III – OS PRINCÍPIPOS UNIDROIT
Em 1994, formou-se um grupo de estudos composto por expertos em direito do comércio internacional provenientes de nações diversas de todo o mundo. Reuniram-se sob o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado, conhecido como Unidroit, e publicaram um elenco de princípios dos contratos do comércio internacional. Em 2004, dado o êxito da primeira edição, foi publicada a segunda edição dos princípios Unidroit. Atualmente, tais princípios, cada vez mais, vêm sendo reconhecidos pela doutrina, pelos ordenamentos jurídicos domésticos[37] e pela jurisprudência internacional como fonte de direito do comércio internacional a título de princípios gerais de direito[38].
Tal iniciativa derivou da constatação da necessidade de harmonização das regras do direito do comércio internacional. Afinal, observou-se que, apesar do intenso aumento do volume das trocas comerciais e do desenvolvimento dos mercados, cada vez mais integrados, as relações comerciais transacionais continuam, em sua maior parte, sujeitas aos ordenamentos jurídicos internos dos Estados. Todavia, o direito doméstico dos países existentes no globo não é uniforme, ao contrário, muitas vezes é conflitante. De tal situação, derivam incertezas jurídicas e inconvenientes evidentes no que tange às trocas de âmbito internacional. Por exemplo, o fato de haver regras diversas de direito internacional privado em cada país resulta em incerteza no que diz respeito à lei que será aplicada a um determinado contrato. Além disso, os sistemas de direito nacionais costumam ser inadequados ás exigências do comércio internacional, uma vez que a complexidade dos contratos que sofrem influência de mais de um ordenamento jurídico é, indubitavelmente, maior, o que exige, consequentemente, um complexo de normas específico para disciplinar a matéria.
Também as normas derivadas de convenções e tratados internacionais não se mostram um meio eficaz para uniformização das normas de direito do comércio internacional. Na maioria das vezes tendem a ser “letra morta”, pois dependem de aprovação interna dos Estados signatários. Outra característica desfavorável é o caráter fragmentário dos tratados e convenções, uma vez que, na maioria dos casos, regulam somente um determinado tipo de contrato, como o leasing ou o factoring, por exemplo. Ressalta-se, ainda que, mesmo que sejam acolhidos pelo legislador interno, poderão ser objeto de interpretações que podem variar de Estado para Estado. Por fim, configuram-se, assim como as normas domésticas, instrumentos demasiadamente rígidos. Afinal, o comércio que se desenvolve internacionalmente é dinâmico e não pode estar sujeito a uma forma de normatização inflexível sob pena de engessamento das relações de troca. Nesse sentido, mais adequadas são aquelas regras passíveis de serem adaptadas com maior flexibilidade, sobretudo, normas que se configurem como Soft Law[39].
Em se tratando da matéria em relação à União Européia, o professor Guido Alpa aponta para o fracasso das diretivas da Corte de Justiça para a uniformização das regras aplicáveis aos contratos internacionais de maneira sistemática. O professor afirma que as mesmas são aprovadas em diferentes períodos e, por esse motivo, não são coordenadas quanto aos seus conteúdos ou quanto à sua validade. Argumenta, ainda, que as diretivas surgem com ambigüidades terminológicas, na medida em que são, primeiramente, redigidas em inglês ou francês para depois serem traduzidas para outros idiomas. Outra dificuldade apresentada pelo autor é que cada diretiva é implementada de maneira diversa em cada Estado-membro, o que impossibilita uma eventual uniformização. Por fim, argui que outros problemas decorrem do lapso temporal entre a promulgação da diretiva e de sua implementação no país-membro, bem como do modo de interpretação da diretiva em cada Estado[40].
Todavia, também as várias cláusulas-modelo e contratos-tipo, que costumam ser apontados como Soft Law, não constituem alternativas satisfatórias. Isso porque, ainda quando são aceitas pela societas mercatorum em seu específico âmbito contratual de aplicação, podem conflitar com princípios e valores fundamentais de outros direitos nacionais. Além disso, são criados unilateralmente pela classe comercial, o que pode resultar em um juízo de direito não democrático.
No que se refere a instrumentos supranacionais criados por organizações internacionais não governamentais, pode-se dizer que oferecem soluções apenas parciais para o problema da harmonização das normas de direito do comércio internacional[41]. Apesar de emanados por organizações “neutras”, tratam-se de instrumentos que pressupõem a existência de um sistema normativo mais geral, capaz de resolver as questões pelos mesmos não reguladas e de estabelecer suas condições e limites de eficácia.
