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Reflexões sobre o “acesso à Justiça” qualitativo no Estado Democrático de Direito

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24/02/2013 às 09:06
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3. O “ACESSO A JUSTIÇA” QUALITATIVO COMO (RE)LEITURA DO PARADIGMA DEMOCRÁTICO.

A aplicação das propostas trazidas pela perspectiva traçada pelo “Projeto de Florença” levanta uma série de preocupações e questionamentos. Os próprios Cappelletti e Garth (1988:161-163) alertaram que as reformas processuais não podem ser tomadas como fórmulas mágicas capazes de solucionar milagrosamente a situação. Além disso, alertam que tais propostas não podem ser cegamente incorporadas em sistemas jurídicos estatais de tradições e história diversos sem as devidas adaptações e reflexões. Barbosa Moreira (1997:23), por sua vez, pontua o risco de serem assumidas posturas míopes que elejam a efetividade e a celeridade como absolutas, o que acabaria por representar um rompimento do equilíbrio do sistema processual.

Com isso, não se quer negar a necessidade de tais reformas; o que se discute é como e sob que condições elas serão elaboradas. O sacrifício de garantias processuais – nitidamente do contraditório e da ampla defesa – não pode legitimar tal processo de mudança. A advertência feita por Cattoni de Oliveira é, por isso, muito pertinente:

De fato, não se quer negar a importância do acesso à Justiça, a necessidade de reformas no sistema processual brasileiro ou que a superação de um enfoque formalista do processo e da jurisdição seja necessária. Ao contrário, é urgentíssimo. Mas para isso não é preciso, nem se deve, por um lado, abandonar as garantias processuais e, por outro, adotar uma compreensão idealizante e paternalista do papel do juiz ou do próprio Estado, como transparece na análise de alguns autores brasileiros (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:105).

É a partir dessa reflexão que torna possível reinterpretar o discurso sobre “acesso à Justiça”, agora a partir de outra forma, qualitativa. Levando em conta o respeito de tais garantias processuais, bem como todo o conjunto de princípios que constituem o devido processo legal (constitucional).

3.1. A PROPOSTA DE RONALD DWORKIN E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O “ACESSO À JUSTIÇA” QUALITATIVO.

Ronald Dworkin, célebre jurista norte-americano, ganhou notoriedade no cenário brasileiro por apresentar uma distinção entre princípios e regras como espécies de um gênero maior, normas jurídicas. Todavia, aqui não reside sua maior contribuição e nem mesmo encerra sua genialidade, fruto de uma herança hermenêutica. Sem dúvida, será no decurso de um diálogo com as teorias semânticas[18] que a proposta dworkiana ganha forma. A discussão sobre princípios e regras, iniciada na década de 60, foi apenas o ponto de partida para uma discussão muito maior com teorias positivistas e com teorias realistas.

As teorias positivistas, dessa forma, podem perfeitamente ser compreendidas como exemplos de teorias semânticas. Para essas teorias: (1) o Direito é formado exclusivamente por um conjunto de regras, que podem ser diferenciadas das demais regras – por exemplo, as regras de natureza moral – por meio de um critério que, ironicamente, pode ser chamado de teste de pedigree da regra;[19] (2) o conjunto de regras deve abranger, na maior medida possível, as relações jurídicas existentes em uma sociedade, mas no caso de lacuna – isto é, quando se está diante de um caso difícil –, o magistrado fica autorizado a decidir com base discricionária, inclusive indo além do Direito na busca desse novo padrão de orientação; e (3) na ausência de regra jurídica válida, compreende-se que não há obrigação jurídica; logo, quando o magistrado, no exercício de sua discricionariedade, decide um caso difícil, ele não está fazendo valer um direito correspondente à matéria controversa; ele está, sim, criando normas jurídicas.[20]Assim, na perspectiva do positivismo jurídico, a aplicação do direito é fruto de uma atividade dedutiva e analítica, na qual o operador seleciona regras que melhor subsumem ao caso, para, em momento posterior, demonstrar a sua correção. Todavia, como já reconhecido, nem sempre se teria regras para regular as situação concretas, o que levaria ao reconhecimento de um poder de criação normativa aos magistrados, excepcionalmente.

Para negar a tese do positivismo, Dworkin apresenta a idéia do direito como um conceito interpretativo, que exige, portanto, por parte da comunidade, um consenso inicial no sentido de estabelecer quais práticas sociais são consideradas jurídicas. Nessa perspectiva, compreende-se como Direito o “sistema de direitos e responsabilidades que respondem a [um] complexo padrão: autorizam a coerção porque decorre de decisões anteriores do tipo adequado” (DWORKIN, 1999:116). Todavia, esse conceito é provisório. Ele levanta uma exigência no sentido de proceder a uma análise mais detalhada de três concepções do Direito: o convencionalismo, o pragmatismo e o Direito como integridade.

Para o convencionalismo, o direito só se legitima quando sustentado por uma decisão política do passado, que seja tão clara, que promova o consenso entre os juristas, mesmo que estes possuam visões ideológicas distintas. Como lembra Álvaro Souza Cruz (2003:31), aqui, reduzimos a prática jurídica a uma questão de obediência e respeito às convenções pretéritas. No caso de anomia, ainda pesaria o poder discricionário (ou criativo como quer Hart) no qual o magistrado é autorizado pela convenção a criar direito novo. O convencionalismo fracassa como interpretação da prática jurídica em função do seu aspecto negativo – isto é, ao afirmar que “[...] não existe direito a não ser aquele que é extraído de decisões por meio de técnicas que são, elas próprias, questões de convenção” (LAGES, 2001:42). Esse fracasso decorre do fato de os magistrados se tornarem mais dedicados às fontes convencionais (legislação e precedentes) do que lhes permite o convencionalismo. Ou seja, eles se apegam a uma leitura do que “segurança jurídica”, entendida como previsibilidade, que acabam se esquecendo que o tempo promove uma modificação na forma dos juristas se apropriarem das leis e dos precedentes (SOUZA CRUZ, 2003:33). A proposta dworkiana, então, passa pelo fio de uma “coerência de princípios” em substituição ao modelo de “coerência de regras” dos convencionalistas, afinal a própria assunção da discricionariedade mina internamente a proposta convencionalista.

Já o pragmatismo, bem apoiado no Justice Holmes da Suprema Corte dos EUA, compreende que a lógica não explica as decisões judiciais, de modo que o direito seria, na realidade, uma criação do Judiciário.[21] Assume-se, então, uma perspectiva ultra-utilitarista na avaliação de direitos individuais e interesses coletivos, subordinando os primeiros aos segundos. Logo, abertamente rejeita uma vinculação com as decisões passadas. Desse modo, os direitos subjetivos consagrados por legislações passadas devem ser tratados de modo estratégico, como elementos cuja existência está condicionada a um melhor servir a comunidade, a longo prazo (DWORKIN, 1999:187). Assim, enquanto o juiz convencionalista deve ter os olhos voltados para o passado, o olhar de um pragmático se remete ao futuro; podendo, para tanto, deixar de respeitar a coerência de princípio com aquilo que outras autoridades públicas fizeram ou farão. As decisões do passado são apenas expedientes de convencimento para uma decisão previamente tomada e pautada por uma escolha política ou por valores de preferência do julgador (SOUZA CRUZ, 2003:37). Por isso, no pragmatismo, parece desaparecer qualquer separação entre legislação e aplicação judicial do Direito: o juiz, ao se posicionar desvinculado de toda e qualquer decisão política do passado, pode decidir os casos concretos aplicando um direito novo que ele mesmo criou. Mais uma vez, afasta-se a coerência de princípios em favor de uma perspectiva de bem estar coletivo.

