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Defesa criminal de desertores arrimos de família.

A atuação da Defensoria Pública da União

Leia nesta página:

O militar, detentor da condição de arrimo, que vem a desertar, comprovada pela Defesa que a conduta de se ausentar do quartel deu-se por não poder exigir daquele militar ter agido de outro modo, age com causa excludente da culpabilidade.

Entre os delitos mais processados na Justiça Militar da União, a deserção é, sem dúvida, o crime que mais sobrecarrega a pauta de audiências das Circunscrições Judiciárias Militares espalhadas pelo território brasileiro. Na mesma proporção, o Defensor Público Federal, que atua na Justiça Castrense, patrocina a defesa de quase todos os acusados de terem praticado a referida infração penal, capitulada nos artigos 187 e 188 do Código Penal Militar.

São várias as indagações a respeito dos motivos que levam nossos jovens conscritos brasileiros a cometerem a conduta de se ausentarem do quartel, sem autorização, por mais de oito dias corridos, praticando a chamada deserção própria, ou perderem a partida de navio ou aeronave de que são tripulantes ou, ainda, perderem o deslocamento de unidade ou força em que servem, cometendo, em tese, nas duas últimas situações, a denominada deserção especial ou instantânea (existem outras hipóteses, no Código Penal Castrense, nas quais também se verifica a prática do crime de deserção).

Contudo, o que mais impressiona quando da análise desse tipo penal é imaginar que, em tempo de paz, ainda exista a criminalização de tal conduta, cuja pena, considerando tratar-se de crime praticado sem violência ou grave ameaça, possua tamanha rigidez (pena mínima de seis meses de detenção, caso o desertor venha ser capturado ou se apresente voluntariamente após sessenta dias, a contar da consumação do crime), lembrando, é claro, de acordo com o Código Penal Castrense, que não há cumprimento da reprimenda em regime aberto ou a concessão do direito ao sursis. O militar cumprirá toda a pena efetivamente preso.

Não obstante as diversas críticas quanto à criminalização e ao excessivo rigor do delito de deserção, praticado em tempo de paz, enquanto não houver proposta de alteração legislativa, devemos, no exercício do cargo de Defensor Público, patrocinar a efetiva defesa daqueles que buscam a assistência jurídica integral, gratuita e de qualidade, quando são submetidos ao Conselho de Justiça no Poder Judiciário Castrense Federal. O referido órgão julgador, constituído em forma de escabinato, é um colegiado que reúne os conhecimentos jurídicos de um Juiz-Auditor e a experiência da caserna trazida por quatro Juízes Militares, cuja competência é processar e julgar os crimes militares.

Nesse sentido, ao estudarmos a deserção, a doutrina e a jurisprudência apontam que tal delito possui a natureza de crime de mera atividade, isto é, para consumar essa infração penal, é suficiente que o militar ausente-se do quartel por mais de oito dias, sem autorização, ou que não se apresente no momento do embarque de navio ou de aeronave da qual é tripulante, ou ainda que perca o deslocamento da organização militar em que se encontra servindo.

Dessa forma, o Ministério Público Militar, como dominus litis, não precisa demonstrar que a ausência do militar causou efetivo prejuízo à Força, mesmo que o ausente executasse, na caserna, trabalhos administrativos e não efetiva missão militar. Para oferecimento da denúncia e consequente condenação penal pela prática do referido delito, bastam o Termo de Deserção, o Inventário de Bens e o Termo de Reinclusão do desertor à Força, assinados pelo Comandante da Unidade, que devem conter a data da ausência, o dia da consumação do crime, o nome do militar ausente, a relação de bens deixados por ele no quartel, bem como o Termo de Inspeção de Saúde, lavrado por Junta Médica Militar, que decidiu pela aptidão, para o serviço militar, do desertor (praça sem estabilidade) capturado ou que tenha se apresentado voluntariamente.

Diante da acusação de prática de deserção, a tese defensiva mais utilizada é, seguramente, a demonstração, no caso em concreto, da presença da excludente de culpabilidade, denominada estado de necessidade.

