Artigo Destaque dos editores

A autonomia municipal e as limitações orçamentárias

Exibindo página 4 de 5
09/04/2013 às 16:14
Leia nesta página:

4 A AUTONOMIA MUNICIPAL: REALIDADE X FICÇÃO CONSTITUCIONAL.

4.1 Contrastes entre a letra dos dispositivos constitucionais e as limitações da Administração Municipal.

O município na Constituição atual atingiu o estágio mais elevado em termos de conquista da sua autonomia. Enquanto em outros tempos, cabia a organização do município ora ao ente federal ora ao estado-membro, ou ainda aos dois concomitantemente, agora investe-se a administração local com o poder de definir suas competências e estruturar o seu governo, observando-se os limites constitucionais, fundamento do princípio federativo, inscritos no art. 30 da CF. Com isso, impede-se a ingerência do Estado e da União nos assuntos municipais.

Entretanto, esses avanços, em que pese sua enorme importância para o fortalecimento da identidade do ente municipal, são insuficientes para garantirem o pleno exercício da administração pública com a envergadura necessária para alavancar o desenvolvimento local. Em outras palavras, pode-se afirmar que não se verifica, na prática, a efetivação das políticas públicas no âmbito do município, com a garantia da melhor qualidade de vida da população, apenas porque os dispositivos constitucionais elevam o município à condição de ente autônomo no contexto da federação repúblicana brasileira.

As capacidades de autogoverno, de autolegislação, de auto-administração e auto-organização revestem o município com a autonomia política em seu sentido mais amplo. Isso, porém, não impede que a administração municipal esteja submetida a uma serie de limitações que testemunham contrariamente ao tão festejado principio da sua autonomia, fruto da “Constituição Cidadã”.

Os recursos orçamentários incompatíveis com a demanda dos serviços públicos restringem a atuação do poder público. Enquanto que a população é submetida a uma elevada carga tributária, que passará dos 38% em 2006 do PIB, projeção feita a partir da tabela – 1 (anexo B), apenas uma pequena parte dessa arrecadação é administrada inteiramente pelo município. Nada mais do que três impostos, somados às taxas, à previdência municipal e outros tributos locais, voltam-se 100% para o tesouro municipal, o que totalizou apenas 1,57 do PIB no ano de 2005, de acordo com a tabela acima mencionada.

Isso demonstra que há uma concentração muito grande dos recursos por parte da União e dos Estados. O povo paga os impostos a partir de fatos geradores ocasionados nos municípios. Esses recursos irrigam os cofres dos outros entes federados. Depois retornam, em parte, para a administração local. Quanto não se perde nesse intrincado labirinto tributário? Os critérios de redistribuição têm se mostrado condizentes com as necessidades administrativas dos municípios? Se os três entes são igualmente autônomos, por que o município fica com a menor fatia do bolo tributário?

São questionamentos pertinentes que trazem à tona a situação periférica da administração municipal. Sem recursos suficientes, não se pode pensar em bem-estar da população de maneira satisfatória. Por outro lado, as atribuições da União e dos Estados, principalmente no que concerne ao auxílio financeiro aos municípios, não estão sendo exercidas na verdadeira medida. Muitos contingenciamentos são efetuados para honrar os compromissos fiscais dos governos Federal e Estadual em detrimento dos interesses dos municípios. Em razão da estratégia governamental que prioriza o superávit primário para garantir o caixa de pagamento da dívida pública, o povo, que vive no município, é quem mais sente os efeitos.

Com os freqüentes cortes orçamentários, o governo federal penaliza as outras esferas administrativas, pois limita os investimentos públicos. As competências para a execução das políticas públicas são definidas pela Constituição, ocorrendo a divisão de tarefas entre as três esferas de governo. No entanto, observa-se empiricamente, que não são raras as vezes em que os municípios são sobrecarregados com deveres diferentes da suas atribuições constitucionais, tendo que assumí-los para evitar maiores conseqüências à população.