Contra ambas as perspectivas, Dworkin apresenta sua Tese da Integridade do Direito, que pretende considerar como elemento central a coerência de princípio. A integridade não despreza os ideais de equanimidade (fairness), justiça (justice) e devido processo legal (procedure due process) presentes nas teorias políticas utópicas; ela na realidade exige

(...) do Estado ou da comunidade considerados como agentes morais, quando insistimos em que o Estado aja segundo um conjunto único e coerente de princípios mesmo quando seus cidadãos estão divididos quanto à natureza exata dos princípios de justiça e [equanimidade] corretos (DWORKIN, 1999:202).

Resumindo a tese: a integridade nega que as manifestações do Direito sejam meros relatos factuais voltados para o passado, como quer o convencionalismo; ou programas instrumentais voltados para o futuro, como pretende o pragmatismo. Para o Direito como integridade, as afirmações jurídicas são, ao mesmo tempo, posições interpretativas voltadas tanto para o passado quanto para o futuro (DWORKIN, 1999:272-273). Uma sociedade que aceite a integridade como virtude se transforma, segundo Dworkin, em um tipo especial de comunidade que promove sua autoridade moral para assumir e mobilizar o monopólio da força coercitiva. Esse é o caso da comunidade de princípios, que segue a seguinte idéia:

Se as pessoas aceitam que são governadas não por regras explícitas, estabelecidas por decisões políticas tomadas no passado, mas por quaisquer outras regras que decorrem dos princípios que essas decisões pressupõem, então o conjunto de normas públicas reconhecidas pode expandir-se e contrair-se organicamente, à medida que as pessoas se tornem mais sofisticadas em perceber e explorar aquilo que esses princípios exigem sob novas circunstâncias, sem a necessidade de um detalhamento da legislação ou da jurisprudência de cada um dos possíveis pontos de conflito (DWORKIN, 1999:229).

A integridade, portanto, funciona como um elemento de promoção da vida moral e política dos cidadãos, fundindo circunstâncias públicas e privadas, além de criar uma interpenetração dessas questões. A política ganha um significado mais amplo: transforma-se em uma arena de debates sobre quais princípios a comunidade deve adotar como sistema, bem como sobre que concepções de equanimidade, justiça e devido processo legal adjetivo devem pressupor. Os direitos e deveres políticos dos membros dessa comunidade não se esgotam nas decisões particulares tomadas pelas instituições, sendo dependentes do sistema de princípios que essas decisões pressupõem e endossam.

Mas como fica, então, a questão no plano da aplicação judicial do direito? Para responder a tal indagação, deve-se antes compreender que o modelo dworkiano não reduz o direito a um conjunto de regras, mas sim, o compreender na sua melhor luz, afirmando a existência de princípios jurídicos que permitem conectar decisões (legislativas e judiciais) do passado através de um mesmo fio lógico-argumentativo, dotando-os de integridade e, por isso, pressupondo que tais decisões foram tomadas por um mesmo corpo coletivo, qual seja, por uma mesma comunidade de princípios vinculada à mesma história institucional, que não representa uma restrição vinda de fora, imposta aos juízes, mas um componente da decisão, já que compõe o pano de fundo de qualquer juízo sobre os direitos. Juízes, portanto, devem assumir que suas decisões trazem em si uma carga de responsabilidade política, exigindo dos mesmos uma coerência de princípios.[22]

Para melhor ilustrar esta mudança de postura por parte dos juízes, Dworkin parte de um exemplo imaginário, uma metáfora ilustrativa, que chama de Hércules, que é descrito como é um juiz filósofo dotado de sabedoria e paciência sobre-humanas, capaz de resolver os casos difíceis através de uma análise completa da legislação, dos precedentes e dos princípios aplicados ao caso.[23] A construção da metáfora do juiz Hércules, entretanto, não encerra o trabalho de construção da teoria dworkiana, ao contrário do que pesam as leituras preguiçosas de muitos juristas nacionais. Mesmo que possamos considerar que a decisão atingida aqui obedeça a um processo reconstrutivo capaz de indicar com segurança uma – e apenas uma – “resposta correta”,[24] duas outras idéias serão fundamentais para a compreensão completa da proposta desse autor: a metáfora do romance em cadeia e a comunidade de princípios.

A compreensão adequada do romance em cadeia parece lançar novas luzes na discussão sobre o solipsismo de Hércules. A compreensão de que a atividade decisória dos juízes não se produz no vácuo, mas sim, em constante diálogo com a história, revela as influências da hermenêutica gadameriana. Todavia, Dworkin, como já foi explicado, é defensor de uma interpretação construtiva e, por isso mesmo, de uma teoria hermenêutica crítica: a decisão de um caso produz um “acréscimo” em uma determinada tradição. Isso é bem ilustrado quando comparamos a dinâmica de aplicação judicial do Direito com um pitoresco exercício literário:[25]

Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade (DWORKIN, 1999:276).

Assim, mesmo o primeiro escritor terá a tarefa de interpretar a obra em elaboração, bem como o gênero que se propõe a escrever. Por isso, cada romancista não tem liberdade criativa, pois há um dever de escolher a interpretação que, para ele, faça da obra em continuação a melhor possível.[26] O que se espera nesse exercício literário é que o romance seja escrito como um texto único, integrado, e não simplesmente como uma série de contos espaçados e independentes, que somente têm em comum os nomes dos personagens. Para tanto, deve partir do material que seu antecessor lhe deu, daquilo que ele próprio acrescentou e – dentro do possível – observando aquilo que seus sucessores vão querer ou ser capazes de acrescentar.

O Direito não segue lógica diversa: tanto na atividade legislativa quanto nos processos judiciais de aplicação, o que chamamos de Direito nada mais é do que um produto coletivo de uma determinada sociedade em permanente (re)construção:

Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance escrito até então. Qualquer juiz obrigado a decidir uma demanda descobrirá, se olhar nos livros adequados, registro de muitos casos plausivelmente similares, decididos há décadas ou mesmo séculos por muitos outros juízes, de estilos e filosofias judiciais e políticas diferentes, em períodos nos quais o processo e as convenções judiciais eram diferentes. Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturadas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção (DWORKIN, 2001:283).

Nenhuma seqüência de decisões, contudo, é isenta de apresentar contra-exemplos; por isso mesmo é tão importante o desenvolvimento de uma teoria do erro no julgamento dos casos anteriores.[27] Além do mais, Hércules não está sozinho. Seu trabalho se dá continuamente através de um franco diálogo com a história institucional de sua sociedade, que está às suas costas; além disso, por força da exigência de integridade, ele é impulsionado a buscar sempre a melhor decisão – o que faz com que seus olhos se voltem para o futuro, mas de modo que sempre permaneça a preocupação em manter uma coerência de princípio na fundamentação de suas decisões.

