do princípio da legalidade. (...) Destarte, pode-se dizer que a discricionariedade não é mais a liberdade limitada pela lei, mas a liberdade de atuação limitada pelo direito”.[58]
Devemos ter em mente que os atos praticados pelos membros do Poder Executivo possuem sempre um fundamento maior, previamente estabelecido em nossa Carta Magna antes da própria realização do ato. Nas palavras de Carlos Ary Sundfeld “a vontade do Estado é funcional, e os agentes públicos são meros canais de expressão da vontade do direito”.[59] Não há dúvida, assim, que o poder discricionário nada mais é que o cumprimento do dever de alcançar a finalidade legal, logo, é um dever discricionário.
Assim, devemos qualificar como discricionários os atos que levam em conta a margem de liberdade de escolha entre comportamentos cabíveis, norteados pelo direito e vinculados sempre a uma finalidade de interesse público.
Podemos, portanto, concluir que, apesar de a discricionariedade conferir maior amplitude de ação, não há prerrogativa descontrolada ao agente público, não possibilitando agir como bem entender, haja vista que há limitantes impostos pelo direito vigente, mormente em um Estado Social e Democrático de Direito, no qual o titular do poder político (o povo) define as regras das quais não pode se desviar aquele que tão-somente exerce o poder autorizado como mandatário.
Nos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“(...) reclama do intérprete a intelecção de que o sujeito que a exerce recebeu da ordem jurídica um dever: o dever de alcançar certa finalidade preestabelecida, de tal sorte que os poderes que lhe assistem foram-lhe deferidos para serem manejados instrumentalmente, isto é, como meios reputados aptos para atender à finalidade que lhes justificou a outorga”.[60]
Devemos também levar em consideração que, para que o administrador possa agir em conformidade com a Constituição, obedecendo, portanto, à legalidade, deve respeitar tanto as leis em sentido estrito quanto os princípios regentes das relações jurídico administrativas, mormente os elencados no art. 37 de nossa Carta Magna.
Afigura-se possível, portanto, o controle externo dos atos, mesmo dotados de discricionariedade administrativa, visto que não estão estes infensos à conformação aos princípios da legalidade, razoabilidade, proporcionalidade, publicidade, moralidade, impessoalidade e eficiência que devem reger a atuação da Administração Pública.
Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro:
“princípios como o da razoabilidade, da moralidade administrativa, os princípios gerais de direito, o princípio da supremacia do interesse público, acolhidos implícita ou explicitamente da Constituição de 1988, limitam a discricionariedade administrativa, norteiam a tarefa do legislador e ampliam a ação do Poder Judiciário, que não poderá cingir-se ao exame puramente formal da lei e do ato administrativo, pois terá que confrontá-los com os valores consagrados como dogmas da Constituição”.[61]
Em se tratando de matéria ambiental, imprescindível a observância dos princípios previstos em nossa Constituição, como o Princípio da Supremacia do Interesse Público na Proteção do Meio Ambiente em Relação aos Interesses Privados, o Princípio da Indisponibilidade do Poder Público na Proteção ao Meio Ambiente, o Princípio da Obrigatoriedade da Intervenção Estatal, o Princípio da Prevenção, o Princípio da Precaução, o Princípio da Defesa do Meio Ambiente, o Princípio da Exigibilidade do Estudo Prévio de Impacto Ambiental, o Princípio da Função Socioambiental da Propriedade, dentre outros.
Não há que falar em possibilidade de deliberação da Administração Pública sobre a oportunidade ou a conveniência em implementar políticas públicas já determinadas pela Constituição Federal. A discricionariedade garantida ao administrador consiste tão-só em eleger a melhor forma de consecução dos objetivos já delineados pelo texto constitucional e pelas normas infraconstitucionais de integração.
Como leciona a Procuradora Federal Luiza Cristina Fonseca Frischeisen “a discussão, no âmbito do controle externo da Administração, não se dará quanto ao dever do administrador, mas sim quanto aos meios que está usando para a implementação de políticas públicas, se o escolhido era o melhor, o mais adequado, o mais razoável para possibilitar o eficaz exercício dos direitos sociais”.[62]
Ademais, diante da Emenda Constitucional nº 19/98, o administrador vê-se limitado no exercício de sua função ao princípio da eficiência. Com isso, no exercício da atuação discricionária, espera-se que o administrador, ao decidir por uma dada solução, tome a decisão mais apta para atingir a finalidade legal.
Todo e qualquer ato da Administração Pública deverá estar submetido à ordem constitucional vigente, devendo obediência aos objetivos e fundamentos traçados pelo legislador constituinte e ordinário, e como cabe ao Poder Judiciário velar pela constitucionalidade das ações estatais, nenhuma questão, mesmo política, pode ser subtraída de sua apreciação. Nesse sentido:
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRANSPORTE DE ALUNOS DA REDE ESTADUAL DE ENSINO. OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL INDISPONÍVEL. DEVER DO ESTADO. 1. A educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício. Dever a ele imposto pelo preceito veiculado pelo artigo 205 da Constituição do Brasil. A omissão da Administração importa afronta à Constituição. 2. O Supremo fixou entendimento no sentido de que "[a] educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental[...]. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais impregnados de estatura constitucional". Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento”.[63]
Não podemos deixar de colacionar importante decisão do Ministro do STF, Sr. Luiz Fux, no que tange à coleta de lixo, como serviço imprescindível à saúde pública.
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. COLETA DE LIXO. SERVIÇO ESSENCIAL. PRESTAÇÃO DESCONTINUADA. PREJUÍZO À SAÚDE PÚBLICA.