Como sabido, o Código Penal Militar, quanto ao estado de necessidade, adota a Teoria Diferenciadora, e não a Teoria Unitária, prevista no Código Penal Comum, ou seja, considera duas possibilidades para a configuração do estado de necessidade: a) estado de necessidade como excludente de crime; b) estado de necessidade como excludente da culpabilidade.

No Código Penal Castrense, se o bem jurídico sacrificado for de valor menor do que o preservado, configura-se o estado de necessidade como excludente de crime. Caso o bem jurídico sacrificado seja de valor igual ou maior ao bem protegido, configura-se o estado de necessidade como excludente de culpabilidade. É o que dispõem, respectivamente, os artigos 43 e 39 do Código Penal Militar.

No dia a dia da Defesa na Justiça Militar, o estado de necessidade, na modalidade de excludente da culpabilidade, é mais facilmente verificado, principalmente quando estamos diante de Acusado que possuía, ao tempo do crime, a condição de arrimo de família.

A caracterização dessa condição encontra-se prevista no § 8º, do artigo 105 do Decreto 57.654/66[1], que regulamenta a Lei do Serviço Militar (Lei nº 4.375/64). Evidentemente, em razão de ter sido editado vários anos antes da promulgação da Carta Magna de 1988, o referido decreto deve ser interpretado à luz da nova ordem constitucional.

Como regra geral, arrimo de família é aquele cidadão civil ou militar casado ou convivente em união estável, pai ou o responsável por sustentar sua família. O Decreto nº 57.654/66 traz as hipóteses em que se verifica a condição de arrimo, contudo, não podemos considerá-las listadas em um rol taxativo, porque, estaríamos, se assim fizéssemos, excluindo, por exemplo, o civil ou o militar que viva em união estável, já que a referida norma se refere apenas ao “casado que sirva de único arrimo à esposa ou à esposa e filho”, o que ofenderia frontalmente o § 3º do artigo 226 da Constituição da República que reconheceu a união estável como entidade familiar.

Se a condição de arrimo de família é comprovada quando do alistamento do civil no serviço militar obrigatório, este será dispensado da obrigatoriedade da prestação. Todavia, caso essa condição venha ser verificada após a incorporação, seja porque fora omitida no momento do alistamento (por irregularidades no ato de recrutamento), seja porque o militar adquiriu tal condição durante o exercício do serviço militar obrigatório, estaríamos diante, na primeira hipótese, de causa autorizadora da anulação do ato de incorporação (artigo 31, alínea a e seu § 1º), e, na segunda situação, de desincorporação (artigo 31, alínea b e seu § 2º), ambas previstas na Lei do Serviço Militar (Lei nº 4.375/64), bem como diante, em ambas conjecturas, da presença da excludente estado de necessidade, se o militar arrimo de família venha a desertar.

Neste último caso, em que o militar, detentor da condição de arrimo, que se encontra diante das dificuldades inerentes a essa qualidade, venha a desertar, comprovada pela Defesa que a conduta de se ausentar do quartel deu-se por não poder exigir daquele militar ter agido de outro modo, verifica-se que houve sacrifício de bem de maior valor, qual seja, o dever militar, para proteger direito de igual quilate, qual seja, a assistência moral e/ou financeira de sua família. Em tal situação, constata-se a presença da causa excludente da culpabilidade.

Na hipótese de o Acusado ter praticado tal conduta, porque sua condição de arrimo de família impôs tal comportamento, do qual não lhe poderia ter exigido agir de outra forma, caberá a Defesa o ônus de comprovar que o desertor agiu com ética militar ao seguir o preceito previsto no inciso XV, do artigo 28 do Estatuto dos Militares (Lei nº. 6.880/80), que dispõe que o militar deve garantir assistência moral e material ao seu lar e conduzir-se como chefe de família modelar, sendo certo que motivos de doença na família, ausência de recursos financeiros suficientes para sustento familiar, entre outras situações caracterizadoras da condição de arrimo, são capazes de fundamentar a correta conduta do desertor, que se encontrava amparado por uma causa que exclui sua culpa lato sensu.

