4. Licença compulsória das patentes: instrumento para a efetivação do direito à saúde
Nem todos os bens justificam, por sua natureza ou no cotejo com outros valores sociais, a adoção de um regime de patentes. Quando da autorização legal à concessão destas, devem ser levadas em conta as peculiaridades dos produtos em questão, sendo, alguns deles, avessos a qualquer patenteamento. Assim, deve o legislador proceder com cautela frente à questão dos medicamentos, haja vista serem eles bens de consumo dotados de relevante papel social na efetivação do direito à saúde.
O desenvolvimento das possibilidades tecnológicas não pode ser dissociado de todo o contexto econômico, posto que este serve de estímulo àquele. Tal desenvolvimento, em contrapartida, vivifica a economia. Desse modo, as questões jurídicas suscitadas por essa interação, sobretudo as situadas no âmbito do direito de propriedade industrial, são bastante diversificadas e complexas, demandando o desenvolvimento de disciplina própria.[40]
É de suma importância, pois, o regime adotado relativamente às patentes farmacêuticas, porquanto, em razão das características que lhe são peculiares, seus efeitos irradiam-se para além da produção industrial[41]. De modo geral, elas não afetam exclusivamente a órbita econômica, podendo causar grandes impactos também na órbita sanitária.[42]
É, portanto, no âmbito do interesse social que emerge a discussão sobre a proteção das patentes de medicamentos, mormente ante a flagrante precariedade da prestação estatal do acesso à saúde. Resta inquirir se os limites constitucionalmente impostos ao direito de propriedade industrial, garantido mediante a concessão dessas patentes, em certos casos, podem - ou devem - arredar em prol da coletividade.
4.1. As patentes de medicamentos em face do interesse social ao acesso à saúde
Os medicamentos inserem-se, segundo BENJAMIN, na categoria dos bens de consumo necessários, vitais para a sobrevivência do ser humano. Sua essencialidade decorre de suprirem certas carências básicas dos cidadãos. É no âmbito dos bens de consumo necessários, também denominados bens de consumo social, que o instituto das patentes tem suas mais sérias conseqüências.[43]
A questão das patentes no mercado de medicamentos envolve, de um lado, os interesses econômicos de grandes indústrias, em um setor com alta lucratividade, e, de outro, o fato desses produtos serem essenciais para a vida dos cidadãos. Às alegações sobre os altos custos com pesquisa e desenvolvimento de inovações, contrapõem-se aquelas sobre o direito fundamental à saúde.
É pacífico o entendimento de que as patentes de medicamentos envolvem conseqüências do maior relevo para a economia das nações. Trava-se a discussão quanto a serem, tais conseqüências, positivas ou negativas em relação ao desenvolvimento científico e tecnológico.
O Brasil foi um dos primeiros signatários da Convenção de Paris, o primeiro tratado de patentes do mundo, assinado em 1883. Contudo, entre 1969 e 1971, a legislação brasileira de propriedade industrial passou a não permitir a concessão de patentes em alguns setores industriais, dentre eles os produtos e processos químicos e farmacêuticos[44]. Isso ocorreu em virtude do modelo econômico e político da época, que entendia não ser possível o monopólio sobre produtos ditos essenciais para a saúde da população. Pretendia-se, assim, houvesse o desenvolvimento tecnológico desses setores.[45] Em 1996, porém, sobreveio a Lei de Patentes e, logo após, a Lei dos Genéricos, retornando os fármacos à condição de inventos passíveis de proteção patentária.
A argumentação dos que defendem a exclusão absoluta dos fármacos da proteção patentária, havida antes da Lei nº 9.279/96, fundamenta-se na acessibilidade universal aos medicamentos por todos os segmentos sociais. Parte-se da idéia de que os produtos farmacêuticos fazem parte dos bens de consumo inelásticos. Diante da sua essencialidade, a população tem que adquiri-los, ainda que a preços muito elevados, dada sua indispensabilidade à manutenção da vida e da própria existência humana[46].
Nessa linha, o privilégio outorgado ao inventor de medicamentos foi taxado até mesmo de antiético por aqueles que defendiam não caber proteção patentária para esse tipo de produto. Tal argumentação, entretanto, confunde o direito de patentes com os eventuais abusos a que este está sujeito. De fato, seria reprovável a atitude do inventor privilegiado que, especulando, manipulasse a produção e o preço às custas do sofrimento e da doença humana. Contudo, em face das características das invenções químico-farmacêuticas – exigência de constante pesquisa para melhoria da saúde pública, elevados gastos em investigação de novos produtos e facilidade de imitação –, antiético seria viabilizar ao concorrente usufruir, sem qualquer custo, do esforço alheio.[47]
É de salientar-se que, caso excluídas as invenções de medicamentos do sistema de patentes, justamente quem desenvolve produtos da maior relevância social seria privado da proteção patentária. Não há, assim, motivos relevantes para que se exclua, a priori, a referida categoria de inventos da proteção. O argumento da prejudicialidade do monopólio é considerado, por grande parte da doutrina, como emocional e não resistente a críticas objetivas.[48]
Outrossim, deve-se pôr em relevo que a questão das patentes extrapola o âmbito nacional, sendo imprescindível uma análise dos efeitos que tal instituto gera nas relações internacionais. A patente, como instrumento anticompetitivo, seria mais vantajosa para os países que detêm capacidade industrial e massa crítica para enfrentar o poder inerente ao monopólio por ela proporcionado. Prova disso é o fato de que a maioria dos países desenvolvidos só passou a conceder patentes quando já possuía tal capacidade.[49]
De fato, ao serem concedidas patentes a tecnologias exclusivas, passa-se a ter, embora por um período de tempo limitado, um direito essencialmente excludente de qualquer concorrência. É o caso dos medicamentos importados, geralmente monopolizados por laboratórios com patentes de invenção e preços excessivamente onerosos.
O Brasil tem tentado reverter esse quadro, seja pela via do incentivo à produção interna de medicamentos genéricos, seja pela quebra da patente de fármacos para o tratamento de algumas doenças, de modo a garantir que seus portadores tenham acesso a terapêuticas de última geração.[50] Na mesma linha, continua a defender a flexibilização das leis internacionais de patentes para medicamentos e o acesso amplo e irrestrito aos insumos de saúde. [51]
A idéia aqui proposta, portanto, não é a exclusão dos fármacos do regime de proteção patentária de forma geral e absoluta, porque não se pode olvidar de sua íntima relação com os avanços tecnológicos no setor, mas a utilização de alternativas que possibilitem, dependendo do caso, sobreponha-se o direito à saúde à proteção ao direito de propriedade. É, em última análise, a opção pelo interesse social, preferindo-o em detrimento daquele meramente individual do inventor.
Por este prisma, faz-se necessário sopesar princípios quando o monopólio de grandes empresas do setor farmacêutico venha a prejudicar o acesso da população a certos tipos de tratamentos. Aqui se insere, portanto, a aplicabilidade do instituto da licença compulsória como meio otimizador do direito à saúde. Mais do que instrumento para coibir o abuso do poder econômico, servindo como punição, defende-se a possibilidade de valer-se da licença em razão do interesse público.[52]
4.2 A licença compulsória como instrumento otimizador do acesso aos medicamentos
O tempo é a primeira limitação à patente concedida pelo Estado sobre uma invenção. Em sendo aquela um direito à exclusividade de exploração de uma tecnologia, caso pudesse o inventor, única e indefinidamente, utilizar-se de seu invento para a geração de riquezas, estar-se-ia incorrendo em flagrante contrariedade ao interesse público. Logo, decorrido o prazo de concessão, a invenção cai em domínio público e, por conseguinte, os direitos de sua exploração estendem-se a todos os cidadãos.
Não obstante, a Lei nº 9.267/96 prevê, em seu art. 68, a possibilidade de, em certos casos, proceder-se ao licenciamento compulsório das patentes.[53] Referido dispositivo é, em verdade, a própria positivação do princípio constitucional da função social em legislação específica.
Em regra, a licença compulsória poderá incidir nos casos de práticas abusivas e na hipótese de o titular da patente, sem motivo de força maior, deixar de produzir o necessário ao atendimento da população. Ademais, o art. 71 da Lei de Patentes traz, ainda, a possibilidade de licença compulsória temporária e não exclusiva para exploração da patente nos casos de emergência nacional ou interesse público.[54]
Em nível internacional, o acordo TRIPS, do qual o Brasil é signatário, também possui disposições no sentido de autorizar que o governo de um país permita a utilização do direito do titular da patente sem sua anuência, mediante a concessão de licença compulsória em benefício de outro fabricante.[55] É conferida ao Poder Público, portanto, a possibilidade de determinar o licenciamento compulsório de uma patente, ainda que esta já tenha sido concedida e mesmo dentro do prazo de exclusividade de exploração de seu inventor, em caso de não satisfeitos ou insuficientemente supridos os reclames da sociedade.
Repise-se, outrossim, que, ao estabelecer os instrumentos pelos quais se efetua a proteção da propriedade industrial, o art. 2º da Lei nº 9.279/96 é explícito ao enunciar duas pautas primordiais: o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país. Estas deverão ser consideradas não só pela Administração Pública e pelo Judiciário, mas também pelos particulares ao exercerem suas prerrogativas. Resulta indiscutível, portanto, que a necessidade de exploração do invento de forma consentânea a esses preceitos deixa de constituir um ônus de observância imperativa para transformar-se, por imposição constitucional, em requisito para a própria existência do direito.
Reside aí, pois, a justificativa para a concessão de licenças compulsórias.[56] Se, de um lado, a existência do sistema de patentes constitui evidente incentivo à pesquisa, de outro, estando a patente em vigor, qualquer uso não autorizado de seu objeto constitui violação do direito do titular, ainda que implique sua melhoria. Desse modo, sobressai a necessidade de instrumentos que permitam, mesmo durante a vigência da patente, o avanço da tecnologia e, em face do interesse social a ela inerente, o atendimento das necessidades da população.
A licença compulsória constitui alternativa legal que, concretizando o princípio constitucional da livre concorrência, permite que terceiros com capacidade técnica e econômica possam concorrer diretamente com o titular da patente, suprindo sua inércia, coibindo seus abusos e preservando o núcleo do direito que lhe é conferido, uma vez que, salvo exceções, ela será remunerada.[57]
É justamente na área de medicamentos essenciais que o interesse social apresenta-se de forma evidente. Em sendo os processos e produtos farmacêuticos de interesse público manifesto, porquanto visam à preservação da saúde e do bem estar social, nada mais justo do que garantir substancialmente o seu fornecimento no mercado. Assim, não se pode permitir que haja restrições à produção de medicamentos, sob pena de provocar-se sérios danos à população.[58] Frise-se, aliás, que no campo dos remédios existem alguns produtos que chegam a ser insubstituíveis, exigindo soluções jurídicas para as circunstâncias de falta ou insuficiência de exploração, bem como para os casos em que há abuso do detentor do privilégio.[59] E a realidade tem demonstrado, de forma inequívoca, a urgência dessas soluções.