DIREITO FUNDAMENTAL. NORMA DE NATUREZA PROGRAMÁTICA. AUTO-EXECUTORIEDADE. PROTEÇÃO POR VIA DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POSSIBILIDADE. ESFERA DE DISCRICIONARIEDADE DO ADMINISTRADOR. INGERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO.
1. Resta estreme de dúvidas que a coleta de lixo constitui serviço essencial, imprescindível à manutenção da saúde pública, o que o torna submisso à regra da continuidade. Sua interrupção, ou ainda, a sua prestação de forma descontinuada, extrapola os limites da legalidade e afronta a cláusula pétrea de respeito à dignidade humana, porquanto o cidadão necessita utilizar-se desse serviço público, indispensável à sua vida em comunidade.
2. Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso cogentes e eficazes suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias, Leis Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Trata-se de direito com normatividade mais do que suficiente, porquanto se define pelo dever, indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado.
3. Em função do princípio da inafastabilidade consagrado constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o assegura, sendo certo que todos os cidadãos residentes em Cambuquira encartam-se na esfera desse direito, por isso a homogeneidade e transindividualidade do mesmo a ensejar a bem manejada ação civil pública.
4. A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea.
5. Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar a saúde pública a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais.
6. Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única dúvida que se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque, se programática ou definidora de direitos.
7. As meras diretrizes traçadas pelas políticas públicas não são ainda direitos senão promessas de lege ferenda, encartando-se na esfera insindicável pelo Poder Judiciário, qual a da oportunidade de sua implementação.
8. Diversa é a hipótese segundo a qual a Constituição Federal consagra um direito e a norma infraconstitucional o explicita, impondo-se ao judiciário torná-lo realidade, ainda que para isso, resulte obrigação de fazer, com repercussão na esfera orçamentária.
9. Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública implica em dispêndio e atuar, sem que isso infrinja a harmonia dos poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a realização prática da promessa constitucional.
10. "A questão do lixo é prioritária, porque está em jogo a saúde pública e o meio ambiente." Ademais, "A coleta do lixo e a limpeza dos logradouros públicos são classificados como serviços públicos essenciais e necessários para a sobrevivência do grupo social e do próprio Estado, porque visam a atender as necessidades inadiáveis da comunidade, conforme estabelecem os arts. 10 e 11 da Lei n.º 7.783/89. Por tais razões, os serviços públicos desta natureza são regidos pelo PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE."
11. Recurso especial provido”.[64]
No que tange à omissão administrativa na implementação de políticas públicas surge o questionamento: em se tratando de um ato discricionário, poderia ser o silêncio da administração uma dentre as escolhas cabíveis perante o caso concreto, ou seja, poderia ser a inércia da administração a melhor opção que atenda aos pressupostos da conveniência e oportunidade em se tratando de ato administrativo discricionário?
Para Celso Antônio Bandeira de Mello a omissão não poderia ser a melhor opção pelo simples fato de que o não atuar da administração acarretaria um fato e não um ato administrativo, pela falta do elemento voluntariedade. Assim, “como o ato administrativo é uma declaração jurídica, o silêncio não é ato jurídico, haja vista que, quem se abstém de declarar, não declara nada, não pratica ato algum”.[65]
Porém, e no caso de a própria lei estabelecer que o silêncio da administração importe em determinada decisão? Neste caso, obviamente, seria lícito o Poder Executivo deixar de agir, já que, para tanto, estaria escolhendo uma dentre as várias opções que a lei lhe conferiu no seu atuar.
Portanto, faz-se necessário distinguir as situações em que a omissão tem por antecedente o exercício da discricionariedade daquelas em que a inércia não tem qualquer justificativa, nesta prevalecendo o descaso com a coisa pública por parte do administrador, que não examina a situação real posta ao seu alcance.
Em se tratando de pura inércia ante os fatos de relevância social que demandarem providências concretas, no caso de omissão administrativa sem qualquer justificativa, maior a probabilidade de desatendimento do interesse público subjacente e, consequentemente, da incidência de controle externo pelo Ministério Público ou pelo Judiciário.
Conclui-se que a omissão ora pode ser caracterizada como fato jurídico-administrativo (quando a inação é precedida de análise de conveniência e oportunidade, com a tomada da decisão) ora mera situação de fato (quando há simplesmente o silêncio, desacompanhado de qualquer providência administrativa). Devemos ter em mente que em ambas as situações o controle é possível, desde que a inércia seja ilícita.
Ademais, a partir do princípio da publicidade, tem o juiz o dever de, ao decidir o caso concreto posto à sua apreciação, fundamentar sua decisão, tornando possível a análise da legitimidade ou não da intromissão perante os Poderes Públicos, conforme previsto no art. 93, inciso IX da Constituição Federal.[66]
Assim, nas palavras de José Carlos Fragoso:
“A motivação da sentença é exigência de todas as legislações modernas, onde exerce, como diz FRANCO CORDEIRO (“Procedura Penale”, 1966, p. 615), função de defesa do cidadão contra o arbítrio do juiz. De outra parte, a motivação constitui também garantia para o Estado, pois interessa a este que sua vontade superior seja exatamente aplicada e que se administre corretamente a justiça. O juiz mesmo, protege-se, mediante o cumprimento da obrigação de motivar a sentença, contra a suspeita de arbitrariedade, de parcialidade ou de outra injustiça. (MANZINI, “Tratado de Derecho Procesal Penal”, trad., vol. IV, p.490). Já NUVOLONE assinala que o controle de motivação por parte do juiz torna-se um problema de garantias e, pois, lato sensu, de legalidade, de modo que em alguns ordenamentos (entre eles o italiano), a Corte de Cassação se arroga o dever de controlar não é só existência, mas também a logicidade da motivação”.[67]
5.1.4. Da Alegação da Indisponibilidade Financeira e Orçamentária
Sabemos que, para realização de atos concretos pela administração, é necessária dotação orçamentária prévia, com o intuito de evitar que os gastos públicos suplantem as despesas, garantindo-se, portanto, o equilíbrio das contas públicas.
