A notícia jurídica de destaque desta semana foi a admissão pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda Constitucional 33/2011, que propõe algumas alterações no nosso sistema de jurisdição constitucional. O alvoroço tomou conta da mídia e das redes sociais, invariavelmente com posições contrárias à PEC. É verdade que não podemos nos esquecer da atual conjuntura das relações STF/Congresso pós-ação penal 470, e do fato de que dois mensaleiros condenados fazem parte da comissão que admitiu a PEC. Não se recomenda também ignorar que um dos meios de ação da “onda rosa” dos governos bolivarianistas sul-americanos é a submissão do Judiciário ao governo…
Entretanto, acredito que o tema comporta uma análise jurídica independente destas circunstâncias. Será que a revolta contra a PEC se justifica? Vamos analisar os três pontos principais da norma proposta…
1) Alteração do quórum para declaração de inconstitucionalidade de normas (art. 97), dos atuais 2/3 para 4/5, no CONTROLE DIFUSO.
A zona de crítica aqui é cinzenta. Qual seria a fração “adequada”? 1/2? 2/3? 4/5? 7/9? Na prática, a finalidade desta alteração é fortalecer a presunção de constitucionalidade das leis, ao tornar mais difícil a declaração judicial do contrário. Longe de haver uma resposta jurídica correta, o debate aqui é mais de projeto institucional, e reflete o quadro dinâmico de forças na política interinstitucional, no qual o judiciário, como qualquer órgão do governo, se insere.
Como esse dispositivo só se aplica a órgãos colegiados, e como no nosso sistema judiciário apenas os tribunais de segunda instância em diante se estruturam dessa forma, a alteração proposta pela emenda é inócua para uma das principais características negativas de nossa jurisdição constitucional difusa. Refiro-me ao fato de um juiz de primeira instância, que julga sozinho os casos, poder decidir sobre a constitucionalidade das normas que manipula.
Aliás, eu nunca entendi muito bem de onde vem esse poder dos juízes, já que no texto da Constituição e do Código de Processo Civil a única menção a juízo de constitucionalidade, mesmo difuso, é para os tribunais. O entendimento dominante é que este poder decorre de uma “tradição hermenêutica” de nosso direito… “Tradição” em uma ordem constitucional de 25 anos? Como acreditar na seriedade do direito constitucional legislado se se tolera que uma competência tão relevante seja atribuída de forma meramente tácita?
Os manuais de direito constitucional têm todas as respostas para minhas angústias, é claro. Eles explicam que essa característica de nossa jurisdição constitucional difusa veio por importação dos EUA, na época de Rui Barbosa. Os manuais só se esquecem de contextualizar que lá as decisões judiciais devem obedecer seriamente à jurisprudência precedente (não como aqui, onde o uso de jurisprudência é procurar e citar uma decisão até achar uma que adote tese favorável, ainda que todas as outras decisões sejam contrárias), e que eles são – um pouco – mais conservadores em hermenêutica do que nós. Some-se a isso tudo o etos da geração atual de juristas de acreditar que o direito deve ser um instrumento de “transformação da sociedade”, e a prática que a ninguém assusta mais de ignorar o texto explícito e concreto de uma norma em favor de uma construção instantânea baseada meramente em valores abstratos (o panprincipiologismo de LenioStreck), e tem-se aí a fórmula do Princípio da Incerteza Jurídica Brasileira: [Competência de juízo constitucional duvidosa do judiciário de primeiro grau] + [nenhuma obrigação de seguir precedentes (nem os seus)] + [Ativismo (“transformação social” e “panprincipiologismo”)]. Em uma triste analogia com o “gato de Schrödinger”, em um estado de superposição quântica de estar vivo e morto ao mesmo tempo, só se sabe se uma norma brasileira é constitucional ou não quando o juiz abre a caixa do processo e espia o caso lá dentro – e cada juiz que o faz pode ver um resultado diferente. Incerteza generalizada sobre quais regras de conduta realmente valem e particularismo às últimas consequências não são características desejáveis para o Direito.
2) Deliberação pelo Congresso sobre os efeitos vinculantes de súmula.
Para Hayek o Direito consiste, em sua essência, em uma sedimentação das expectativas das pessoas sobre as condutas das outras pessoas, e essa expectativa, posto que não imutável, deve ser relativamente certa no tempo e igual para todos (algo semelhante ao que Dworkin denominou de integridade). Independentemente do tipo de suporte normativo-documental sobre o qual se funda um sistema jurídico (legislação governamental, pareceres de jurisconsultos, textos religiosos, etc.), há uma tendência natural de ordenação de a ele agregar-se qualidade mediante técnicas que aumentem o nível de conhecimento e de certeza quanto à sedimentação das expectativas normatizadas. A existência de leis escritas, por exemplo, é uma dessas técnicas, tão relevante para a tradição jurídica ocidental que algumas pessoas confundem o conceito de direito com o conceito de legislação. Agrupar leis de mesma temática em códigos é outra maneira de aumentar a certeza do direito, usualmente porque em um processo de codificação, ainda que não se tenha a intenção de inovar quanto ao conteúdo legislado, tem-se a oportunidade de eliminar discrepâncias e lacunas normativas. O dever de órgãos judiciários de se ater a decisões precedentes, independentemente do fundamento que se adote para esta obrigação, também serve para a finalidade de incrementar a certeza de um sistema jurídico.