No sentido dessa interpretação, a comunidade de princípios se mostra como idéia fundamental, já que é ela condição de possibilidade para as metáforas do Juiz Hércules e do romance em cadeia. Para tanto, leva em conta que todas as relações humanas pressupõem-se como relações sociais, devemos compreender melhor essa forma de associação, principalmente no seu aspecto político-jurídico. Esse modelo concorda

(...) com o modelo das regras [no sentido de] que a comunidade política exige uma compreensão compartilhada, mas assume um ponto de vista mais generoso e abrangente da natureza de tal compreensão. Insiste em que as pessoas são membros de uma comunidade política genuína apenas quando aceitam que seus destinos estão fortemente ligados da seguinte maneira: aceitam que são governados por princípios comuns, e não apenas por regras criadas por um acordo político. Para tais pessoas, a política tem uma natureza diferente. É uma arena de debates sobre quais princípios a comunidade deve adotar como sistema, que concepção deve ter de justiça, [equanimidade] e [devido] processo legal e não a imagem diferente, apropriada a outros modelos, na qual cada pessoa tenta fazer valer suas convicções no mais vasto território de poder ou de regras possíveis (DWORKIN, 1999:254).

Logo, os direitos e deveres políticos dessa comunidade não estão ligados apenas às decisões particulares tomadas no passado, mas sim, são dependentes de um sistema de princípios que essas decisões pressupõem ou endossam. A integridade é, então, compreendida como um ideal aceito de maneira geral e, por isso mesmo, mostra-se como um compromisso de pessoas, ainda que essas estejam em desacordo sobre a Moral política (DWORKIN, 1999:255). Uma conclusão importante desse modelo é o igual respeito para com os demais, de modo a não aceitar que nenhum grupo seja excluído.

Com Hércules, não poderia ser diferente: ele é um membro dessa comunidade (DWORKIN, 1999:307; HABERMAS, 1998:295). Logo, suas decisões devem refletir seu comprometimento com essa, demonstrando para ela que compartilha dos mesmos princípios – ou seja, explicitando a sua pertença, para usar a linguagem consagrada por Gadamer.

Cattoni de Oliveira (2002:91) lembra que o julgador deve se colocar na perspectiva de sua comunidade, considerada como uma associação de co-associados livres e iguais perante o Direito, assumindo uma compreensão crítica do Direito positivo como esforço dessa mesma comunidade, para desenvolver da melhor maneira possível o “sistema de direitos fundamentais”. Com a comunidade de princípios, Dworkin expande o rol de co-autores no empreendimento do romance em cadeia: como Günther (1995:45) observa, todo cidadão é um participante da corrente histórica do Direito, mesmo que virtual; autores e destinatários estão, então, ligados a um esquema coerente de princípios.

Além disso, Habermas (1998:292) coloca uma importante questão: o juiz compartilha – como todo cidadão – de uma compreensão paradigmática do Direito, que fornece para ele um estoque de interpretações da prática jurídica e orientações normativas, estoque esse compartilhado por todos os membros da comunidade.[28] Tais paradigmas ainda retiram o trabalho hercúleo dos ombros dos membros dessa comunidade, fornecendo certezas em um mesmo pano de fundo compartilhado.[29]

Logo, a teoria de Dworkin nos traz quatro pontos que são merecedores de destaque, uma vez que são pertinentes ao presente debate: (1) a negativa da discricionariedade judicial; (2) a negativa de que decisões judiciais possam se apoiar em diretrizes políticas; (3) a importância da noção de devido processo para a dimensão da integridade; e (4) a própria noção de integridade, que levanta a exigência de que cada caso seja compreendido como parte de uma história encadeada; não podendo, portanto, ser descartado sem uma razão baseada em uma coerência de princípios.

Ao longo do debate sobre o “acesso à Justiça” bem como sobre as medida de contenção da “crise do Judiciário”, os pontos acima levantados parecem estar omissos. Inúmeros processualistas, em geral ligados à Escola Instrumentalista, parecem ver com bom olhos toda a gama de possibilidades criadas pelo Ordenamento Jurídico e capazes de proporcionar soluções rápidas e céleres, muitas vezes – ou quase todos às vezes – através de um apelo à discricionariedade judicial ou em um recurso a diretrizes políticas.[30] Tais posturas não se coadunam com uma leitura procedimental do Estado Democrático de Direito, acabando por aniquilar qualquer vestígio de legitimidade em seus provimentos e por isso, devem ser rechaçadas.

Até aqui, então, temos com Dworkin a noção de três conquistas, pois: (1) consagra de maneira literal a noção de que os cidadãos devem ser os autores do Direito; (2) explica a força de coesão existente entre os membros, pressupondo e reforçando os compromissos mútuos existentes entre os membros de uma comunidade, entendidos como livres e iguais a partir de um esquema coerente de princípios; e (3) veda a possibilidade de decisões judiciais baseadas em diretrizes políticas, ainda lembrando que tais diretrizes vêm ceder aos direitos nos debates políticos. Todavia, um passo mais longo pode e deve ser dado, de modo que passamos à verificação das contribuições que podem advir da teoria discursiva do direito e da democracia de Jürgen Habermas.

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3.2. AS CONTRIBUIÇÕES DE JÜRGEN HABERMAS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM “ACESSO À JUSTIÇA” QUALITATIVO

Habermas inicia seu projeto filosófico para o direito (re)apresentando um problema ulterior, já discutido em obras passadas: a substituição da racionalidade instrumental – adequação de meio a fins – por uma racionalidade comunicativa. Esta perspectiva é necessariamente tributária ao movimento do giro lingüístico, de modo que a linguagem aqui não é apenas um instrumento para a compreensão entre atores sociais, mas sim, a condição de possibilidade dessa compreensão. E mais, se a racionalidade não apenas está dirigida a execução de tarefas, mas envolve também a busca por um entendimento mútuo entre indivíduos. Essa busca, contudo, não representa um aspecto isolado do fenômeno lingüístico, mas situa a linguagem no centro do problema da integração social.

Habermas apresenta uma importante diferenciação no campo dos proferimentos lingüísticos que toma como base o fim do proferimento. No primeiro caso, tem-se o que denomina de ação estratégica: uma forma de ação lingüística – porém, semelhante à ação instrumental – na qual o falante faz uso de outro indivíduo como meio (instrumento) para a realização de um fim (seu sucesso pessoal). Tem-se aqui uma busca pelo sucesso perlocucionário, isto é, influenciar o ouvinte (que se transforma em mero objeto) para que este realize (ou deixe de realizar) o objetivo principal do falante (WHITE, 1995:52). Dessa forma, o falante age na condição de observador, ou seja, ele não se coloca na condição de participante da interação, nem busca saber sobre o reconhecimento da pretensão levantada por parte do ouvinte; o que está em jogo é apenas a concretização de seu próprio sucesso pessoal. A ação estratégica, portanto, vive de maneira parasitária, pois depende, para seu sucesso, de que, pelo menos uma das partes, tome como ponto de partida o fato de que a linguagem está sendo usada como forma de busca do entendimento (HABERMAS, 1990:73).

O agir comunicativo, por sua vez, compreende a ação de uma pessoa para convencer outra da validade de suas pretensões. É uma ação que somente pode dar-se por um único meio: a fala, e pressupõe a produção de um entendimento. Seu fim é, portanto, a produção do efeito ilocucionário, ou seja, um consenso intersubjetivamente reconhecido acerca da validade de uma pretensão criticável.