A partir desta premissa, argumentam alguns doutrinadores que não seria possível o Judiciário impor obrigação de fazer, diante da ausência de disponibilidade financeira para a realização de certa política concreta, inclusive pelo fato de que caberia apenas ao administrador sopesar acerca da conveniência e oportunidade de como, quando e onde aplicar os recursos públicos disponíveis.
Ressaltam, portanto, a tese da inoponibilidade à Administração Pública de determinações que constituam ingerência em planejamento financeiro, diante da rigidez orçamentária com que lidam os governantes no sistema jurídico pátrio, mormente quando deve o Poder Executivo observar o disposto nos artigos 165 a 169 da Constituição Federal que define regras orçamentárias a serem seguida pelos Poderes Públicos, como, entre outras: a) o estabelecimento do plano plurianual, das diretrizes orçamentárias e dos orçamentos anuais por leis de iniciativa do Executivo; b) o estabelecimento, pela lei instituidora do plano plurianual, das diretrizes, dos objetivos e das metas da Administração Pública; c) a determinação de que a Lei de Diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e as prioridades da Administração Pública, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, e orientará a elaboração da lei orçamentária anula; d) a determinação de que a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho á previsão da receita e à fixação de despesa; e) a vedação do início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual; f) a vedação da realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais; g) a vedação da realização de operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta; h) a vedação da abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa e sem indicação dos recursos correspondentes.
Argumenta-se que as políticas públicas já estão previamente atreladas às disposições contidas nas leis orçamentárias (planos anuais ou plurianuais), diante de sua caracterização como metas a serem alcançadas pela Administração Pública, como previsto no art. 165 da Constituição Federal.
Assim, pelo fato de já terem sido destinados valores para custear despesas específicas de cada exercício financeiro seguinte, e, diante da escassez dos mesmos, se mostraria inviável a majoração dos gastos públicos por decisão do Poder Judiciário em razão da indisponibilidade de recursos para arcar com esta nova obrigação, tendo em vista que não teria sido destinada nenhuma verba específica para tal fim.
Assim destaca o Procurador da República, Sérgio Cruz Arenhart:
“(...) não há maneira para impor-se ao Poder Público a obrigação de atuar em determinado sentido, porque pode haver restrições de ordem material e, especialmente, orçamentárias que impeçam este agir. Considerando que o orçamento é limitado – e que cabe ao poder discricionário do Estado a escolha da prioridade dos investimentos – não poderia o Poder Judiciário substituir-se aos legítimos administradores, para ditar a forma como o dinheiro público deve ser prioritariamente gasto. Desse modo, os direitos (todos eles) estariam condicionados, em sua realização pelo Poder Público, às capacidades financeiras do Estado, o que tornaria esta realização insindicável pelo Poder Judiciário”.[68]
No mesmo sentido decidiu o Ministro Celso de Mello no julgado abaixo colacionado:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO RECURSO DE AGRAVO - REVISÃO DE BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS - INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 9.032/95 A BENEFÍCIOS CONCEDIDOS ANTES DE SUA VIGÊNCIA - AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO, NESSE DIPLOMA LEGISLATIVO, DE SUA APLICAÇÃO RETROATIVA - INEXISTÊNCIA, AINDA, NA LEI, DE CLÁUSULA INDICATIVA DA FONTE DE CUSTEIO TOTAL CORRESPONDENTE À MAJORAÇÃO DO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO - ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO COMO LEGISLADOR POSITIVO - VEDAÇÃO - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. - Os benefícios previdenciários devem regular-se pela lei vigente ao tempo em que preenchidos os requisitos necessários à sua concessão. Incidência, nesse domínio, da regra "tempus regit actum", que indica o estatuto de regência ordinariamente aplicável em matéria de instituição e/ou de majoração de benefícios de caráter previdenciário. Precedentes. - A majoração de benefícios previdenciários, além de submetida ao postulado da contrapartida (CF, art. 195, § 5º), também depende, para efeito de sua legítima adequação ao texto da Constituição da República, da observância do princípio da reserva de lei formal, cuja incidência traduz limitação ao exercício da atividade jurisdicional do Estado. Precedentes. - Não se revela constitucionalmente possível, ao Poder Judiciário, sob fundamento de isonomia, estender, em sede jurisdicional, majoração de benefício previdenciário, quando inexistente, na lei, a indicação da correspondente fonte de custeio total, sob pena de o Tribunal, se assim proceder, atuar na anômala condição de legislador positivo, transgredindo, desse modo, o princípio da separação de poderes. Precedentes. - A Lei nº 9.032/95, por não veicular qualquer cláusula autorizadora de sua aplicação retroativa, torna impertinente a invocação da Súmula 654/STF”.[69]
O cerne do problema está no confronto entre a necessária previsão legal anterior fixando a parcela do orçamento a ser destinada para essa ou aquela finalidade, e a hipótese de necessária intervenção do Ministério Público e do Poder Judiciário visando a efetivação de certa política que, apesar de não ter sido objeto de destinação orçamentária anteriormente, se mostra necessária.