É o caso da Saúde, em que os repasses de competência da União para a manutenção do SUS – Sistema Único de Saúde, são totalmente deficitários. No tocante à Segurança Pública, enquanto atribuição do Governo do Estado, ocorre o mesmo: sem a ajuda das Prefeituras, muitas vezes as viaturas não rodam e os policiais não têm estrutura mínima para operacionalizar suas ações.

Na Educação, não é diferente. Compete ao município a viabilização das políticas para o funcionamento do ensino infantil e das primeiras séries do ensino fundamental. Contudo, a realidade é outra: sem a participação da Prefeitura, investindo seus recursos no transporte escolar e na manutenção das escolas, as últimas séries do ensino fundamental e o ensino médio não teriam condições de funcionar. Essa realidade é exposta freqüentemente nos meios de comunicação em reportagens que mostram as condições precárias do transporte escolar. A explicação é só uma: falta de recursos, com repasses insuficientes de verbas para a manutenção e custeio do serviço.

Outras situações poderiam ser registradas facilmente, pois é o reflexo de um quadro generalizado por toda a municipalidade do nosso país. Mas os casos relacionados bastam para evidenciarem as limitações do poder público municipal. Da maneira como se efetiva, na prática, o pacto federativo brasileiro, a administração local erige-se a partir de um contexto sufocante e paradoxal: de um lado possui recursos orçamentários totalmente limitados, de outro, vê suas atribuições e os seus serviços públicos serem alargados pela inércia das outras esferas governamentais.

4.2   A influência da União e do Estado no governo municipal.

Historicamente, o município, enquanto unidade administrativa, é marcado pelo domínio dos interesses das outras esferas governamentais. No período colonial e imperial pós-independência, os territórios foram transferidos por grandes extensões de terras aos senhores portugueses que estavam dispostos a promoverem a ocupação e a exploração dos recursos naturais. Não houve a preocupação em formar centros com capacidade administrativa própria, visando o crescimento e progresso ordenado. Disso tudo, resultou o surgimento das vilas totalmente desprovidas de qualquer mecanismo de infra-estrutura urbana e social.

Eram aglomerados humanos expostos à miséria, subordinados a um coronel – figura símbolo do comando político regional. Esse comandante, por sua vez, ligava-se diretamente ao poder central da coroa portuguesa ou, mais tarde, do imperador brasileiro. À medida que as vilas foram crescendo demograficamente e as atividades econômicas se expandiam também, surgiram os conselhos formados pelos vereadores. Entretanto, a relação administrativa era de completa submissão à província e ao governo imperial.

A proclamação da república, embora represente um avanço significativo para a administração pública, principalmente no que concerne à organização das instituições de cunho burocrático, pouco se alterou a realidade dos municípios de então. Mesmo com a criação do cargo de prefeito, de acordo com Meirelles (2006), não ocorreram rupturas significativas com a dependência e a subordinação ao governo dos estados e ao governo federal. Os prefeitos eram nomeados pelo governador e pertenciam ao grupo econômico dominante da região. Ainda perdurava fortemente a figura dos coronéis.

Com o advento das eleições diretas para prefeitos e vereadores, foi preciso percorrer quase um século para se alcançar a realização de pleitos com características democráticas definitivas. Por isso, o constitucionalismo pátrio é marcado por avanços e recuos das conquistas municipais, que ora registraram maior autonomia, ora voltaram-se para períodos autoritários e centralizadores em que a subordinação da administração local ao governo do estado tornou explícita e direta.

Apenas com a Constituição de 1988 é que se pode considerar o governo municipal independente das outras esferas governamentais, ao menos no plano jurídico-constitucional. De fato, não há subordinação administrativa, mas a influência dos governos estadual e federal é bastante perceptível. A começar pela dependência financeira. Sem recursos próprios suficientes, mesmo com os repasses e transferências vinculados legalmente, os municípios ficam a mercê dos outros governos. Essa pressão ocorre, muitas vezes, de forma subliminar. Aqueles municípios cujo governo é alinhado politicamente ao mandatário do Estado ou da União acaba sendo distinguido no repasse das verbas.