Agora, então, fica mais fácil compreender, então, a nova proposta de racionalidade: enquanto para Weber, toda ação humana seria racional apenas se pudesse ser justificada à luz da seleção dos melhores meios para a realização de um fim; para Habermas, além dessa dimensão instrumental da racionalidade, há um nível comunicativo voltado para o entendimento entre os atores sociais. Como toda ação social, que requer uma forma de interação lingüística, a racionalidade comunicativa estaria na base da sociedade, permitindo a interação entre os atores e, conseqüentemente, sua integração.

Uma compreensão adequada da racionalidade comunicativa fornece outra conseqüência importante: a suplantação da racionalidade prática típica da filosofia da consciência. Mais do que uma simples troca de etiquetas, a proposta habermasiana afirma que: a razão comunicativa distingue-se da razão prática tradicional, porque não está restrita a um ator particular – ou mesmo a um macrosujeito (Estado ou Sociedade). Ela é possibilitada pelo medium da linguagem, que concatena interações e estrutura as formas de vida, de modo que, ao buscar um entendimento, os usuários da linguagem ordinária devem pressupor, entre outras coisas, que os participantes buscam seus fins ilocucionários sem reservas, que eles vinculam seu acordo ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis e que eles estão prontos a assumir as obrigações resultantes de um consenso, relevantes para as interações seguintes. O que, dessa forma, infiltra-se na base de validade do discurso também se comunica às formas de vida reproduzidas através da ação comunicativa. A racionalidade comunicativa, portanto, expressa-se em um complexo descentralizado de condições transcendentalmente configurativas, mas ela não é uma faculdade subjetiva que diz aos atores o que devem fazer (HABERMAS, 1998:65-66); os indivíduos que atuam comunicativamente comprometem-se com pressupostos pragmáticos, assumindo certas idealizações,[31] de modo que serão os próprios atores sociais que, por meio da busca pelo entendimento comum, chegarão a um consenso sobre as normas de ação válidas. A assunção dessas idealizações como pressupostos contrafáticos revela que a separação rígida – de referência platônica – entre o que seja “real” e o que seja “idealidade” é posta em cheque. Cattoni de Oliveira (2002:37) esclarece que Habermas refere-se, em substituição, a uma tensão entre realidade e idealidade: “(...) a realidade já é plena de idealidade, em razão dos próprios pressupostos lingüísticos contrafactuais presentes em toda interação comunicativa” (2002:37).

Logo, é através da reconstrução da noção de racionalidade que se encontra o fio condutor para pensar o problema da integração da sociedade. Mas uma advertência deve ser feita: pensar a sociedade atual é pensar o problema da diferença, é pensar o pluralismo; dessa forma, a ação social voltada para o entendimento adquire relevância, buscando coordenar diversos planos de ação individuais.

É, diante desse quadro, que Habermas compreenderá a crescente importância atribuída ao Direito: de maneira dúplice, o Direito moderno é capaz de limitar o campo de ações estratégicas por meio da imposição de sanções – de modo que essas se adaptem ao padrão de comportamento socialmente aceito, revelando a tensão entre coerção factual e validade legitimadora – e de organizar o sistema econômico e o sistema administrativo, equilibrando-os com a racionalidade comunicativa (HABERMAS, 1998:102) de forma a conferir legitimidade aos seus imperativos funcionais e a integrá-los nos processos de manutenção da ordem social. Mas, para que o Direito cumpra essa função, primeiro ele deve passar por um complexo processo de reconstrução.

O direito moderno, através de um longo processo histórico, conseguiu desgarrar-se do antigo amálgama normativo existente nas sociedades pré-modernas, que estabelecia a sua estruturação interna na forma de um Direito Natural. Por isso mesmo, na Modernidade, o direito se positiva, encontrando na escrita a sua liberdade perante os demais sistemas e perdendo a necessária vinculação ética de outrora. É no fato dele ser histórico, contingente e modificável que se abre a possibilidade de crítica das normas jurídicas. O Direito se livra do elemento sagrado[32] e, com isso, liga sua validade, necessariamente, ao fato de que os seus atingidos devem ser simultaneamente seus autores.

E com isso, o Direito moderno acaba por aliviar os sujeitos do fardo da integração social: os conflitos que trazem um alto grau de dissenso – principalmente porque os envolvidos deixam de estar submetidos à busca por um entendimento mútuo – podem ser resolvidos a partir da própria tensão entre facticidade (coerção) e validade (aceitabilidade), garantindo uma resposta adequada e legítima; o mesmo, todavia, não pode ser constatado na posição decisionista assumida pela tradição positivista ou pelos instrumentalistas do processo, que viram as costas para as pretensões de legitimidade jurídica (HABERMAS, 1998:101).[33]

Com o já mencionado processo de desencantamento, o Direito moderno se configura como parte de um sistema de normas positivas e obrigatórias; todavia, essa positividade vem associada a uma pretensão de legitimidade, de modo que normas expressam uma expectativa no sentido de preservar eqüitativamente a autonomia de todos os sujeitos de direito (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:174).

Segundo Habermas (2002:286), o processo legislativo deve ser suficiente para atender a essa exigência. Há uma relação entre o caráter coercitivo e a modificabilidade do Direito positivo, por um lado, e o processo de positivação ou de estabelecimento desse Direito capaz de gerar legitimidade, por outro – isto é, uma relação entre Estado de Direito e democracia; contudo essa relação não é meramente fruto de uma histórica causal, mas uma relação conceitual que está alicerçada nas pressuposições da práxis jurídica cotidiana.[34] A validade de uma norma jurídica pode ser considerada, portanto, como equivalente da explicação para o fato de o Estado garantir simultaneamente a efetiva imposição jurídica e a institucionalização legítima do Direito.[35]

Daí decorre a pergunta: como se deve fundamentar a legitimidade de normas que podem, a qualquer momento, ser alteradas pelo legislador? Enquanto era possível recorrer a um Direito Natural – quer de cunho religioso, quer metafísico – podíamos tentar conter o “turbilhão da temporalidade” que o Direito positivo atraía para si; mas, aliado à crescente dessacralização das imagens de mundo e à desintegração de eticidades ou formas de vida tradicionais com o processo de modernização social e cultural, o Direito moderno, dotado de um caráter formal, exime-se da ingerência direta advinda de uma “consciência moral remanescente” (HABERMAS, 2002:288; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176).

Destaca-se, então, tornando-se fundamental a idéia de direitos subjetivos, que estão ligados a um conceito de liberdade de ação conforme o direito; desse modo, garantem aos sujeitos um espaço de ação de acordo com sua própria preferência (HABERMAS, 2002:288; 1999:330), bem como de acordo com a máxima de que “tudo o que não está proibido está permitido” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176). Todavia, aqui não há uma continuidade com a tradição privatística do século XIX, desligando-os de uma subordinação à Moral.

Com a Modernidade, ocorre uma separação funcional entre Direito e Moral que pode ser explicada por um prisma sociológico, não mais pela perspectiva de subordinação do primeiro à segunda. Agora, afirma-se uma relação de complementariedade. Tanto o Direito quanto a Moral ainda buscam, sob ângulos diferenciados, respostas para as mesmas questões: (1) como é possível ordenar legitimamente relações interpessoais e coordenar entre si ações servindo-se de normas justificadas?; e (2) como é possível solucionar consensualmente conflitos de ação na base de regras e princípios normativos reconhecidos intersubjetivamente?