Entende-se atualmente que a alegação de dificuldade financeira ou orçamentária não deve sempre prevalecer pelo fato de que, caso prevalecesse, passaria a administração pública a agir do modo que melhor lhe aprouve-se, já que, pela alegação de indisponibilidade financeira ou orçamentária estaria livre de qualquer controle judicial ou extrajudicial, situação inadmissível num Estado Social e Democrático de Direito.
Acrescente-se o fato de que, havendo previsão constitucional que define como prioridade certa política social, tem-se como inadmissível a alegação de falta de verba orçamentária, já que a destinação de verba pública para esta ou aquela ação está umbilicalmente ligada à priorização deste ou daquele campo de atuação administrativa.
A falta de destinação de recursos financeiros por parte dos Poderes Públicos para implementação de uma política prioritária, reconhecida constitucionalmente como de interesse especial, não pode servir de motivo para inação da administração pública no tocante à realização daquele dever previsto em nossa Carta Maior, já que este diploma deve orientar o próprio administrador na escolha das áreas de atuação a que devem ser destinados recursos especiais.
No mesmo sentindo, o Desembargador Sérgio Gischkow Pereira votou no sentido da inadmissibilidade da alegação de falta de verba orçamentária em face da previsão constitucional que define como prioridade questões de interesse da criança e adolescente, assim: “A CF, em seu art. 227, define como prioridade absoluta questões de interesse da criança e do adolescente; assim, não pode o Estado-membro, alegando insuficiência orçamentária, desobrigar-se da implantação de programa de internação e semi-liberdade para adolescentes infratores, podendo o Ministério Público ajuizar ação civil pública para que a Administração Estadual cumpra tal previsão legal, não se tratando, na hipótese, de afronta ao poder discricionário do administrador público, mas de exigir-lhe a observância do mandamento constitucional”.[70]
Assim, justamente por não poder a Administração Pública se isentar dos seus deveres constitucionalmente previstos em virtude da falta de disponibilidade orçamentária, ensina Luiz Guilherme Marinoni que “nada impede que a tutela inibitória ordene a realização da incumbência devida pela administração e, alternativamente, a disponibilização, em orçamento, do valor necessário para a consecução da sua obrigação legal”.[71]
Ademais, devemos levar em consideração que a lei orçamentária anual tem caráter nitidamente facultativo para o gestor público no que tange à execução total da programação estabelecida. Assim, os recursos destinados a uma obra específica podem ser remanejados para outra que se mostre mais urgente, motivo pelo qual aquela lei formal não gera direito adquirido.
O caráter aberto da lei orçamentária anual é decorrente da própria dinâmica social e econômica, que, diante das rápidas mudanças ocorridas no meio social, faz com que seja absolutamente inviável a petrificação das hipóteses prioritárias de ação do Poder Público. Portanto, o proposital silêncio da norma justifica a viabilidade do controle judicial, diante do espaço em aberto deixado à administração pública.
Apesar do exposto, alguns doutrinadores de peso posicionam-se no sentido da imutabilidade da lei orçamentária anual. Assim, Humberto Theodoro Júnior aduz que “completamente injurídico é o manejo de verbas orçamentárias ou para alterar as prioridades administrativas quanto à aplicação das disponibilidades do tesouro, dando preferência a um investimento em lugar de outro, ou simplesmente, impondo à Administração o dever de realizar uma obra só pelo fato de ser de interesse coletivo”.[72]
Porém, felizmente, tem prevalecido a tese oposta, como se pode constatar a partir da brilhante tese proferida por Lúcia Valle Figueiredo, analisando a possibilidade de o Poder Judiciário impor à Administração, no terreno do saneamento básico, obrigação de tratar dos efluentes urbanos:
“Mais especificamente a Constituição do Estado de São Paulo, no seu art. 208, estabelece que “[fica vedado o lançamento de efluentes e esgotos urbanos e industriais, sem o devido tratamento, em qualquer corpo d’água]”. Tal norma, sem dúvida, é de eficácia completa; traz consigo um não-fazer objetivo, retirando do administrador qualquer possibilidade de optar entre tratar ou não tratar os efluentes urbanos (...). Por conseguinte, eventual recusa do Poder Público em cumprir determinação constitucional pode – e deve – ser repreendida pela via da ação civil pública. A observação tem grande importância em matéria orçamentária. Há valores que são priorizados pelas Constituições Federal e Estadual. Aqui, também por vezes, o administrador não tem qualquer discricionariedade, pois, do contrário, seria lhe dar o poder de negar, pela via transversa, a escala de prioridades e de urgência que, no Brasil e no Estado de São Paulo, foi constitucionalmente fixada. Nessa linha de raciocínio, vejo como possível a cumulação de pedidos em ação civil pública, um referente à obrigação de não-fazer (deixar de lançar efluentes não-tratados) e outro pertinente à inclusão da respectiva despesa no orçamento do ano seguinte. Trata-se de uma sofisticação do conceito de controle dos atos administrativos: se a administração tem um dever e o descumpre, é razoável requerer que, junto com a determinação judicial do não-fazer, sejam viabilizados os recursos que permitam a realização do objetivo pretendido”.[73]
Deve-se levar em consideração que o Estado trabalha vinculado a um orçamento. Portanto, quando se condena o Estado a atuar e esta atuação gera a necessidade de uma obra pública, deve-se perquirir, no momento procedimental próprio, se aquele ente estatal possui verba em seu orçamento compatível. Se existirem fundos próprios e suficientes para a implementação da obra almejada, será o Poder Público condenado de imediato a realizar tal obra. Porém, se o orçamento daquele ano não compuser mais a magnitude desta obra, o ente estatal será inicialmente condenado a incluir no próximo orçamento verba específica à obra pleiteada, sendo em sequência condenado à realização propriamente da dita obra.