Por fim, também o referimento pelas partes no contrato a princípios gerais de direito ou à Lex Mercatoria como regras reguladoras do contrato não são suficientes. Afinal, falta, na esfera internacional, uma definição suficientemente precisa no que se refere a esses princípios e a uma hipotética Lex Mercatoria. Nesse sentido, uma escolha nesse sentido tende a provocar uma situação de insegurança e imprevisibilidade.
Diante desse contexto, os princípios Unidroit foram elaborados com o objetivo de solucionar, ao menos, algumas carências que existem, na atualidade, em relação à disciplina dos contratos internacionais[42]. Destinam-se, dessa forma, a resolver com precisão, clareza, previsibilidade e uniformidade os pontos que, normalmente, não são regulados pelos contratos e que são deixados à mercê de diferentes normas de ordenamentos jurídicos nacionais diversos[43].
Visam, portanto, aproximar os agentes econômicos internacionais e derrubar as barreiras comerciais existentes nos ordenamentos jurídicos domésticos. Evita-se, por esse motivo, a utilização de terminologias peculiares a um determinado sistema jurídico, criando-se, para esse fim, uma linguagem eminentemente jurídica que pode ser usada e compreendida em todo o mundo, de modo a constituir um direito neutro e de linguagem comum.
Deve-se ressaltar, ainda, que os princípios UNIDROIT não se tratam somente de uma codificação dos princípios emanados das práticas e costumes do comércio internacional. A sua função vai além dessa, uma vez que são também apontadas eventuais soluções para os problemas do comércio internacional alternativas àquelas que são majoritariamente aceitas. Nesse sentido, pode-se dizer que os princípios Unidroit são uma mistura de tradição e inovação. Seu caráter tradicional remete ao fato de enunciarem princípios gerais já presentes na maior parte dos sistemas legais existentes no mundo. Por outro lado, sua originalidade provém da enunciação de soluções claramente inovadoras para dificuldades atuais do comércio internacional[44].
Além disso, seu caráter não vinculante garante aos princípios Unidroit uma flexibilidade maior, ou seja, uma maior propensão a adaptar-se e a atender às exigências, sempre em transformação, do comércio internacional. Além disso, o fato de não estarem ligados a qualquer ordenamento jurídico em particular confere maior discricionariedade na elaboração dos mesmos. Sendo assim, sua aplicação depende, exclusivamente, de sua capacidade de persuasão[45].
Os princípios Unidroit possuem âmbito de aplicação restrito aos contratos comerciais internacionais. Em se tratando da restrição no que se refere à comercialidade do contrato, não se visa, de maneira alguma, remeter-se à distinção entre contratos civis e comerciais existente em alguns ordenamentos jurídicos. Busca-se, na verdade, excluir os contratos de consumo, uma vez que os sistemas legais vêm, cada vez mais, submetendo essa espécie contratual a legislações especiais que objetivam a proteção do consumidor[46]. Quanto à necessidade de internacionalidade do contrato, pretende-se dar a esse termo a interpretação mais ampla possível. Nesse sentido, excluem-se, exclusivamente, os contratos em que nenhum elemento relevante do contrato apresente o fator de estraneidade[47].
De acordo com o preâmbulo dos princípios Unidroit, os mesmos possuem os seguintes escopos:
a) disciplinar o contrato quando as partes tenham concordado que o contrato seja disciplinado pelos mesmos;
b) reger o contrato quando as partes tenham elencado os princípios gerais de direito ou a Lex Mercatoria como normas aplicáveis ao mesmo, ou, ainda, quando façam referência a essas normas por meio de outras expressões;
c) oferecer soluções, quando no contrato não esteja definida a lei aplicável;
d) servir de instrumento para interpretação ou integração das normas internacionais uniformes;
e) orientar legisladores nacionais e/ou internacionais na elaboração de normas e regulamentos.
Contudo, a maior parte da doutrina afirma que a função dos princípios Unidroit não se exaure naquelas previstas em seu preâmbulo. De acordo com o autor Fabrizio Marrella, a funções dos princípios Unidroit seriam:
- direito aplicável tout court ao mérito de controvérsias transacionais;
- instrumento de integração e interpretação do direito aplicável;
- instrumento de interpretação do direito uniforme;
- fonte de conhecimento e instrumento de codificação da nova Lex Mercatoria;
- modelo para o legislador nacional e internacional;
- princípios gerais de direito como aqueles previstos no artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça;
- guia para a redação contratual;
- esperanto de comunicação jurídica;
- instrumento didático; e
- possível instrumento de individualização dos usos do comércio internacional[48].