Todavia, uma Moral pós-tradicional representa apenas uma forma de saber cultural, enquanto o Direito apresenta-se também no nível institucional – isto é, além de um sistema de símbolos, o Direito é também um sistema de ação. Ao passo que na Moral, encontra-se uma simetria entre direitos e deveres; no Direito, as obrigações resultam somente da restrição de liberdades subjetivas. Essa atribuição de privilégio aos direitos em face dos deveres pode ser explicada através dos conceitos de sujeitos de direto e de comunidade jurídica: “uma comunidade jurídica, situada no tempo e no espaço, protege a integridade de seus integrantes exatamente na medida em que esses assumem o status de titulares de direitos subjetivos” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176). Em contrapartida, o universo moral não apresenta limites espaço-temporais, estendendo-se a todas as pessoas em sua complexidade biográfica, plenamente individualizadas. Por isso mesmo, as matérias jurídicas são, ao mesmo tempo, mais restritivas do que as questões morais e mais amplas, uma vez que o Direito, como meio de organização, não se refere exclusivamente à regulação de conflitos interpessoais, mas também ao cumprimento de programas políticos e demarcações políticas de objetivos. Logo, as “regulamentações jurídicas tangenciam não apenas questões morais em sentido estrito, mas também questões pragmáticas e éticas, como o estabelecimento de acordos entre interesses conflitantes” (HABERMAS, 2002:289). Isso faz com que a praxis legislativa dependa não só de discussões morais, mas de uma rede ramificada de discursos abertos a razões de outras ordens, bem como a negociações.

Uma vez que o Direito positivamente válido pode tirar das pessoas o ônus causado pelas grandes exigências (cognitivas, motivacionais e organizacionais) impostas por uma Moral ajustada segundo a consciência subjetiva; ele é capaz de compensar as fraquezas de uma moral exigente. Isso não libera os participantes de uma prática legislativa ou jurisdicional da preocupação de que o Direito permaneça em consonância com a Moral (HABERMAS, 2002:289; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:177); todavia as regulamentações jurídicas são complexas demais para serem legitimadas por princípios morais. Habermas (2002:189) coloca então uma questão importante: “(...) se o direito positivo não pode obter sua legitimidade de um direito moral superior, de onde ele poderá obtê-la”?

A Moral, tanto quanto o Direito, deve defender a autonomia de todos os envolvidos e atingidos por suas normas; essas devem ser analisadas pelo prisma do princípio do discurso (D) – “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”[36] – que é neutro em relação ao Direito e à Moral, uma vez que sua referência se assenta em toda e qualquer  norma de ação, sem qualquer especificação (LEITE ARAÚJO, 2003:167).

No caso da Moral, o Princípio (D) se especifica em um princípio (U) que se refere a normas de ação que exigem, para serem justificadas, a consideração simétrica de todos os interesses; é, portanto, regulador dos argumentos – uma regra de argumentação (SALCEDO REPOLÊS, 2003:99) – que pergunta sobre a possibilidade de universalização de um determinado interesse, de modo que sua pretensão possa ser passível de aceitação e reconhecimento pelos seus afetados em qualquer tempo e contexto espacial. Diferentemente, o princípio discursivo democrático (De), especificação de (U) para o Direito, visa a explicar o sentido performativo da prática da autodeterminação dos membros de uma comunidade jurídica – estabelecida livremente – que reconhece seus membros como parceiros livres e iguais (HABERMAS, 1998:175). Seu objetivo, então, é a “institucionalização de um procedimento legislativo legítimo, produzido discursivamente com a potencial participação de todos [os afetados]” (BAHIA, 2003:235). Deve ser destacado que o princípio democrático não busca um conteúdo a priori às questões quando as mesmas são propostas, “mas apenas diz como podem a formação da opinião e da vontade serem institucionalizados por um sistema de direitos que assegura participação no processo legislativo em condições de igualdade” (BAHIA, 2003:236). Assim, aceita o risco de que qualquer tema ou contribuição, informação ou razão, sejam ventilados no espaço público (HABERMAS, 1998:646). Essa formação da vontade é dependente de pressupostos comunicativos que asseguram aos melhores argumentos a prevalência.

Assim, enquanto o princípio moral está correlacionado ao procedimento de validação de normas e discursos morais, o princípio democrático mostra-se mais amplo, aberto a outros tipos de razões. Com o processo de modernização, emerge a questão do pluralismo ideológico na sociedade; a religião e o ethos nela enraizado se decompõem como fundamento público de validade de uma moral que pode ser compartilhada por todos. As regras morais passam a designar o que é obrigatório para todos e, por conseguinte, universalizável; ao passo que os pontos de vista éticos estão ligados a orientações axiológicas (de valor) pertencentes a pessoas ou grupos. Questões éticas estão relacionadas ao ponto de vista da primeira pessoa do plural (nós), de modo que se vinculam ao que os membros de uma determinada comunidade entendem como critérios (ou valores) que devem orientar suas vidas, isto é, o que pode ser considerado como o melhor para nós (HABERMAS, 2002:38) – questões acerca das concepções de vida boa ou, pelo menos, de uma vida que não seja mal sucedida.

Nesse sentido, as questões éticas não demandam um descentramento do sujeito, que permanece ligado ao telos de uma vida comum da sociedade (HABERMAS, 2000:106). Por isso mesmo, questões que demandam uma busca sobre o que seja do interesse de todos apontam para mais além do que seja melhor para nós (Ética). Aqui, Habermas lembra as afirmações de Rawls e de Dworkin acerca da diferença entre o justo (moral) e o bom (ético) e da supremacia do primeiro sobre o segundo (HABERMAS, 2002:41). O bom é aquilo almejado por um grupo de pessoas, a partir de um valor compartilhado; a noção de justo, bem como a de direitos, por outro lado, traz uma compreensão normativa da questão.

Nesta linha de raciocínio, normas e valores apresentam diferenças que não podem ser desconsideradas: (1) normas obrigam seus destinatários por igual e não apresentam exceções, enquanto valores exprimem concepções que são tidas como almejáveis e, por essa razão, podem ser compreendidas à luz de uma ordem de preferência; (2) normas, portanto, somente podem ser obedecidas – cumprindo sua função de estabilizar expectativas de comportamentos generalizados – a partir de uma aplicação universalmente integral e binária, isto é, algo é válido ou não é válido, sem uma terceira opção; ao passo que valores, representando uma ação direcionada, podem ser realizados de maneira gradual, a partir do quadro de preferências daquela comunidade. Dito de outra forma, normas, segundo Habermas (1998:328, 2004:291), são justificadas a partir de uma pretensão de correção (referência ao justo), devendo poder contar com a aceitação racional daqueles que serão seus afetados (1998:172). Dessa forma, diante de uma pretensão normativa, os atores sociais podem tomar dois caminhos diversos: concordarem mutuamente sobre as pretensões de validade de seus atos de linguagem, ou levantarem pontos em que haja discordância, problematizando-os. Instala-se, assim, a possibilidade de avaliação através de uma ação comunicativa. De maneira diferente, os valores apontam para uma concepção ética – ligada ao que seja o bem – que não apresenta esse potencial de universalização contido nos discursos sobre a correção das normas, uma vez que se encontra enraizada sob valores pré-reflexivos, isto é, concepções culturais partilhadas intersubjetivamente por uma determinada forma de vida concreta. Portanto, a noção de bem se liga à idéia de um nós, uma comunidade determinada assentada sob uma mesma concepção de vida boa. Desse modo, as referências para as ações oriundas dessa comunidade apenas podem ser compreendidas como respostas a fins específicos (caráter instrumental) julgados a partir das preferências comuns de seus membros, perdendo-se de vista a ação comunicativa em favor de uma ação instrumental; e (3) diferentes normas pretendem manter sua validade para o mesmo conjunto de destinatários, não podendo contradizer-se mutuamente, sob pena de deixarem de representar referenciais para a ação humana; logo devem constituir um sistema. A questão sobre qual norma é adequadamente aplicável a um determinado caso, todavia, constitui uma pergunta diferente da indagação sobre sua validade, devido a isso, como será visto no próximo tópico, discursos de justificação diferem-se da lógica dos discursos de aplicação. Contrariamente, os valores naturalmente concorrem entre si pela primazia, por isso são passíveis de flexibilizações a partir de critérios utilitários.