Conclui-se que, inexistindo recursos suficientes no orçamento do órgão estatal para a concreção das políticas sociais exigidas, a determinação de seu cumprimento passará, necessariamente, pela previsão de verbas para o exercício seguinte, pela formalização de crédito adicional, nas hipóteses admitidas pela legislação de regência ou ainda pela transferência de recursos destinados a outra política menos essencial.
Contudo, alguns poucos juízes têm decidido no sentido de objetar a aplicação de políticas públicas prioritárias através da alegação de que, diante da impossibilidade econômica em implementar todas as políticas necessárias, e que, diante da escassez dos recursos públicos, torna-se impossível a concretização de todas metas exigidas. Assim:
“AÇÃO OBJETIVANDO A CONDENAÇÃO DO ENTE PÚBLICO A REALIZAR OBRAS DE SANEAMENTO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA CORRETA. IMPOSSIBILIDADE DE O JUDICIÁRIO INTERVIR EM MATÉRIA DE ÍNDOLE PURAMENTE POLÍTICO-ADMINISTRATIVA. CABE AO ADMINISTRADOR, ELEITO SEGUNDO OS PADRÕES DEMOCRÁTICOS ADOTADOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DEFINIR AS METAS E AS PRIORIDADES A SEREM OBSERVADAS NA DESTINAÇÃO DO ORÇAMENTO PÚBLICO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO”.[74]
Porém, necessário rechaçar a citada tese, já que em relação às políticas públicas asseguradoras de direitos socioambientais, inviável a alegação do princípio da reserva do possível, pois implicaria em verdadeira afronta ao ordenamento jurídico brasileiro, que elegeu como prioridade máxima a garantia da existência digna aos cidadãos, para o que é imprescindível a concretização da Ordem Socioambiental Constitucional.
Esta tem sido a orientação dominante do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INIBITÓRIA CUMULADA COM INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS. DEMANDA AJUIZADA POR USUÁRIOS DO HOTEL POPULAR, DECORRENTE DA LIMITAÇÃO DO USO DA HOSPEDARIA PARA TRÊS DIÁRIAS SEMANAIS. POLÍTICA PÚBLICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL AO TRABALHADOR OU PESSOAS NA BUSCA DE EMPREGO QUE NÃO POSSUEM CONDIÇÕES DE ARCAR COM A DESPESA DE TRANSPORTE PARA RETORNAREM DIARIAMENTE ÀS SUAS RESIDÊNCIAS. RESTRIÇÃO DE USO QUE SE CONSTITUI MÉRITO ADMINISTRATIVO. POSSIBILIDADE DO ESTABELECIMENTO DE NOVA DISCIPLINA DE ATENDIMENTO E UTILIZAÇÃO DA HOSPEDARIA COM VISTAS A MELHOR ATENDER AO INTERESSE PÚBLICO. MATÉRIA QUE SE ENCONTRA INSERTA NOS DIREITOS SOCIAIS PRESTACIONAIS. IMPOSSIBILIDADE DO ACOLHIMENTO DA PRETENSÃO DIANTE DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA MATERIAL. A Administração Pública dispõe de plena discricionariedade para estabelecer novos critérios de utilização do serviço, desde que visando melhor atender ao interesse público. Não pode o Poder Judiciário, substituindo-se ao Administrador Público, estabelecer os critérios a serem adotados para a gerência do Hotel Popular, cabendo ao órgão executor planejar, dirigir, organizar e controlar seu funcionamento, efetivando as políticas públicas de assistência social, como forma de apaziguar as diferenças sociais. Direitos prestacionais materiais que estão sujeitos à existência de recursos públicos para satisfazê-los, encontrando-se dependentes da conjuntura econômica vigente no momento, estando, assim, submetidos à reserva do possível, de forma a impedir a imediata efetivação do comando inserido no texto constitucional. Cláusula de reserva do possível que não pode conduzir à ineficácia dos direitos sociais, sendo imperiosa a necessidade de preservação da integridade e intangibilidade do núcleo consubstanciador do mínimo existencial necessário a uma existência digna e à própria sobrevivência do indivíduo. O princípio da vedação do retrocesso prestigia o desenvolvimento e a evolução dos direitos sociais impedindo, assim, que normas de caráter fundamental venham a sofrer limitações de efetividade e eficácia, mediante reformas legislativas, constitucionais, ou administrativas, de forma a causar desestabilidade jurídica. Impossibilidade de atendimento da pretensão, visto que a via processual adotada implicará em violação ao princípio da isonomia material, visto que, o êxito da demanda, prestigiará os autores em detrimento dos demais usuários que se encontram na mesma situação jurídica. A limitação de recursos, que acaba por desaguar na restrição a três diárias semanais por pessoa o direito ao uso da hospedaria, deve ser suportada de forma igualitária pelos administrados, não havendo justificativa para que somente alguns recebam os benefícios da prestação pública na forma anteriormente estabelecida, o que implica em ofensa ao princípio da isonomia, vetor axiológico da Constituição da Republica Federativa do Brasil. Inexistência de transgressão a bem integrante da personalidade. Provimento do recurso dos réus e desprovimento do apelo dos autores”.[75]
No mesmo sentido:
“MEDICAMENTOS. ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. Preliminar de ilegitimidade passiva rejeitada. Lista básica. Responsabilidade solidária dos entes federativos na consecução do direito à saúde. Direito à vida e à saúde, erigidos diretamente da Constituição Federal. Aplicabilidade imediata das normas definidoras de direito fundamentais, que não se compadece com a alegação de ausência de fonte de custeio. A reserva do possível não pode servir de escusa ao descumprimento de mandamento fundado em sede constitucional, notadamente quando acarretar a supressão de direitos fundamentais, em atenção ao mínimo existencial e ao postulado da dignidade da pessoa humana. No dever de prestar saúde compreende-se o fornecimento de produtos indispensáveis à manutenção daquela. Desnecessidade de laudo médico expedido por profissional da rede pública de saúde. Receita prescrita por médico particular. Sua idoneidade. Percepção de honorários pela Defensoria Pública que decorre do princípio do sucumbimento. Valor arbitrado em patamar excessivo. Sua redução. Aplicação dos enunciados n° 03, 04 e 27, do Aviso TJ n° 69/2009. Primeiro e terceiro recursos providos e segundo recurso a que se nega seguimento”.[76]
5.1.5. Da Alegação de Impossibilidade de Hierarquização e Priorização das Atividades Administrativas
A Constituição Federal, ao enunciar os inúmeros deveres do Estado, em função de seu caráter abrangente, não estabelece qualquer escala de importância ou prioridades entre eles. Como prepondera a concepção de que todos os deveres impostos ao Estado devem ser cumpridos, torna-se impossível qualquer priorização ou hierarquização entre as áreas nas quais deve o Estado atuar, de modo a viabilizar o implemento de todos os direitos sociais.