Além disso, a Constituição da República é de hermenêutica solar ao dispor, no artigo 229, que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. Tal dispositivo constitucional é aplicável, sem distinção, a todos os brasileiros, civis ou militares, o que reforça a inexigibilidade de conduta diversa do desertor arrimo que, além de cumprir a determinação do Estatuto dos Militares, seguiu fielmente a Carta Magna ao sacrificar o dever militar e proteger, incondicionalmente, sua família.

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Logicamente, poderíamos nos perguntar a razão pela qual tais militares desertores sequer terem solicitado a instauração de sindicância, dentro da Organização Militar, para averiguação de sua condição de arrimo de família antes de desertarem. A resposta, em muitos casos, é bastante simples: os conscritos desconhecem a existência de referido procedimento, ou quando conhecem, temem por sofrerem represálias no quartel por parte de seus superiores, que podem considerar que os requerentes da sindicância não querem cumprir sua obrigação junto à Pátria.

Diante da condição social vivenciada por esses jovens, podemos concluir que a conduta perpetrada pelo militar desertor, na condição de arrimo de família, não serve para desprestigiar a vida militar, sustentada pelos princípios de hierarquia e disciplina das Forças Armadas, mas sim de preservar direito de igual ou superior valor ao dever militar.

Dessa forma, não obstante a presença do famigerado crime de deserção em tempo de paz, os Defensores Públicos Federais, verdadeiros agentes de transformação do processo penal, vêm, em suas batalhas diárias, em defesa dos conscritos, que configuram a esmagadora maioria de acusados pela prática do delito do artigo 187 do Código Penal Militar, buscando brilhantes resultados ao comprovarem, perante a Justiça Militar da União, nos termos do Enunciado da Súmula nº 3 do Superior Tribunal Militar[2], que, muitos desses jovens, ao desertarem, não cometeram tal conduta por desconsideração do dever militar, mas sim porque foram impelidos a fazê-lo em razão da condição social que há muito lhes fora imposta.


Notas

[1] BRASIL. Decreto nº 57.654, de 20 de janeiro de 1966. Lei do Serviço Militar. 14 ed. São Paulo: RT, 2013, p. 546-547:

Art. 105. São dispensados de incorporação os brasileiros da classe convocada:

[...] omissis;

6) arrimos de família, enquanto durar essa situação.

[...] omissis;

§ 8° Serão considerados arrimos de família para os efeitos deste artigo:

1) o filho único de mulher viúva ou solteira, da abandonada pelo marido ou da desquitada, à qual

sirva de único arrimo ou o que ela escolher quando tiver mais de um, sem direito a outra opção;

2) o filho que sirva de único arrimo ao pai fisicamente incapaz para prover o seu sustento;

3) o viúvo ou desquitado que tiver filho menor (legítimo ou legitimado) de que seja único arrimo;

4) o casado que sirva de único arrimo à esposa ou à esposa e filho;

menor (legítimo ou legitimado);

5) o solteiro que tiver filho menor (legalmente reconhecido) de que seja único arrimo;

6) o órfão de pai e mãe que sustente irmão menor, ou maior inválido ou interdito, ou ainda irmã

solteira ou viúva que viva em sua companhia; ou

7) o órfão de pai e mãe que sirva de único arrimo a uma de suas avós ou avô decrépito ou

valetudinário, incapaz de prover os meios de subsistência.

[2] BRASIL. Superior Tribunal Militar. Súmula nº 03. Não constituem excludentes de  culpabilidade, nos crimes de deserção e insubmissão, alegações de ordem particular ou familiar desacompanhadas, de prova. (Grifamos).

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Sobre a autora
Caroline de Paula Oliveira Piloni

Defensora Pública Federal Titular do 1º Ofício Criminal Militar no Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PILONI, Caroline Paula Oliveira. Defesa criminal de desertores arrimos de família.: A atuação da Defensoria Pública da União. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3562, 2 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24075. Acesso em: 2 nov. 2024.

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