Contando com o monopólio permitido pelas patentes de medicamentos, as multinacionais praticam uma política de altos preços, ainda que, em razão das variações nos índices sociais, tal fenômeno possa diferir de país para país. Como conseqüência, o privilégio conferido à indústria farmacêutica para medicamentos inovadores, sob o pretexto de retribuição aos dispêndios em estudos e pesquisa, acaba servindo de barreira ao acesso à saúde pelas populações vulneráveis.[60]
Acresça-se, ainda, o fato de que doenças típicas de países pobres, tais como leishmaniose, malária, tuberculose e doença de Chagas, continuam sem tratamento, porquanto não se beneficiam com os avanços tecnológicos do setor farmacêutico. De fato, o desenvolvimento de alternativas no combate dessas enfermidades não condiz com o lucro a que objetivam aqueles que teriam condições de fazê-lo.[61]
Exsurge, portanto, a necessidade de atuação do Estado no sentido de assegurar o acesso aos fármacos imprescindíveis à promoção do bem-estar de sua população. Se o alto custo de medicamentos ditos essenciais inibe ou dificulta sua prestação gratuita aos cidadãos, faz-se necessário que o Poder Público valha-se de instrumentos como a licença compulsória, a fim de otimizar a efetivação do direito fundamental à saúde. Sob este prisma, a quebra de patentes é um meio eficaz para que haja economia nos gastos públicos com a compra dos medicamentos e, por conseguinte, para que reste garantido um tratamento de qualidade à população, passando, necessariamente, pelo estímulo à produção nacional[62].
Com efeito, cumpre ao Poder Público proporcionar o acesso irrestrito aos medicamentos de caráter essencial, vinculados à noção de mínimo existencial, indispensáveis à manutenção das condições de vida condigna do indivíduo. Nos limites deste patamar mínimo, a disponibilização ou não do medicamento deixa de ser matéria discricionária. Aqui, ganha relevo a participação dos laboratórios estatais, tendo em vista possuírem eles a nobre função de produzir os medicamentos de maior importância para a saúde publica e, ainda, os fármacos necessários para uma camada de população com nível de renda muito baixo.[63]
Sob os ditames da licença involuntária está o exemplo dos medicamentos genéricos. Uma vez que a sociedade não tem acesso a determinados tipos de remédios, em razão dos preços abusivos cobrados pelos laboratórios – inventores das fórmulas e titulares dos direitos de patente –, o Estado pode entender pela obrigatoriedade do licenciamento a quem esteja apto a fornecer o produto por valores proporcionais ao poder aquisitivo da população, de forma a tornar sua comercialização condizente com os anseios sociais.[64]
Na mesma linha, o caso dos medicamentos para pacientes portadores de HIV evidencia que, além dos benefícios sociais decorrentes da garantia de acesso a esses fármacos para a população, vultuosos são também os benefícios econômicos da quebra de patentes para os países periféricos, quer para aqueles que não têm condição de pagar o preço de sua defasagem tecnológica, quer para as nações que ainda podem investir na própria capacitação, a fim de minimizar sua dependência da ciência e tecnologia produzida nos países desenvolvidos.[65]
Ora, o interesse coletivo é a própria função social que legitima a concessão de patentes. Por esta razão, não pode ser outra a conclusão senão a de que, no confronto entre direitos igualmente fundamentais, como é o caso do direito à saúde frente às limitações que o direito à propriedade industrial pode conferir-lhe, há de se dar prioridade à efetivação daquele. O estado atual das coisas demonstra que às patentes de medicamentos, independentemente de estarem elas legalmente constituídas, não se pode dar uma interpretação meramente econômica, porque, em última análise, está em jogo a saúde pública da população.[66] A solução passa, pois, pela parceria completa e definitiva entre governo e indústria privada, e não somente pela definição de linhas de financiamento nem pela produção exclusiva dos medicamentos que dão muito lucro.
À luz da proporcionalidade, o direito de patente cede, em razão do interesse social, para que se otimize a prestação positiva do Estado, o qual, a seu turno, tem o dever de assegurar a saúde de todos, incluindo aí o fornecimento de medicamentos. Com efeito, se há um valor que indubitavelmente parece pairar acima de qualquer questionamento, pelo menos diante da quase totalidade de circunstâncias fáticas que se pode imaginar, este é a vida. E o direito à saúde é, em última análise, a própria proteção da vida, devendo buscar-se, por conseguinte, instrumentos para sua efetivação.