Porém, sabemos que diante da escassez de recursos, insuficientes para dar eficácia aos comandos estipulados em nossa Carta Magna, mormente pela realidade nacional marcada pela pobreza (em todos os sentidos), tornam-se impossível a realização de todos as deveres constitucionais.
Surge, portanto, a questão: Se não há escala de prioridades nem recursos suficientes para efetivar todos os direitos sociais, poderia o Ministério Público e, por conseqüência, o Poder Judiciário recomendar ou impor ao administrador a concretização de determinada medida, rompendo a barreira representada pela discricionariedade administrativa?
Posicionou-se pela negativa o Desembargador Relator Cunha de Abreu na Ação Civil Pública impetrada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo na qual visava a construção de obras em escola estadual do Sertãozinho. Assim:
“ (...) por definição um não administrador, não pode e não deve imiscuir-se na competência do Executivo, subvertendo a divisão das obrigações no trato da coisa pública para a seu talante priorizar e hierarquizar aquilo que sob sua ótica lhe pareça mais urgente dentro da ata incomensurável de urgências deste país”.[77]
No mesmo sentido:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Imposição a entidade paraestatal para realização de obras em prazo determinado sob pena de multa – Inadmissibilidade – Intervenção no Poder Executivo pelo Judiciário – Seleção de prioridades e de existência de recursos orçamentários – Esfera específica do Poder Executivo – Carência de ação – Recurso Provido”.[78]
Entende-se, porém, que apenas limitar genericamente a possibilidade de sindicalização dos atos do executivo no que tange a escolhas de políticas públicas, diante da escala genérica de hierarquização e priorização constante em nossa Constituição Federal, não é o caminho certo, tendo em vista que a legitimidade para intervenção ministerial deverá ser aferida caso a caso, devendo ser observados todos os detalhes do caso concreto.
Assim, mostra-se necessário o exame da discriminação administrativa a partir da compatibilidade ou não com a ordem jurídica e com o interesse público.
Celso Antônio Bandeira de Mello, ao passar pelo tema, ressalta em sua obra que, “para a concretização da igualdade, cabe lembrar que insuficiente recorrer-se à notória afirmação de Aristóteles, assaz de vezes repetidas, segundo cujos termos a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.” (...) Assim, para que um dispositivo legal seja convincente com a isonomia, necessário que concorram quatro elementos que, no seu dizer são: “a) que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto um só indivíduo; b) que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferenciados; c) que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica; d) que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público”.[79]
A partir de tais premissas, não poderia um Município implantar sistema de saneamento básico em todos os bairros de periferia, com a omissão de um, por qualquer motivo alegado. Tal hipótese esbarraria no primeiro elemento, já que estaria desequiparando um ou alguns bairros, situação em que não seria(m) privilegiado(s) pela política implementada, ao revés de todos os outros que teriam saneamento básico assegurado. Aqui seria viável o controle da omissão pelo parquet, já que é manifesta e concretamente lesiva aos interesses sociais.
Portanto, só poderão o Ministério Público e o Judiciário interferir na hierarquização e na priorização de valores levados em consideração pelo administrador público de forma específica, e não genericamente, e desde que haja efetiva lesão ou grave perigo a direitos consagrados na Constituição, mormente quando relativos a direitos difusos e coletivos. Ainda mais, o ato ou omissão administrativa deve ser manifestadamente irrazoável, devendo-se, portanto, verificar se a discriminação que justifica o ato ou omissão é compatível ou não com a ordem jurídica e o interesse primário.
Neste sentido decidiu a 4º Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra o DNER – Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, entendendo correta a decisão do juiz de primeira instância que determinou a imediata adoção de medidas emergenciais de segurança com o intuito de evitar que desastres continuassem ocorrendo em rodovia, entendendo que a segurança do trânsito deveria prevalecer em relação às questões administrativas, como licitação para contratação de empreiteiras. Ex vi:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ADOÇÃO DE MEDIDAS EMERGENCIAIS EM RODOVIA.
1. NÃO OBSTANTE A EFETIVA CONTRATAÇÃO DE EMPRESA CONSTRUTORA, A SEGURANÇA DO TRÂNSITO LOCAL NÃO PODE ESPERAR O FIM DAS COMPLEXAS TRATATIVAS QUE, DE REGRA, MARCAM AS RELAÇÕES ENTRE O PODER PÚBLICO E AS EMPREITEIRAS. É NECESSÁRIA A IMEDIATA IMPLEMENTAÇÃO DE CONDIÇÕES MÍNIMAS DE SEGURANÇA PARA O TRÂNSITO NA RODOVIA, SENDO INQUESTIONÁVEL A GRAVIDADE DA SITUAÇÃO.
2. CORRETA E ADEQUADA A R. DECISÃO QUE DETERMINOU A IMEDIATA ADOÇÃO DE MEDIDAS EMERGENCIAIS DE SEGURANÇA PARA EVITAR QUE DESASTRES CONTINUEM OCORRENDO NA RODOVIA.
3. RECURSO IMPROVIDO”.[80]
5.1.6. Da Alegação de Ausência de Previsão Legal do Direito Material Pleiteado
Argumenta-se que, sendo a lei que Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, de caráter adjetivo, regulando a utilização de um instrumento de direito processual, seria incabível a propositura de ação civil pública com o objetivo de condenação em obrigação de fazer ou de não-fazer contra ação/omissão administrativa se o direito material não for previsto no ordenamento jurídico.
Assim assevera Rodolfo de Camargo Mancuso:
“a Lei nº 7.347/85 é de índole predominantemente processual, visto que, basicamente, objetiva oferecer os instrumentos processuais hábeis à efetivação, em juízo da tutela aos interesses difusos reconhecidos nos textos substantivos.”[81]
No mesmo sentido, Hely Lopes Meirelles:
“A Lei nº 7.347/85 é unicamente adjetiva, de caráter processual, pelo que a ação e condenação devem basear-se em disposição de alguma norma substantiva, de Direito Material, da União, do Estado ou do Município, que tipifique a infração a ser reconhecida e punida no Judiciário, independentemente de qualquer outra sanção administrativa ou penal em que incida o infrator”.[82]
Resumidamente, Toshio Mukai lança sua posição:
“Na ação civil pública o Judiciário não pode, a pretexto de obrigar a não fazer, criar direito material para tal, visando compelir o Executivo a determinada conduta administrativa (comissiva ou omissiva); como conseqüência, sem que o Executivo esteja a violar uma lei substantiva, não pode o Judiciário compeli-lo a uma obrigação de fazer ou não-fazer, tão-só com base no art. 3º da Lei nº 7.347/85”.[83]
Portanto, deve-se pressupor que a obrigação de fazer deve encontrar suas lindes demarcados na lei subjetiva, não cabendo ao Poder Judiciário criar discricionariamente a obrigação. Assim, nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho “à luz dos elementos que entender convenientes e oportunos para a hipótese, um postulado que resulta do princípio da legalidade estrita, segundo o qual ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei, regra, aliás, de índole constitucional”.[84]
A ação civil pública, como instrumento que levará a demanda à apreciação do Judiciário, se presta à defesa de quaisquer interesses difusos e coletivos, porém, desde que previstos em normas de natureza material. Do contrário, na lição de Humberto Theodoro Júnior, “chegar-se-ia ao extremo absurdo de confiar ao próprio titular da ação o poder de definir, sem parâmetro algum, o interesse merecedor da tutela jurisdicional, (...) e, a ação civil pública, de mecanismo de garantia dos direitos e interesses difusos se transformaria em um instrumento do arbítrio daqueles que estão legitimados a propô-la”.[85]
A propósito, decidiu o MM. Juiz de Direito em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de Goiás buscando a manutenção e conservação do patrimônio público de Goiânia, pela inépcia da inicial, reconhecendo a impossibilidade jurídica do pedido, tendo em vista que não existiria direito material a fundamentar a viabilidade da ação, além do fato de não ser imputável à administração municipal uma obrigação de fazer, haja vista circunscrever-se a manutenção do patrimônio público na esfera do poder discricionário do Executivo Municipal.[86]
Porém, em que pesem os sólidos argumentos lançados por esses eminentes doutrinadores, apesar do caráter nitidamente processual da ação civil pública, a exigência de norma específica expressa é descabida, pois, não se faz necessário a determinação de onde, quando e como fazer, para que seja possível determinação judicial corrigindo o ato ou omissão do administrador, bastando, porém, apenas que o dever de agir esteja previsto genericamente no ordenamento jurídico para que seja possível ingressar o Ministério Público com tal instrumento processual.
Assim, daquela decisão que julgou inepta a ação civil pública ajuizada pelo parquet de Goiás, foi impetrado recurso por este órgão, tendo a 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de Goiás, através do voto do relator Antônio Nery da Silva, reformado aquela decisão no seguinte sentido:
“O julgador monocrático equivocou-se na apreciação do pedido em tela, pois, na verdade, busca-se a responsabilização civil do município de Goiânia pelos danos materializados em função da omissão do Poder Público local para com as praças enfocadas na ação. Assim, alega que em nenhum momento se pretendeu usurpar as funções da Administração Pública, ditando-lhe qual o procedimento a seguir, mas, tão-somente, quer-lhe impor o ônus legalmente conferido de manutenção e conservação do patrimônio público. No seu dizer, essa responsabilidade municipal está devidamente preconizada pelo art. 23 da Constituição Federal.
(...)