 Por isso mesmo, a partir desses pressupostos teóricos é que podemos fazer a crítica, não só à teoria de Alexy, como a toda a tradição da jurisprudência de valores, que ao equiparar normas (princípios) com valores, perde de vista a natureza deontológica das primeiras e acaba por desnaturar a racionalidade comunicativa, substituindo-a por uma racionalidade instrumental (cálculo utilitarista, vide métodos da proporcionalidade) e com isso, caindo numa perspectiva irracionalista, carente de legitimidade.

Mais uma vez, devemos lembrar com Dworkin que ao magistrado não é aberta a possibilidade de decidir conforme valores. Logo, é impensável através de uma perspectiva democrática tomá-lo, como faz Dinamarco, como o portador e o salvador taumaturgo da axiologia de uma dada sociedade, ainda mais quando esta atividade de “proteção” se dá de maneira solipsista e vinculada a uma única consciência individual. O espaço procedimental (e, principalmente, o processual, quando presente o contraditório) não autoriza decisões utilitaristas e muito menos unilaterais, que excluem a possibilidade de participação em simétrica paridade dos destinatários do provimento.

O Direito moderno, não mais subordinado à moral – mas sim, funcionando de maneira complementar – passa a organizar-se a partir de um código próprio, partindo de dois elementos restantes da dissolução da amálgama pré-moderna: soberania popular – relacionada com a noção de autonomia pública – e direitos humanos – ligados à noção de autonomia privada. Desse modo, tanto uma quanto a outra representam uma mediação pelo Direito no tocante à autodeterminação moral (direitos humanos) e autodeterminação ética (soberania popular), de modo a falar-se em uma co-originariedade.

Assim, Habermas pretende superar a disputa entre liberais e republicanos acerca de qual das duas deveria ter prevalência. Contudo, como já adiantado, a opção habermasiana não é a de endossar nem uma nem outra tradição, mas apresentar uma (re)construção da relação entre soberania popular e direitos humanos, superando as tradições anteriores, uma vez que leva em conta a identificação de uma relação interna entre ambos os conceitos, constitutiva do que chamará de sistema de direitos: o conjunto de direitos (fundamentais) que os membros de uma comunidade atribuem-se reciprocamente quando decidem regular legitimamente sua convivência através do Direito Positivo (HABERMAS, 2003:162; 2002:229). E, para tanto, a modernidade aponta que a fundação desse sistema deve dar-se através de um importante meio institucional – a Constituição. 

O sistema de direitos é responsável por garantir aos indivíduos determinadas liberdades subjetivas de ação a partir das quais podem agir em conformidade com seus próprios interesses – autonomia privada – “liberando” esses indivíduos da pressão inerente à ação comunicativa (HABERMAS, 1998:186). Assim, Direito não é – nem pode ser – capaz de obrigar os indivíduos a permanecer o tempo todo na esfera pública, devendo abrir a eles a possibilidade de escolha do uso de sua liberdade comunicativa.[37] Em contrapartida, o princípio discursivo democrático compreende a autonomia pública a partir da ótica da garantia de legitimidade do procedimento legislativo através de iguais direitos de comunicação e de participação (HABERMAS, 2002:290); trata-se do fato de que os sujeitos de direito têm de se reconhecer como autores das normas às quais se submetem. 

Tal constatação acaba em uma afirmação mais radical: ambas as autonomias são complementares e eqüiprimordiais, de modo que se torna absurdo a tentativa de afirmação de uma relação hierárquica entre ambas. Com isso, esquemas arcaicos de compreensão – por exemplo, ainda levado a cabo por um Direito Administrativo que compreende o interesse público como superior ao interesse privado – caem por terra em uma leitura procedimental. Um é condição de existência e permanência do outro.

O sistema de direito, então, consciente da co-originalidade das autonomias público/privada, apresenta-se como um instrumental que permitirá aos cidadãos criar uma ordem jurídica assentada sob um conjunto de direitos fundamentais, divididos nas seguintes categorias:

(i) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito, que prevê a maior medida possível de liberdades subjetivas de ação para cada um. (ii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do status de membro de uma associação livre de parceiros do direito. (iii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do igual direito de proteção individual, portanto da reclamabilidade de direitos subjetivos” (HABERMAS, 2003:169, grifo no original).

Essas três categorias decorrem de um resultado direto da aplicação do princípio do discurso ao meio do Direito; estão associadas às condições de “socialização horizontal” produzidas pelo Direito. Assim, não podem ser compreendidas como os clássicos direitos liberais de defesa, uma vez que regulam apenas relações entre co-cidadãos livremente associados, anteriormente a qualquer organização estatal. A função básica, então, desses direitos é a garantia da autonomia privada dos sujeitos de direito, mas apenas à medida que se reconhecem mutuamente como destinatários das leis, levantando um status que lhes possibilita a pretensão de obter direitos e de fazê-los valer reciprocamente (HABERMAS, 1998:188). Somente no passo seguinte, é que esses sujeitos de direito assumem o papel de autores de sua ordem jurídica.

Uma vez que pretendem fundar uma associação de cidadãos que se dão a si mesmos suas leis, eles tomam consciência de que necessitam de uma quarta categoria de direitos que lhes permita reconhecerem-se mutuamente, não somente como autores desses diretos, mas também como autores do direito em geral. Se quiserem continuar mantendo um aspecto importante de sua prática atual, a autonomia, eles têm que se autotransformar, pelo caminho da introdução de direitos fundamentais políticos, em legisladores políticos. Sem as primeiras três categorias de direitos fundamentais, não poderia existir nada parecido com o direito, porém, sem uma configuração política dessas categorias, o direito não poderia adquirir conteúdos concretos (HABERMAS, 2003:169).

Nessa quarta categoria, encontram-se os “(iv) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito para uma participação, em igualdade de condições, na legislação política” (HABERMAS, 2003:169). Assim, para que os membros de uma dada comunidade possam atribuir reciprocamente direitos subjetivos de maneira legítima, necessitam da institucionalização de procedimentos de produção desse Direito, que pressupõe o reconhecimento mútuo como pessoas livres e iguais. Resta, todavia, mais um categoria de direitos, que são: (v) Direitos fundamentais

(...) ao provimento do bem-estar e da segurança sociais, à proteção contra riscos sociais e tecnológicos, bem como ao provimento de condições ecologicamente não danificadas de vida e, quando necessário, sob as condições prevalecentes, o direito de igual oportunidade de exercício dos outros direitos elencados (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:72).