É comum, todos os anos, realizarem-se marchas de prefeitos e vereadores a Brasília em busca da ampliação das receitas municipais. Isso é a prova de que ainda sobram inúmeros resquícios do coronelismo que marcou a administração pública no Brasil por longas décadas, seguidas ou alternadas. Mesmo com o amadurecimento e com a consolidação democrática das instituições públicas, a autonomia do governo municipal é colocada em xeque freqüentemente. Sem o aval das autoridades do Estado ou da União, dos Poderes Executivo e Legislativo, o prefeito encontra-se, em muitos casos, engessado, sem poder de ação frente aos problemas sociais que demandam uma resposta eficaz e imediata.

Essa realidade é fácil de ser comprovada, observando-se a atuação parlamentar, tanto das Assembléias Legislativas quanto do Congresso Nacional. Sem as Emendas que os parlamentares garantem aos municípios nos orçamentos dos Estados e da União, a administração local não pode realizar investimentos e melhorias. Deve-se considerar que a seleção dos municípios a serem contemplados é feita por critérios meramente políticos.

Além dessa relação de dependência com o parlamentar, os prefeitos obrigam-se a se perfilarem no partido político do Governador ou do Presidente da República, migrando muito mais por interesses da municipalidade do que por qualquer vínculo ideológico. Tal afirmação ganha relevância ao observar-se, a titulo exemplificativo, os dados constantes na tabela –1 do IBGE, confrontados com a relação atual dos prefeitos e seus respectivos partidos, fornecida pela Casa Civil do Estado do Paraná, (anexo C). No Paraná, olhando-se apenas quatro partidos – dois situacionistas e dois oposicionistas, Verifica-se que no período inferior a dois anos, o partido do Governador, o PMDB, passou de 121 prefeitos eleitos em 2004 para 191; e o PT, o partido do Presidente da República, de 12, passou a 28, atualmente. Enquanto que o PSDB e o PFL, principais partidos de oposição ao Governo Federal e ao Governo Estadual (embora parcialmente, pois no parlamento nem sempre os partidos atuam de forma homogênea,) tiveram a redução de 81, para 41 e de 46, para 8, respectivamente. Está aí mais um indício robusto da ingerência administrativa, ainda que camuflada, a que os municípios estão submetidos.

É claro que essa intervenção ocorre por meio do exercício do poder no plano material, mesmo que a estrutura constitucional da República Brasileira estabeleça a autonomia dos entes federados, garantindo a administração própria e independente. Surgem fortes indícios de que os dispositivos constitucionais assemelham-se a conteúdos ficcionais, quando se confronta a letra da Carta Magna com a realidade. Transparece a influência política e administrativa das outras esferas governamentais nos assuntos de interesse da administração local, não apenas em termos de cooperação e parcerias, mas principalmente como força condicionante que faz do Município a extensão dos interesses do grupo político que governa o Estado e a República. Do contrário, por que haveria tanto interesse em filiar prefeitos?

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

4.3  Visão da República Federativa Brasileira a partir do ente municipal.

Não se imagina o município como uma ilha administrativa. O pacto federativo que distribui competências aos governos instituídos em cada esfera do poder público possibilita a estruturação do Estado. Não há como conceber um país erigido na segurança jurídica de suas instituições sem que haja esse entrelaçamento das funções governamentais. Entretanto, como se visualiza ao longo deste estudo, amparado nas obras de Castro (1991) e Meirelles (2006), a base da República é o município e, acertadamente, o constituinte, seguindo o curso histórico dos avanços e conquistas político-administrativas, garantiu a autonomia política como jamais a municipalidade tinha sido investida.