Deve-se sempre atentar para o fato de que a utilização dos princípios Unidroit não exclui a aplicação da lei nacional selecionada pelas partes ou da lei à qual o contrato seria sujeita em caso de não indicação de um ordenamento jurídico doméstico pelas partes. Não exclui, ainda, a aplicação de normas imperativas que são aplicáveis com base nas normas de direito internacional privado[49].
Em se tratando dos princípios Unidroit como Lex Contractus selecionada pelos agentes contratantes, pode-se dizer que operam como uma espécie de ius commune, ao qual as partes podem referir-se como regras reguladoras do contrato ou, ainda, que podem ser aplicadas por cortes estatais ou tribunais arbitrais mesmo na ausência de referimento das partes. A vantagem da escolha dos princípios Unidroit como normas regedoras do contrato é o fato serem independentes de quaisquer sistemas legais nacionais e, sendo assim, não se corre o risco de ser favorecido um ou outro contratante.
Quanto a possibilidade de as partes efetivamente escolherem os princípios Unidroit como regras aplicáveis ao contrato, é necessário, preliminarmente, distinguir os casos a serem submetidos a uma corte nacional daqueles a serem postos diante de um sistema de arbitragem. Afinal, as cortes nacionais tendem a aplicar as leis do próprio Estado, inclusive em se tratando de normas aplicáveis a conflitos de leis no espaço. Essas últimas costumam limitar a escolha das regras aplicáveis aos contratos internacionais às leis do respectivo Estado. Sendo assim, a escolha dos princípios Unidroit para regimento do contrato será, em via de regra, considerado um mero acordo entre as partes para sua inclusão no conteúdo do contrato, restando, ainda, a determinar a lei aplicável ao contrato, que será estabelecida com base nas leis de direito internacional privado. Existem, contudo, exceções a essa interpretação. Há correntes doutrinárias, por exemplo, que interpretem o artigo terceiro da Convenção de Roma de 1980 de forma liberal, admitindo que as partes invoquem os princípios Unidroit como normas reguladoras do contrato mesmo diante de uma corte nacional. Todavia, a mesma dificuldade, normalmente, não se encontra quando o conflito é colocado diante de um tribunal arbitral. Afinal, a maioria dos ordenamentos jurídicos recente sobre a matéria de arbitragem reza que cabe às partes dispor sobre as “regras de direito” (e não lei) aplicáveis ao contrato. A consequência disso é que se tende a admitir a seleção dos princípios Unidroit como normas regentes do contrato, excluindo-se qualquer outra lei doméstica em particular[50].
Conforme se verificou anteriormente, os princípios Unidroit costumam ser apontados como meio de interpretação e integração de leis domésticas. No que se refere às leis de um ordenamento jurídico nacional, podem ocorrer hipóteses em que, com base nas normas de direito internacional privado, haja impossibilidade de definição da lei aplicável. Em uma situação como essa, os princípios Unidroit poderão ser aplicados em substituição a uma legislação nacional. O mesmo pode ocorrer quando, ainda que determinável a lei aplicável ao contrato, a mesma seja de caráter rudimentar ou, ainda, cujo acesso seja tão difícil que demande esforços e custos desproporcionais. Além disso, os princípios Unidroit podem desempenhar importante papel na interpretação das leis nacionais que regulam um determinado contrato, quando a mesma não for clara ou apresentar lacunas. Nesse sentido, cortes nacionais ou árbitros podem inspirar-se nas soluções enumeradas pelos princípios[51].
Em se tratando das regras internacionais aplicáveis ao comércio internacional, os princípios Unidroit também costumam ser apontados como instrumentos relevantes para integração e interpretação. Afinal, dentre juízes a árbitros, a tendência atual que tem se demonstrado é o recurso a princípios autônomos e internacionalmente uniformes para dirimir conflitos relacionados a contratos internacionais[52]. Contudo, parte da doutrina questiona-se, por exemplo, se os princípios Unidroit seriam aplicáveis na interpretação da Convenção sobre Contratos de Compra e Venda Internacional (Convention on Contracts for the International Sale of Goods – CIG). Parte dos autores nega essa possibilidade, afirmando que a CIG preexistiria aos princípios e, assim sendo, não poderiam ter qualquer relevância para a carta. Entretanto, outra parte da doutrina defende, veementemente, tal possibilidade, argumentando tratarem-se de princípios gerais dos contratos do comércio internacional. Para o professor Michael Joachim Bonell, uma correta solução seria admitir uma certa dúvida quanto à possibilidade de utilização dos princípios Unidroit na interpretação da CIG, mas admitir que sejam usados dessa forma desde que componham também os princípios que norteiam a CIG[53].