Esse sistema de direitos ainda necessita de um meio de institucionalização: o Estado de Direito, que possui, desde seu surgimento, o propósito de garantir institucionalmente à co-originalidade das autonomias pública e privada, buscando para tanto a legitimidade de suas decisões no Direito (HABERMAS, 1998:199).

No prisma dos procedimentos judiciais – que representam o objeto principal de nossa pesquisa –, estes visam à proteção, decisão e estruturação dos espaços argumentativos (sem, contudo, interferir no fluxo dessas argumentações). Lembra Habermas (1998:266) que a tensão entre facticidade e validade se manifesta no fato de que as decisões devem levar em conta, simultaneamente, a tensão entre segurança jurídica (agora entendida como positividade do Direito e não mais previsibilidade de decisão judicial, como queria a leitura positivista) e pretensão de decisões corretas (legitimidade).

O Direito vigente, portanto, é capaz de garantir a imposição coercitiva de expectativas de comportamento. Por isso mesmo, as decisões judiciais devem estar consistentes com esse direito, formado a partir de uma cadeia de decisões passadas – tanto de processos legislativos quanto judiciais, bem como de tradições articuladas (HABERMAS, 1998:267). Desse modo, a decisão não pode estar limitada ao passado como uma mera repetição deste; uma pretensão de aceitabilidade racional (correção) é esperada.

O problema, então, gira em torno da possibilidade de conciliar a facticidade do Direito – isto é, estabilização de expectativas de comportamentos, até por uma via coercitiva – com uma validade – ou seja, uma autonomia pública que reclama a legitimidade do processo de formação de normas. Logo, a questão da legitimidade do Direito não se resume ao factum de uma decisão judicial; ainda é necessário que esta seja consistente de dois aspectos: por meio de uma justificação interna – deve encontrar motivações no Direito positivo; e por meio de uma justificação externa – aceitável racionalmente, explicitando uma fundamentação jurídica (HABERMAS, 1998:267; BAHIA, 2003:250).

A Teoria do Discurso permite repensar a dinâmica da atividade jurisdicional, sempre pressupondo a dimensão democrática. Torna-se importante distinguirmos bem dois modelos apresentados por Günther (1995:37):[38] (1) o modelo da correia de transmissão, segundo o qual o juiz deve aplicar o Direito que é elaborado anteriormente por um legislador democrático. A legitimidade da decisão, então, decorre da observância à legalidade, ou seja, ao Direito pré-fixado nos processos de legislação; e (2) o modelo do bilhar, que afirma que a atividade de aplicação jurídica tem legitimidade por si mesma, independentemente da existência do legislador. Aqui a aplicação do Direito e a legislação, às vezes, correm em sentido paralelo e, até mesmo, contrário.

Uma vez que o Direito legislado é permeado por indeterminações, ou mesmo incapaz de exprimir o “verdadeiro” Direito pelo qual o povo anseia – principalmente em razão de o processo legislativo poder ser regido pelo sabor das forças políticas, os magistrados vêem-se forçados a adaptar o que foi positivizado, podendo até mesmo criar novos direitos. Para esse modelo, caso os juízes não estejam representando bem a vontade popular, sempre há espaço para que os legisladores interfiram, produzindo novas leis, mudando o curso das decisões futuras. Todavia, adverte Günther (1995:37), o círculo vicioso se reinstala, podendo o Judiciário compreender diferentemente a mensagem provinda do Legislativo.[39] A validade jurídica, então, encontra-se fracionada: em parte, deriva dos processos de legislação, mas também decorre das decisões proferidas pelo Judiciário.

Acontece que nem um nem outro modelo são referências adequadas aos processos de aplicação do Direito democrático. O primeiro caso ainda está preso à noção de “vontade geral” de Rousseau, ao passo que o segundo lança similitudes com o realismo jurídico. A bem da verdade, ambos deixam de observar um problema importante: a questão da aplicação particular (GÜNTHER, 1995:43).

Um procedimento imparcial de aplicação do Direito deve levantar exigências de iguais considerações de todas as particularidades apresentadas pelo caso. Desta sorte, uma aplicação imparcial de uma norma significa compreendê-la como a norma adequada capaz de, simultaneamente, ser interpretada como se fizesse parte de um sistema coerente de normas e fornecer uma resposta para o caso particular, preenchendo uma exigência de correção normativa para aquela ação singular.

Nesse caso, a proposta, então, passa não por adotar um dos dois modelos apresentados, mas por lançar um olhar reconstrutivo para um novo – que, todavia, encontra no modelo da correia de transmissão o seu ponto de partida. Esse novo modelo, bem mais satisfatório, decorre das pesquisas habermasianas (GÜNTHER, 1995:46).

A mudança principal advém do fato de os discursos jurídicos institucionalizados interpretarem – e aqui, um alerta: Habermas e Günther tomam o conceito de interpretação conforme a noção gadameriana; assim, interpretar é, simultaneamente, compreender e aplicar – todo o direito à luz do sistema de direitos, já que esse é o núcleo tanto da atividade de legislação democrática quanto da atividade de aplicação jurídica. Como conseqüência, as respostas funcionais dessas atividades estão, ambas, conectadas à forma do Direito – garantia de liberdade individual (autonomia privada) e de igual consideração (autonomia pública) (GÜNTHER, 1995:46).

Por meio dos discursos de justificação, o legislador político avalia um espectro ilimitado de razões normativas e pragmáticas, traduzindo-as à luz do código do Direito. O aplicador jurídico, por outro lado, encontra uma constelação de normas bem mais limitadas – ele apenas pode lançar mão das escolhas já feitas pelo legislador. Além disso, todas as escolhas do legislador, uma vez traduzidas conforme o código do Direito, agora funcionam, sob a lógica jurídica. Por isso mesmo, a tarefa deixada a cargo do aplicador não é mais de justificar tais razões, mas de encontrar, dentre as que o legislador considerou como prima facie válidas, a adequada para fornecer uma fundamentação acerca da correção da ação singular trazida pelo caso sub judice.

Assim, é o caso concreto – através de suas particularidades – que vai fornecer o espectro de normas a serem examinadas. A noção de aplicação imparcial aqui é entendida como uma exigência de que o procedimento de aplicação leve em conta a participação daqueles que são os destinatários da norma a ser aplicada. Logo, lembra Günther (1995:50), tanto as partes quanto o juiz são partícipes dessa dinâmica; todavia eles desempenham papéis diferentes, mas nem por isso menos importantes.

O juiz, então, desempenha um papel de terceiro observador do conflito: cabe a ele questionar sobre a coerência das interpretações levantadas pelos participantes (autor e réu) quanto ao caso, bem como quanto à norma adequada. Dessa forma, a decisão não é apenas sua, mas uma construção conjunta que deve ainda se voltar para a sociedade – uma vez que a mesma é a real titular (e atingida) pelo sistema coerente de normas válidas, representado pelo Direito. Uma decisão pode ser considerada fundamentada quando, além de demonstrar a reconstrução argumentativa dos acontecimentos relevantes do caso concreto, explicita a norma adequada a servir de justificativa para a ação singular. Essa decisão, então, não é apenas dirigida aos litigantes, mas a toda a sociedade.