É nesta característica de aumento da qualidade de certeza do direito que entram as súmulas. Mesmo em um sistema jurídico como o nosso, legislado e codificado, ainda sobram espaços de incerteza. A nossa tradição de manuais, de “doutrina”, das célebres “teorias” que os concurseiros estudam (ainda que relativamente pobre do ponto de vista filosófico), é bastante eficiente na atividade de usar distinções, associações e conceitos sobre “institutos” jurídicos para criar regras que não são leis, mas que efetivamente se integram ao direito em prática. Vejam-se os exemplos do poder de os juízes de primeiro grau julgarem uma lei inconstitucional, mencionado acima, ou ainda o tal do “princípio acusatório”, que não é princípio, não é valor, não está escrito em lugar nenhum, não foi debatido politicamente, mas como os membros do Ministério Público conseguiram que as pessoas acreditassem nele ao ponto de elevá-lo à expectativa jurídica, teve o poder de revogar boa parte do Código de Processo Penal.
Ou seja, temos leis, códigos, uma tradição de glosadores com influência sobre o entendimento das regras, mas não temos um sistema de precedentes!!! Na falta de um, os tribunais, especialmente os superiores, costumam há muito tempo criar “súmulas”, enunciados normativos, que na nossa “tradição” jurídica são usualmente interpretativas de questões e dúvidas reiteradas em diversos processos. Em alteração constitucional recente, evoluiu-se para a figura da “súmula vinculante”, que na prática é uma regra abstrata que se assemelha muito a uma lei em sua essência, porque todas as pessoas estão obrigadas a cumpri-la. É verdade que a redação da Constituição atualmente diz que a súmula “terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”, mas isso na prática é todo mundo. Todos os órgãos do executivo estão dentro dessa definição, e como todos os órgãos do judiciário também estão, caso dois particulares litiguem sobre uma questão sumulada, o juiz está vinculado a decidir conforme a definição normativa da súmula.
Alguém pode dizer “o legislativo não é vinculado”. De fato, mas em nossa tradição de direito legislado, o parlamento, no seu poder de legislar, não se vincula ao direito em vigor. Aliás, na configuração atual, parlamentos servem paradoxalmente para isso, para “desobedecer” o direito posto, alterando-o textualmente. Da mesma forma que se aceita que o parlamento pode alterar uma lei, aceita-se que ele pode alterar uma regra cujo conteúdo derivado foi sumulado. E é justamente neste ponto que age a parte da PEC que discutimos agora. O STF cria a súmula, mas para ela se tornar vinculante depende de deliberação do Congresso. Diferentemente do ponto (1) acima, no qual fiquei neutro quanto à qualidade jurídica da alteração proposta, neste ponto 2 sou abertamente favorável à PEC.
Como a súmula vinculante possui atributos de abstração e obrigatoriedade semelhantes aos de uma lei, faz sentido que a decisão sobre a sua efetividade fique a cargo do parlamento. Não só por uma questão de pertinência ao conceito universal de “poder legislativo”, mas também pelo fato de que, tendo o Congresso a oportunidade de deliberar sobre a súmula, e caso acate seu conteúdo, poderá melhor integrá-la ao sistema jurídico, do ponto de vista textual e de documentação. Recebendo o Congresso notícia de uma súmula do STF (e parte importante do processo de entendimento de uma súmula é o conhecimento sobre os precedentes que a fundamentam), ele pode decidir por bem modificar a(s) lei(s) para albergar o conteúdo sumulado, inserindo dispositivos de interpretação autêntica, ou especificando hipóteses normativas. Mesmo que o legislativo não concorde com a regra sumulada, ao deliberar pela rejeição do enunciado, seria possível iniciar um procedimento paralelo de modificação do texto das leis envolvidas de forma a tornar mais claro e inequívoco o sentido normativo que se quer conferir. Mais certeza quanto à normatividade, mais qualidade para o direito.
3) CONTROLE CONCENTRADO: Possibilidade de o Congresso convocar CONSULTA POPULAR para afastar declaração de inconstitucionalidade de emenda constitucional.
O Congresso Nacional possui não só o poder de “destruir” o direito posto ao modificar as leis, mas também o poder (“constituinte derivado”) de “destruir” o texto constitucional original ao aprovar as Emendas à Constituição. Porém, comparativamente, este último poder é menos amplo do que aquele primeiro, porque nossa Constituição se estrutura ao redor de um núcleo normativo que o próprio texto constitucional considera imutável. Como não se podem abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais, diz-se que o poder constituinte derivado foi intrinsecamente limitado pelo poder constituinte original.