Conforme já se verificou anteriormente, os princípios Unidroit são, em via de regra, aceitos como princípios gerais de direito nos termos do artigo 38 da Corte Internacional de Justiça. Nesse sentido, têm por função superar as críticas de vagueza em virtude da excessiva abstração da Lex Mercatoria[54].
No que se refere à função dos princípios como instrumento de codificação da Lex Mercatoria, não restam dúvidas de que compõe a intenção dos compiladores dos princípios a melhor definição do conteúdo da Lex Mercatoria, tendo em vista a eliminação de arbitrariedades e indeterminação. Todavia, é relevante atentar para o fato de que os princípios Unidroit não visam apresentar-se como uma fonte codificada exaustiva das regras da Lex Mercatoria. Tanto que há muitas decisões provindas de tribunais arbitrais que, apesar de fazerem referência à Lex Mercatoria, não fazerm qualquer menção aos princípios Unidroit. Configuram, portanto, uma codificação parcial da Lex Mercatoria[55].
Interessante, ainda, a função dos princípios Unidroit como guia na redação dos contratos internacionais. Afinal, partes provenientes de diferentes partes do globo podem encontrar dificuldades em se comunicar, tendo em vista as diferentes terminologias adotadas em cada lugar e a extensão da aplicação das mesmas em seus respectivos países. Por meio da utilização dos termos empregados nos princípios Unidroit, os contratantes podem elaborar seus contratos sob uma linguagem neutra e de definição uniforme em todo o mundo. Além disso, os princípios podem ser dotados de uma função pedagógica, na medida em que podem vir a auxiliar as partes a identificarem as principais questões legais envolvidas em cada determinado tipo de contrato[56].
A função dos princípios Unidroit como esperanto jurídico está relacionada à criação de uma linguagem jurídica uniforme aplicável a contratos celebrados entre partes provenientes de quaisquer Estados do globo. Dessa maneira, adota-se, por exemplo, em nível mundial, o mesmo conceito de boa-fé contratual, o que garante maior previsibilidade e estabilidade aos contratos internacionais[57].
Também a função de modelo para legisladores nacionais e internacionais é relevante. Em nível nacional, a importância apresenta-se tanto para os países que possuem um corpo menos desenvolvido de regras pertinentes aos contratos, uma vez que esses países poderão se inspirar nos princípios para atualizar suas normas, quanto para países com sistemas legislativos mais desenvolvidos que devem reescrever suas normas tendo em vista as mudanças sociopolíticas estruturais ocorridas recentemente no mundo. Em nível internacional, os princípios poder ser tomados por significativa fonte de inspiração na elaboração de tratados e convenções internacionais, bem como de leis-modelo[58]. A exemplo disso, pode-se citar o novo código civil da Federação Russa de 1995, em que os princípios Unidroit desempenharam importantíssimo papel como fonte de inspiração, sendo que, inclusive, algumas de suas provisões, como a de hardship, foram adotadas praticamente de forma literal[59].
Não se questiona, ainda, seu valor didático. Afinal, cada vez mais vêm sendo incorporados à grade curricular das melhores universidades de todo o mundo.
Também não há dúvidas quanto à sua instrumentalidade para individualização dos usos do comércio internacional. Nunca é exaustivo ressaltar que, apesar de muitas vezes haver coincidência entre usos e costumes do comércio internacional e os princípios Unidroit, as categorias não se confundem umas com as outras. Os usos e costumes tratam-se de direito de formação espontânea, em constante transformação, o que impede a sua codificação em forma escrita. Enquanto isso, os princípios são dotados de um nível de abrastração elevado e maior estabilidade. Nesse sentido, caso se admitisse a confusão das duas terminologias, a elaboração dos princípios Unidroit não passaria de uma codificação obsoleta[60].
É inegável que, em um primeiro momento, os princípios Unidroit, criados sob os auspícios de uma organização não governamental e sem poder legislativo, podem parecer apenas um exercício acadêmico sem qualquer utilidade prática. Contudo, após uma análise mais apurada, é possível concluir que servem, de maneira efetiva, a uma série de propósitos de grande relevância prática para o comércio internacional no que se refere à uniformização das normas que o regulam e, consequentemente, na maior fluidez das trocas realizadas em nível internacional e no seu desenvolvimento[61].