Uma vez que os litigantes detêm espaço para agir estrategicamente, seu assentimento não é necessário para que decorra a obrigatoriedade natural do provimento (GÜNTHER, 1995:50); a legitimidade da decisão está preservada se for garantido aos mesmos a oportunidade de se manifestarem – isto é, o princípio do contraditório – de modo a poderem reconhecer-se como co-autores desse provimento. Por isso mesmo, o conflito entre litigantes, à luz da Teoria do Discurso, aparece de modo diferente: um conflito jurídico emerge como uma disputa particular entre dois (ou mais) sujeitos de direito, que questionam o significado das razões jurídicas que podem ser aceitas pelos participantes de um discurso público (GÜNTHER, 1995:52).

Todavia, a possibilidade de alternância entre os papéis de autor e destinatário das normas vê-se bloqueado: para as partes que não podem entender-se, exclusivamente, como autores das normas, já que, da discussão, estão excluídos os demais cidadãos, bem como, por força da ação estratégica, submeter-se-ia a “vontade geral” à vontade particular; nem para o juiz, já que o discurso de aplicação impede o retorno às razões que levaram à justificação da norma.

O principal será realizar o desbloqueio por meio da troca interpretativa entre as partes, lembrando-as de seu papel como participantes iguais dos discursos públicos. Transcendendo o particularismo do caso sub judice, a decisão, para considerar-se fundamentada, deve ainda pautar-se em razões jurídicas que poderiam ser aceitas racionalmente pela sociedade. Günther (1995:52), então, reconhece que a opinião pública adquire um papel importante no paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito.

A crítica pública à decisão, permanentemente, lembra aos aplicadores do Direito (conceito esse compreendido em sentido amplo e não apenas relacionado aos magistrados) que são meros representantes do papel que desempenham na aplicação do Direito. É por isso que Günther (1995:53) afirma que a interpretação jurídica não pode ser assumida como uma questão de escolha ou opção pessoal do aplicador, mas sim, ligada a um esquema coerente de princípios de justiça, de igualdade e de liberdade amparado por razões de natureza pública compartilhadas pela sociedade.

É por tudo isso, que os movimentos em prol de uma “simplificação e celeridade” nos processos de aplicação judicial do Direito não podem perder de vista o entendimento de que as garantias processuais, como a do contraditório e a da ampla defesa, não podem ser violadas em nome de um rápido andamento do processo (GONÇALVES, 2001:125).

A partir de Habermas (1998:306), é possível compreendermos que a estrutura presente nas normas processuais é capaz de compensar as condições comunicativas, garantindo a formação de um provimento (legislativo, administrativo ou jurisdicional) legítimo. É essa compensação que permite à Teoria do Discurso abrir mão da metáfora do juiz Hércules de Dworkin, capaz de garantir, por si só, interpretações coerentes dos princípios jurídicos em sede de sua aplicação, corporificando o ideal de integridade (GÜNTHER, 1995:46).[40] A exigência normativa de imparcialidade, então, pode-se despersonificar através de uma separação entre discursos de justificação normativa e discursos de aplicação do Direito.

Nesse sentido, traça-se uma linha que liga os participantes do processo e os demais membros da comunidade. Assim, um processo judicial revela uma dimensão que, por si só, ultrapassa os limites de uma situação específica, que, segundo a dogmática tradicional, estaria representando apenas o interesse particular das partes envolvidas (HABERMAS, 1998:300).

Os discursos de aplicação servem-se de normas já fixadas nos discursos de justificação. Logo, para serem consideradas normas, devem passar pelo teste de universalização, o que significa que todo direito, por mais individualista que seja sua leitura, expressa um interesse compartilhado por toda a sociedade e, por isso mesmo, uma materialização do interesse público.

Além do mais, Habermas (1998:300) adverte que, nos discursos de aplicação do Direito, o atendimento ao interesse de todos os possíveis afetados deve ficar para segundo plano, cedendo lugar para a busca da norma mais adequada a partir da reconstrução do caso concreto. Em razão disso, a reconstrução da situação de aplicação, que ocorre em simétrica paridade com as partes processuais, ganha relevo. As visões de mundo destas entrecruzam-se com descrições de estados de coisas impregnadas normativamente cuja validade é pressuposta.

Dessa forma, o regresso ao discurso de justificação representa uma via fechada em suas múltiplas formas. Nem as partes nem o juiz podem ocupar o lugar dos debatedores daquele discurso: as partes, em razão do conflito de interesse, são incapazes de assumir uma perspectiva que leve à troca recíproca de papéis (GÜNTHER, 1995:49); o juiz, que desempenha um papel de terceiro em relação ao conflito, apenas atua como um representante do sistema jurídico, cujo titular é a sociedade. Por isso, a ele não é dada a possibilidade de negar validade às normas previamente fixadas como tal pela sociedade, muito menos de apresentar novas razões, quer de maneira supletiva, quer de maneira concorrente (GÜNTHER, 1995:50).

Todavia, o público não fica excluído totalmente da questão. Uma vez que a decisão não é apenas para as partes – no sentido de que, ao desenvolver uma compreensão dos direitos que se integram em um mesmo sistema coerente – ela volta-se para o resto da comunidade, que pode assumir uma importante participação – para além da sua representação pelo juiz – através da crítica pública da decisão, a qual lembra aos magistrados que são apenas representantes de um Direito que pertence a toda a sociedade, e não o seu agente materializador, como pode transparecer em Dworkin (GÜNTHER, 1995:52).

Portanto, em todo julgamento, devemos buscar reconstruir as situações características e particulares dos casos para determinar a norma adequada dentre uma constelação de outras prima facie aplicáveis. Ao magistrado cabe somente fundamentar suas decisões com base em razões normativamente justificáveis – os argumentos de princípio, para usar a expressão de Dworkin. Também em Habermas, a aplicação judicial do Direito norteia-se pela “decisão correta”, o que exclui a possibilidade de decisão discricionária ou de qualquer atividade legislativa supletiva ou concorrente pelo Judiciário.

Sob as balizas destes pressupostos teóricos é que podemos afirmar que a leitura “quantitativa” do “acesso à Justiça” em nada contribui para uma compreensão adequada ao Estado Democrático de Direito; ao contrário,  mostra-se profundamente agarrada e fixa numa leitura típica do Estado Social, devendo, de pronto, ser descartada. Uma perspectiva procedimental, então, deve afirmar que o “acesso” somente pode se dar, efetivamente, se garantido a todos os partícipes do discurso processual os princípios constitucionais, ou seja, iguais liberdades subjetivas para sua ação no iter procedimental.

Ao contrário do que pesam e do que pensam alguns juristas tradicionais, quanto maior a oportunidade de problematização, maior é o espaço para desenvolvimento de uma “cidadania ativa” (SOUZA CRUZ, 2004:247).

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Sobre o autor
Flávio Quinaud Pedron

Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Professor do Mestrado da Faculdade Guanambi (Bahia). Professor Adjunto no curso de Direito do IBMEC/MG. Professor Adjunto da PUC-Minas (graduação e pós-graduação). Advogado em Belo Horizonte (MG).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDRON, Flávio Quinaud. Reflexões sobre o “acesso à Justiça” qualitativo no Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3525, 24 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23802. Acesso em: 22 nov. 2024.

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