O problema é que as hipóteses de imutabilidade são colocadas de forma muito aberta textualmente. Por exemplo, há parâmetros certos para definir quando uma PEC viola a forma federativa de Estado? Alguns ministros do STF, por exemplo, já adiantaram seu julgamento na mídia (“E pode, Arnaldo?!”), dizendo que esta PEC viola a separação de poderes. A CCJ, na sua função de averiguar previamente a compatibilidade das propostas com a Constituição, entendeu precisamente o contrário, quando regimentalmente admitiu o prosseguimento desta PEC.
De quem é a última palavra? Está escrito (102, I, a) que compete ao STF a “guarda da Constituição”, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual. Eu, com as minhas preferências hermenêuticas originalistas e textualistas, sou da opinião de que a Constituição é clara no sentido de que “lei” é a norma de hierarquia inferior à Constituição e superior às normas administrativas. Para mim, estão semanticamente abrangidas pelo termo as “leis ordinárias”, e as espécies normativas de mesma hierarquia (tratados, medidas provisórias, etc.). Esta interpretação, aliás, é consenso quando a Constituição usa o termo em outras ocasiões: todos concordam que os inúmeros “na forma da lei”, e o enunciado do princípio da legalidade (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”) tratam das regras que estão no mesmo patamar da lei ordinária. Porém, a opinião corriqueira e largamente prevalecente é a de que o STF tem o poder declarar inconstitucionais todas as espécies normativas do art. 59. Por que a interpretação textual não prevalece? Simplesmente porque o próprio STF entendeu, em diversos julgamentos, que ele tem o poder de julgar a constitucionalidade de emendas à Constituição, mesmo que a própria Constituição seja expressa em não lhe dar este poder.
A PEC poderia até ter sido mais corajosa, e restaurado de uma vez e com clareza o sentido original do texto da Constituição: o Congresso ao exercer seu poder de constituinte derivado tem o dever de se preocupar em não violar as cláusulas pétreas da Constituição, mas a este dever do Congresso não corresponde um poder jurisdicional do STF de modificar o entendimento político adotado. Preferiu-se um “caminho do meio”, e, em linhas gerais, o que a PEC faz neste ponto é apenas retirar do STF a última palavra sobre a inconstitucionalidade das alterações da Constituição, e entregar este poder à consulta popular.
É esta parte da PEC que vem causando a maior revolta entre a “comunidade de constitucionalistas”, diga-se. Minha opinião é a de que o STF é o guardião da Constituição, mas não é o controlador da vida política nacional. A evolução política do Brasil é apanágio do Congresso Nacional, o meio político institucionalizado, que se entende, em tese, como representativo da opinião soberana do povo (sim, eu sei, na prática o Congresso “não me representa”, mas o STF do PSDB e do PT também não…).
Dizer que “a PEC é antidemocrática” é um paradoxo porque, no final das contas, a divergência entre o Congresso e o STF é resolvida por consulta popular. É verdade que o STF vem nos últimos anos querendo demonstrar ser uma “corte anti-majoritária”, mas para mim isso não passa de um nome bonito para se confessar a desconfiança no mecanismo representativo-democrático tradicional, o voto da maioria. Sim, é verdade, a maioria pode sim oprimir a minoria. Mas isso se resolve diminuindo o poder que o governo das maiorias exerce sobre todos os indivíduos, e não trocando a ideia de representatividade do povo por uma tecnocracia de juristas supremos.
“A PEC viola a separação de poderes”: é uma crítica dos que reclamam da violação de nossa “tradição constitucional”, e do modelo de corte constitucional que temos no presente. Isto é uma falácia porque, por exemplo, o STF não teve muitos pudores de não dar a última palavra no caso da extradição do literato-terrorista Cesare Battisti. Os que aderem a esta crítica têm de certa forma uma visão limitada de constitucionalismo, porque só se atém ao que o próprio STF entende, no presente, ser o seu papel de corte constitucional. Ignoram que a evolução do modelo de corte constitucional que temos hoje no Brasil foi autorreferente, no sentido de que, em alguma medida, foi o STF que se atribuiu os poderes que tem hoje, em uma evolução a partir de teorias acadêmicas sobre cortes constitucionais estrangeiras, e da visão de mundo e de posicionamentos doutrinários de uns poucos ministros. Quem reclama que esta PEC viola a separação de poderes se esquece de que o STF torce e retorce o texto da Constituição adotando fundamentos de ocasião, e amparado em uma certa teoria de “mutação constitucional”.
Há mais de constitucionalismo do que a teoria da norma constitucional de Häberle, do que o modelo kelseniano de corte constitucional, do que a teoria hermenêutica de Alexy, do que os aparatos de manipulação da linguagem de Habermas e do qeu as teorias coletivistas de valores de Dworkin e Rawls. O mundo das visões jurídicas sobre decisão, linguagem e valores é muito maior do que isso. Nossos constitucionalistas estão sempre prontos a macaquear tradições e teorias legais estrangeiras, mas não toleram a discussão parlamentar sobre a amplitude dos poderes e das características dos órgãos de jurisdição constitucional nacionais. O mais grave é que esse modelo teórico de corte constitucional produziu ao longo do tempo um STF extremamente contrário aos princípios jurídicos que propiciam um livre mercado.
E se o STF julgar esta emenda inconstitucional? Está aí uma briga que pago para ver…