A Lei da ação civil pública é de natureza processual, adjetiva. Então, qual é a lei de natureza material, substantiva, que poderia dar suporte à pretensão do MP? O art. 66, inc. I, do CC, responde: “as praças são bens públicos”; o art. 23 da CF acrescenta: “é de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I - ... conservar o patrimônio público”; o art. 2º da Lei nº 6.939/81 também socorre quando afirma que “o meio ambiente é patrimônio público”; e o art. 41 da Lei Orgânica do Município de Goiânia encerra: “cabe ao Prefeito a administração dos bens municipais”. Não seria toda legislação suficiente para corresponder substantivamente à pretensão que a lei adjetiva da Ação Civil Pública contempla? Acredito que sim e justifico essa crença afirmando que, como é óbvio, as pessoas não doaram parcelas de sua liberdade, na formação do Estado, para serem posteriormente, por ele obrigadas a viver em desordem”.[87]
Conclui-se, portanto, no sentido da impossibilidade de o Ministério Público e, consequentemente, o juiz, de criar obrigações de cunho coletivo, porém, perfeitamente possível que se determine o seu cumprimento, quando tais obrigações decorrem de lei, independemente de sua abstração.
Compartilha da mesma tese Luís Henrique Paccagnella, ao asseverar que “o que não é possível ao Poder Judiciário é a definição, por seus próprios critérios, de dadas políticas públicas. É constitucional, porém, que o Judiciário mande cumprir política pública prevista na Constituição e na legislação, quando tal política pública for ignorada pelo administrador. O Poder Judiciário simplesmente mandará cumprir dada obrigação prevista na lei, dentro dos critérios e requisitos na própria lei. Os meios e a forma de cumprimento da obrigação, naquilo que a lei não ditar, é que ficarão no âmbito da discricionariedade do administrador”.[88]
5.1.7. Da Imposição do Modo e do Tempo da Obrigação de Fazer
Deve-se atentar que, ao lado da possibilidade do controle de determinados atos emanados do Poder Executivo, deve o Poder Judiciário determinar um modo e tempo para o cumprimento da obrigação de fazer, tendo em vista a eficácia da execução posterior do comando disposto na sentença.
Deste modo, as condições de execução da obrigação são adotadas pelo administrador e estão sujeitas à apreciação de conveniência e oportunidade, salvo algumas hipóteses em que só existe uma alternativa viável para atingir o objetivo esperado. Assim, cabe apenas ao administrador, naqueles casos, optar pela forma de execução, podendo adotar a melhor alternativa técnica que, no seu entender, viabilizará cumprimento do comando.
Resume de forma brilhante resume o assunto Wallace Paiva Martins Júnior:
“ (...) a sentença deve limitar-se a determinação dirigida ao Poder Público do cumprimento de sua obrigação legal, abstendo-se do estabelecimento do modo do cumprimento da obrigação. De fato, é justamente nesta hipótese que impõe-se a observância fiel do princípio da separação de poderes, devendo o juiz deixar ao critério da administração pública a escolha do modo de cumprimento da obrigação, da eleição da atividade administrativa que, de uma forma ou de outra, atenda ao comando judicial proferido. Basta, pois, a sentença obrigar o Poder Público ao lançamento de esgotos domésticos nos cursos d’água mediante prévio tratamento e em conformidade com os padrões de qualidade ambiental ou ordenar abstenha-se da poluição dos cursos d’água. O modo de cumprimento da sentença fica a critério do administrador público, pois até mesmo nos atos vinculados compete ao administrador escolher o modo de cumprimento do comando legal, se a lei não cuida de previamente estabelecê-lo. Note-se que, no caso, a lei para evitar a poluição das águas contenta-se tão somente com a submissão ao prévio tratamento e a conformidade com os padrões qualitativos. Estes últimos são fixados pela lei, mas o primeiro não. A lei contenta-se, apenas, com o prévio tratamento dos esgotos a serem lançados, e o modo, a atividade, pela qual se fará o tratamento prévio fica à escolha do administrador público”.[89]
Porém, em se tratando de hipótese em que há apenas um modo de fazer específico para concretização de determinada política de caráter social, pode o Ministério Público, diante da ação civil pública, sempre obedecendo aos princípios da razoabilidade e eficiência, obrigar que se execute de acordo com o modo específico a política social.
Mas, como já ressaltado, em casos em que há multiplicidade de soluções técnicas, possível a impetração da ação civil pública com obrigação de fazer, porém, deve-se atentar para o fato de que impera em tais casos a faculdade de escolha do administrador.
Além disso, deve-se levar em consideração que o prazo que poderá ser fixado para o cumprimento da obrigação deve ser sempre razoável, respaldado em perícia técnica que leve em conta as peculiaridades do caso concreto, como a complexidade da obra, o cotidiano administrativo, a disponibilidade orçamentária, etc.
Complementa Lúcia Valle Figueiredo no seguinte sentido:
“(...) há o problema do momento em que a tutela de urgência, nesses caos, passa a ser exigível. Tenho para mim que, mesmo no caso de proibições peremptórias como as que temos em matéria de recursos hídricos e saneamento básico, o cumprimento do judicialmente determinado atrela-se ao princípio da razoabilidade, sob pena de se ter imposições de execução impossível, com o que não compactua o direito. Parece ser tecnicamente impossível a uma municipalidade ou órgão público, por mais poderoso que seja, estancar, de imediato, o lançamento de esgoto não-tratado, construindo, em passe de mágica, rede coletora e estações de tratamento. Não é recomendável, pois, que sejam deduzidos pedidos de obediência imediata, mas, diversamente, que levem à fixação de cronograma, dividido em fases e metas trimestrais e anuais bem caracterizadas, permitindo-se, assim, sua fiscalização com imposição de “astreintes”, que devem ser usadas não só para o caso de descumprimento de objetivo maior, mas também para as metas intermediárias”.[90]