Deve-se partir sempre dessa constatação para se ter a medida certa do alcance das diretrizes constitucionais da matéria em análise. Infelizmente, as concepções jurídico-filosóficas enxertas no ordenamento pátrio conquistam maior velocidade nas inovações que apresentam, do que a capacidade de mudanças da cultura administrativa centralizadora, característica principal da formação do estado brasileiro.

Na medida em que se vislumbra a República Federativa pátria a partir do prisma municipal, reconstrói-se o verdadeiro caminho por onde trafegam os interesses da população. Não há que se falar em estrutura orgânica populacional fora dos domínios do município, o que torna, em certa medida, as outras esferas administrativas abstratas. Todos os recursos tributários, responsáveis pela manutenção da ordem pública vigente no país, têm uma única origem: o contribuinte municipal. Além disso, o voto que legitima os governos instituídos para além dos domínios locais são oriundos também do mesmo território. Portanto, a federação só é possível por estruturar-se em bases sólidas e concretas, onde o povo vive, prospera ou sucumbe diante das crises.

Com toda essa potencialidade decisiva para manter a República, o Município não possui a mesma força governamental. As decisões que emanam dos núcleos de poder das outras esferas atingem imediatamente os interesses locais. É o reflexo de um sistema de governo que parte da visão administrativa federal e desce verticalmente para atingir suas conseqüências nas dependências municipais. Dessa forma, não se pode estranhar que um país com imensas capacidades de desenvolvimento permaneça inerte, expondo sua gente a volumosos sacrifícios para sustentar um gigante desordenado. Sem o fortalecimento do ente municipal, acrescentando nova envergadura à sua administração, a nação seguirá a passos cambaleantes cada vez mais em direção à periferia do mundo pós-moderno.

Ser a base implica em ser forte. Do contrário, não há sustentação. Em que bases se sustenta a República Brasileira? A resposta é só uma: em municípios enfraquecidos e sobrecarregados por extraordinário encargo social. Diante disso, urge o estabelecimento de maior sintonia do texto constitucional no que se refere à autonomia municipal, com a distribuição das competências administrativas entre os entes federados, tendo a finalidade de dotar o poder público local com estrutura compatível às suas atribuições.  Para tanto, deve-se rever vários critérios de relacionamento dos governos. É preciso extirpar a prática clientelista-eleitoreira que privilegia a afinidade política em detrimento dos interesses administrativos.

Na mesma linha, é preciso repensar o sistema tributário nacional de forma a contemplar o tesouro municipal com a receita necessária para a promoção das políticas públicas com a eficiência, capaz de realizar o progresso social permanente. Enquanto os recursos públicos retornarem ao município em proporções minúsculas, da forma como ocorre atualmente, com a demonstração feita a partir das tabelas do anexo B, não haverá projeto viável de crescimento econômico para o país. Somente a descentralização administrativa, com o devido aporte orçamentário, trará maior justiça ao exercício do poder e equilíbrio das contas públicas, fatores essenciais à consolidação de um projeto de desenvolvimento nacional sólido.

Controlar e gastar de forma planejada de acordo com os dispositivos da LRF resultam em medidas importantes para moralizar a administração pública. No entanto, para os municípios cumprirem as metas da lei fiscal e não descuidarem de suas responsabilidades sociais precisam deixar de ser vistos apenas como redutos políticos, para serem tratados no contexto da federação como unidades administrativas autônomas, com capacidades constitucionais plenas para gerir os interesses locais. Assim, a União e os Estados deixarão de ser espoliadores da força municipal para serem parceiros no sentido mais denso que se possa construir.

Para tanto, faz-se necessário a visão una do Estado em que a República resulte da integração das esferas de governo voltadas para um ponto comum: o bem estar e a prosperidade do seu povo. Esse é o estágio ideal para que a realidade se amolde com maior inteireza ao Principio da Autonomia Municipal, solenemente inscrito na Constituição Federal.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Paulo Cezar Basilio

Professor QPM - Paraná. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASILIO, Paulo Cezar. A autonomia municipal e as limitações orçamentárias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3569, 9 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24154. Acesso em: 24 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos