4 A RESPONSABILIDADE PELA CONFIANÇA
4.1 Origem, conceitos e aplicabilidade
Não é certa a origem jurídica do princípio da proteção da confiança. A doutrina diverge entre uma evolução da bona-fides e romana e oleadin caseprevidenciáriodo Direito germânico.
Para a primeira corrente, a origem da boa-fé estaria ligada ao período mais antigo da civilização romana, no culto da deusa Fides, se desenvolvendo com a prática jurídica pretoriana e as influências dos direitos canônicos e germânicos, chegando aos dias do hoje com uma complexa dimensão conceitual.[55]
Já para outros, apesar de reconhecerem a evolução do princípio da confiança, defendem que é impossível atribuir ao Direito Romano toda a dimensão do conceito jurídico que se vê nos dias de hoje.
Márcio Augusto de Vasconcelos Diniz e Ludiana Carla Braga Façanha Rocha afirmam que:
“Ainda durante a separação entre Alemanha Oriental e Alemanha Ocidental uma decisão do Tribunal Administrativo Superior de Berlim, em 14/11/1956 é apontada como leading case na proteção à confiança. Uma viúva que residia na República Democrática Alemã, sob a promessa de percepção de pensão se mudou para a Berlim-ocidental, onde percebeu o benefício prometido, durante um ano. Passado este tempo, a administração revogou o ato concessivo em razão de ter verificado que a viúva não preenchia os requisitos para ser incluída como beneficiária. Além de suspender o pagamento, cobrou todos os valores que já haviam sido pagos.Submetida a questão ao Tribunal Administrativo Superior de Berlim, este decidiu que o princípio da confiança deveria prevalecer frente à legalidade e, mesmo não havendo fundamento normativo que subsidiasse a concessão do benefício este não poderia ser revogado. Esta decisão foi confirmada pelo Tribunal Administrativo Federal”.[56]
Para além do debate envolvendo sua origem, certo é que hodiernamente a proteção da confiança vem sendo aplicada nos diversos ramos do direito.
A começar pelo Direito Constitucional, a doutrina converge em situar o princípio da proteção da confiança, como princípio constitucional implícito, decorrente da própria lógica do Estado Democrático de Direito.
Karl Larenz afirma que essa foi a interpretação dada pelo Tribunal Constitucional Federal. Segundo a Corte Constitucional alemã é possível extrair do princípio do Estado de Direito dois sub-princípios: a proporcionalidade, que seria a noção de adequação entre meio e fim, e a confiança, princípio que garante a segurança jurídica do cidadão, proibindo, inclusive a retroatividade abusiva das leis.[57]
Para os constitucionalistas, devido a sua amplitude semântica, a confiança vem sempre relacionada outras normas jurídicas, como, por exemplo, os princípios da segurança jurídica,irretroatividade, igualdade e dignidade da pessoa humana.
Tal fato fica claro na obra de José Joaquim Gomes Canotilho. Para ele a confiança estaria intimamente ligada aos princípios da segurança jurídica (o qual possui um caráter objetivo, enquanto a confiança seria subjetiva) e da irretroatividade.
Canotilho vai dizer que: “A idéia de segurança jurídica reconduz-se a dois princípios materiais concretizadores do princípio geral de segurança: princípio da determinabilidade de leis expresso na exigência de leis claras e densas e o princípio da proteção da confiança, traduzido na exigência de leis tendencialmente estáveis, ou, pelo menos, não lesivas da previsibilidade e calculabilidade dos cidadãos relativamente aos seus efeitos jurídicos”. [58]
Para ele:
“A orientação normativo-constitucional não significa que o problema da retroatividade das leis deva ser visualizado apenas com base em regras constitucionais. Deverá ainda acrescentar-se: uma lei retroativa pode ser inconstitucional quando um princípio constitucional, positivamente plasmado e com suficiente densidade, isso justifique. Esta formulação, que pretende ser uma conseqüência da idéia de constituição como sistema aberto de normas e princípios evita duas unilateralidades: (1) a redução do parâmetro normativo-constitucional às regras, esquecendo-se ou desprezando-se a natureza de direito atual e vinculante dos princípios: (2) a derivação para uma retórica argumentativa a partir de princípios abstratos, insuficientemente positivados ou desprovidos de densidade normativa, tais como o «princípio de non venire contra factum proprium», o «princípio da vinculação temporal do direito» («cada tempo tem o seu direito, cada direito o seu tempo»), o princípio da «garantia de direitos adquiridos», o princípio do «livre desenvolvimento da personalidade», o princípio da «igualdade do patrimônio». Uma argumentação ancorada exclusivamente em princípios deste gênero reconduzir-se-á a um infrutífero esquema tautológico (ex.: «deve ser protegida a confiança do cidadão digna de ser protegida», «devem proteger-se os direitos adquiridos por serem direitos adquiridos»).
Alguns princípios, como o princípio da segurança jurídica e o princípio de confiança do cidadão, podem ser tópicos ou pontos de vista importantes para a questão da retroatividade, mas apenas na qualidade de princípios densificadores do princípio do Estado de direito eles servem de pressuposto material à proibição da retroatividade das leis. Não é pela simples razão de o cidadão ter confiado na não-retroactividade das leis que a retroatividade é juridicamente inadmissível; mas o cidadão pode confiar na não-retroactividade quando ela se revelar ostensivamente inconstitucional perante certas normas ou princípios jurídico-constitucionaisancorada exclusivamente em princípios desse gênero reconduzir-se-á a um infrutífero esquema tautológico (ex. deve ser protegida a confiança do cidadão digna de ser protegida, devem proteger-se os direitos adquiridos por serem direitos adquiridos)”.[59]
Jorge Miranda, ao aceitar confiança como a vertente subjetiva do princípio da segurança jurídica, afirma que ela se trata de “uma tensão entre o princípio da justiça e o princípio da segurança”.[60]
Segundo ele a própria noção de direitos fundamentais já carrega em si a justificativa da proteção da confiança, pois a desconfiança no exercício do poder estatal exige uma limitação abstrata e a priori.
Nesse sentido acompanha Barreto Von Gehlen:
“Os direitos fundamentais seriam, nessa ordem de idéias, um sinal de ‘desconfiança’ para com o legislador, mormente após os traumas do séc. XX, que resultaram no ‘cemitério de todas as constituições escritas, pondo a pique teorias constitucionais fundadas na infalibilidade da lei’, comprometendo a concepção do legislador como protetor dos direitos fundamentais e a teoria da ‘vontade da maioria’ assimilada à ‘vontade geral’.[61]
Para Miranda os cidadãos guardam uma relação direta com a administração pública, no sentido exigir que sejam resguardadas suas legítimas expectativas. Desse modo, havendo um investimento de confiança motivado pelo comportamento do poder público, os cidadãos possuem direito subjetivo a exigir que a imutabilidade abusiva dessa situação (é uma das conseqüências da Administração Paritária). [62]
Já para Mariana Almeida de Souza[63], fazendo referências a Carneiro da Frada, Menezes cordeiro e Canaris, o princípio constitucional da proteção da confiança estaria ligado à dignidade da pessoa humana, ao princípio da solidariedade e ao princípio da igualdade:
“Ora, é cristalino que se a República brasileira, pelo seu artigo 3º, objetiva a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a confiança é a base da paz social, faz-se impossível vislumbrar o ordenamento pátrio independentemente do princípio da confiança. Ela deve, de acordo com a teleologia do mandamento constitucional, permear todas as relações jurídicas, mormente aquelas criadas e determinadas por atuações de vontade reconhecidas e tuteladas pelo ordenamento – os negócios jurídicos, como gênero, e sua espécie mais importante, o contrato.
E vai-se mais longe, na esteira de Menezes Cordeiro: “tratar um sujeito confiante pela mesma bitola dispensada a um outro não-confiante equivale a tratar o diferente de modo igual. Haveria, então, uma violação ao princípio da igualdade, previsto no art. 13º da Constituição (portuguesa)” (MENEZES CORDEIRO, 2000, p. 237-238), princípio este tratado na Constituição brasileira em seu art. 5º, caput.
Isto posto, a confiança é ainda vista como elemento ético do direito, na medida em que, estabelecida a necessidade de tutela da confiança pela ordem jurídica, tem-se como patente a reprovabilidade ética do “defraudar injustificado de uma atitude de confiança que se suscitou. A ordem jurídica não poderá deste modo eximir-se de proteger a confiança, sob pena de não corresponder às suas exigências mais profundas.” (CARNEIRO DA FRADA, 2004, p. 25). Por tal razão, Canaris chegou a afirmar que “o princípio da confiança pertence ao número dos princípios mais fundamentais de qualquer ordem jurídica, como componente que é da idéia de Direito entendida em sentido material.” [64]
No Direito Administrativo, as fontes da proteção da confiança também seguem essa linha de raciocínio. Porém, o âmbito de aplicação normativa guarda relação mais próxima com institutos como a revogação e anulação dos atos administrativos, bem como comportamentos contraditórios ligados ao venire contra factum proprium, Verwirkung,Erwirkung e Tu Quoque. [65]
“A idéia de confiança legítima defende a manutenção de atos administrativos, cujos efeitos se prolongaram no tempo, gerando no administrado uma expectativa legítima de continuidade, ainda que estes atos sejam eivados de ilegalidade ou inconstitucionalidade. A proteção da confiança tem por pano de fundo a necessidade de estabilização das relações ente a administração pública e os administrados”. [...] Segundo o princípio da confiança, se um ato administrativo, aparentemente legítimo, é perpetrado pela Administração Pública, gerando, no administrado a expectativa de continuidade, dada a manutenção das condições nas quais surgiu, o ato deve ser estabilizado, ainda que tenha por fundamento lei inconstitucional ou ato normativo ilegal.[...]
O princípio da confiança possui assim, três acepções. A primeira ligada ao procedimento administrativo. A segunda, relacionada a uma compensação oriunda da quebra das expectativas legitimas depositadas nos atos administrativos. A terceira cuidaria propriamente da necessidade de manutenção dos atos da administração pública”. [66]
Nesse sentido é a jurisprudência:
“LOTEAMENTO. MUNICÍPIO. PRETENSÃO DE ANULAÇÃO DO CONTRATO. BOA-FÉ. ATOS PRÓPRIOS. Tendo o município celebrado contrato de promessa de compra e venda de lote localizado em imóvel de sua propriedade, descabe o pedido de anulação dos atos, se possível a regularização do loteamento que ele mesmo está promovendo. Art. 40 da Lei 6.766/79. A teoria dos atos próprios impede que a administração pública retorne sobre os próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade de seu procedimento”.[67]
“De todo descabida a pretensão da seguradora, que deixou de realizar vistoria prévia ou de exigir a nota fiscal dos bens quando da contratação do seguro, quando evidentemente, lhe era conveniente captar o cliente, e que disso se vale coma intenção de arbitrar a seu bel prazer o valor do prejuízo”.[68]
No Direito Tributário a obra de Misabel Derzi trata especificamente da relação entre a proteção da confiança e o fisco. Segundo ela, seguindo as demais correntes do Direito Público, a confiança está diretamente ligada ao princípio da irretroatividade, da segurança jurídica e boa-fé.
Para ela, o indivíduo, com muita frequência, é obrigado a lidar com a confiança e desconfiança em relação à administração pública[69]. O Poder Legislativo produz leis inconstitucionais, ilegais ou as modificas arbitrariamente; o Poder Executivo pratica atos administrativos ilegais ou, mesmo sendo legais, altera-os sem qualquer parâmetro (arts. 100 e 146 do Código Tributário Nacional e Lei n.º 9784/99); O Poder Judiciário decide e revê continuamente a jurisprudência produzida sem qualquer compromisso com as expectativas já criadas por ele no jurisdicionado.
Dessa forma Derzi vai dizer que
“Considera-se que o princípio é ínsito à idéia de Estado de Direito, restando explicitado em nossa Constituição em diversas outras regras e princípios, sendo, portanto, cogente e com status de direito fundamental do contribuinte. Portanto, permeando todos os campos do Direito Tributário, o contribuinte pode depositar sua confiança nos atos do Poder Público editados em todos esses âmbitos, uma vez que orienta sua conduta e sua vida privada e negocial com base na lei, nos regulamentos, na prática reiterada da Administração e, por fim, no sentido atribuído pelo Poder Judiciário aos atos dos demais poderes”. [70]
No julgamento envolvendo a cobrança de tributo, a confiança aparece na posição do Ministro Celso de Mello, na relatoria do Recurso Extraordinário n.º 587.60485:
“Não se desconhece que, na cláusula constitucional que contempla o direito à segurança, inclui-se a positivação do direito à segurança jurídica, sob pena de se ignorar, com grave lesão aos cidadãos, o atributo da previsibilidade das ações estatais, que norteia e estimula a adoção de padrões de comportamento por parte das pessoas em geral (e dos contribuintes em particular).
Os cidadãos não podem ser vítimas da instabilidade das decisões proferidas pelas instâncias judiciárias ou das deliberações emanadas dos corpos legislativos. Assume relevo, desse modo, a asserção segundo a qual ‘o princípio da segurança jurídica supõe que o direito seja previsível e que as situações jurídicas permaneçam relativamente estáveis’.
A instabilidade das decisões estatais, motivada pela ruptura abrupta de critérios jurisprudenciais, que, até então, pautavam o comportamento dos contribuintes – cujo planejamento fiscal na matéria em causa traduzia expressão direta do que se continha na Súmula 276/STJ -, não pode nem deve afetar ou comprometer a esfera jurídica daqueles que, confiando em diretriz firmada pelos Tribunais e agindo de acordo com esse entendimento, ajustaram, de boa-fé, a sua conduta aos pronunciamentos reiterados do Superior Tribunal de Justiça a propósito da subsistência, no caso, da isenção da COFINS”.[71]
Também no Direito Internacional, tanto público como privado, a confiança exerce um papel fundamental, principalmente no trato das negociações internacionais.
Exemplifica Cleverson Cunha e Marlene Melo, aplicando a confiança nos relacionamentos interorganizacionais ligados ao campo da biotecnologia:
A importância da confiança é ainda maior se considerarmos as empresas que fazem uso intensivo de tecnologia e conhecimento, como as indústrias aeroespacial, de tecnologia de informação e de biotecnologia (Stuart, 1998). Aqui há necessidade crescente de trocas de informações e recursos entre as empresas em virtude da instabilidade inerente a esses negócios. No entanto, os estudos da confiança têm se concentrado nesse conceito como antecedente (Argyle, 1991) ou como resultante dos relacionamentos (Oliver, 1998). Ring e Van de Ven (1994) sugerem que, além dessas questões, o processo do desenvolvimento dos relacionamentos entre as organizações deve ser objeto de estudo. As fases de negociação, elaboração de compromissos, decisão e execução do relacionamento são decisivas para que se entenda o relacionamento de uma maneira mais ampla.[72]
No Direito Penal, além da confiança ser objeto de diversas teorias[73], o próprio Código Penal demonstra que a sociedade contemporânea garante um maior desvalor para as condutas criminosas que utilizam da relação de confiança para prática de crimes (v.g. a qualificadora do crime de furto, prevista no art. 155,§4º, II, do Código Penal).
No Direito de empresa, por sua vez, a confiança guarda função nuclear, ligada ao capital social e ao affectio societatis.
“Numa visão derivada de Giddens, mas bem menos abrangente, o conceito de confiança é, geralmente, definido a partir de suas relações estreitas com o conceito de capital social. Dessa forma, Francis FUKUYAMA (1996), inspirado em James COLEMAN (1990), o pioneiro na utilização do conceito de capital social, define este tipo de capital, como sendo “... a capacidade de as pessoas trabalharem em conjunto, em grupos e organizações que constituem a sociedade civil, para a prossecução de causas comuns” (FUKUYAMA, 1996, p. 21-22). A questão central é a capacidade de associação dos membros das diversas sociedades e comunidades, algo que “... depende do grau de partilha de normas e valores no seio de comunidades e da capacidade destas para subordinarem os interesses individuais aos interesses mais latos dos grupos” (FUKUYAMA, 1996, p. 22). Ou seja, depende fundamentalmente do grau de confiança dos membros de uma comunidade entre si. Nesses termos, pode-se afirmar que “a confiança nasce desta partilha de valores e tem, como veremos, um vasto e mensurável valor econômico” (FUKUYAMA, 1996, p. 22).
Robert D. PUTNAM (1996) considera que confiança é um componente básico do capital social-CS. Básico, mas não único, tendo em vista que identifica também “...outras formas de capital social, como as normas e as cadeias de relações sociais” (PUTNAM, 1996, p. 179- 180). Mas é inegável que para Putnam a confiança é o ponto Fundamental”. [74]
No direito processual a confiança aparece em situações como o recurso adesivo – em que a quebra de expectativa é o fundamento para se legitimar um recurso, a princípio, extemporâneo –, na multa por litigância de má-fé – pautada na lealdade processual – e a vedação ao aproveitamento da nulidade pela parte que a gerou (Turpitudinem suam allegans non auditur).
Assim, percebe-se que é possível desenvolver em cada campo do sistema do direito uma relação direta ou indireta com o princípio da proteção da confiança.
4.2 A Responsabilidade pela confiança - diferenças entre proteção da confiança e boa-fé objetiva
Definir determinado conceito implica reduzir sua dimensão semântica de forma a excluir determinadas possibilidades do seu campo de aplicação, isso faz com que, paradoxalmente, acentue a dimensão pragmática, diminuindo risco de e utlização distorcida da norma.
Em ciência, como afirma Dias do Amaral, “é necessário que cada realidade autônoma tenha designação própria, a fim de que haja precisão técnica da linguagem, bem como dos respectivos conceitos”.[75]
O que se nota, nos dias de hoje, é a utilização vulgar de conceitos distintos, como o de boa-fé objetiva, venire contra factum proprium, suppressio (Verwirkung), surrectio (Verwirkung), Stoppel, Tu quoque, Gewere, Exceptio Doli etc.
De certa forma, não há como negar que em determinadas situações tais realidades estejam intimamente ligadas (como é o caso da legítima expectativa derivada do cumprimento abstrato dos deveres decorrentes e prévios da boa-fé), contudo, como se verá, cada um detém um campo específico de atuação.
Nesse sentido Almiro do Couto e Silva vai dizer:
“Por vezes encontramos, em obras contemporâneas de Direito Público, referências a ‘boa-fé’, ‘segurança jurídica’, ‘proteção à confiança’ como se fossem conceitos intercambiáveis ou expressões sinônimas. Não é assim ou não é mais assim. Por certo, boa fé, segurança jurídica e proteção à confiança são idéias que pertencem à mesma constelação de valores. Contudo, no curso do tempo, foram se particularizando e ganhando nuances que de algum modo as diferenciam, sem que, no entanto, umas se afastem completamente das outras”.[76]
Completa Heleno Taveira Tôrres:
“E embora comumente apresentados na doutrina como expressões sinônimas ou meras decorrências um do outro, ou, ainda, aspectos diversos de uma mesma idéia, trata-se aqui de institutos diferenciados. E salienta que não podem jamais ser utilizados como panacéia para qualquer situação, quando, por exemplo, não se encontra argumento específico para discutir o caso concreto”.[77]
Na atualidade o princípio da boa-fé é uma norma que possui ampla gama de definições. Judith Martins-Costa vai dizer que seu conteúdo não pode ser “rigidamente fixado, eis que dependente sempre das concretas circunstâncias do caso”.[78]
Tradicionalmente, a boa-fé é dividida em boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva. A subjetiva consiste em um “estado de ignorância, análogo ao erro negocial, daquele que não sabe estar em uma situação irregular e, nada obstante esta ciência, atua como se titular do direito fosse, ainda sem a titularidade e sem a conseqüente legitimação para o exercício. Poderia se afirmar que, se legitimação há, esta é de fato, mas reconhecida pelo sistema justamente por conta da putatividade resultante da ignorância”. [79]
Já a objetiva, pode ser entendida como “uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes”. [80]
É o que Couto e Silva sintetiza: “a essência dos deveres de boa fé, em sentido moderno, está no comportament réflechi à l’egard d’autrui como mandamento bilateral de conduta”. [81]
Os autores, de uma forma geral, têm atribuído à boa-fé objetiva três funções potencializadas: as funções integrativa, criativa e limitadora.[82] A Primeira pode ser entendida como um mecanismo interpretativo, utilizado na superação de situações não previstas expressamente pelo ordenamento jurídico. A segunda estaria ligada aos deveres anexos, que tornam a relação obrigacional complexa.[83] A terceira, seria utilizada como norma impeditiva ao exercício abusivo da autonomia privada e do Pacta Sunt Servanda.
Dentre essas funções, restou desenvolvido pela história das relações sociais institutos próprios da boa-fé, normas, que por sua vez, não se confundem com os institutos próprios da proteção da confiança, é, por exemplo o casos daculpa in contrahendo e daculpa post factum finitum.[84]
Diferentemente do princípio da boa-fé objetiva, a normade proteção confiança determina que em certas situações as expectativas que forem criadas e legitimadas pela conduta das partes, não podem ser injustamente violadas, sob pena de tutela específica ou de obrigação de reparar o dano que não ocorreria se o lesado não tivesse agido com base na expectativa criada.
É como afirma Menezes Cordeiro: “a confiança exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos de atividade ou de crença, a certas representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efetivas. O princípio da confiança explicitaria o reconhecimento dessa situação e a sua tutela”.[85]
A norma da confiança segue a máxima segundo a qual “o direito intervém para assegurar níveis de interação social precisamente aí onde o processo de coordenação inter-individual das condutas humanas através da confiança se torna, por dificuldade ou ineficiência, impraticável”. [86]
A proteção da confiança é norma que fundamenta inúmeros outros institutos, como por exemplo, os comportamentos contraditórios previstos no venire contra factum proprium, suppressio (Verwirkung) e na surrectio (Verwirkung).
A diferenciação fundamental entre os dois institutos pode ser percebida na esfera da responsabilidade civil, uma fundamentada na quebrada de confiança e outra na violação da boa-fé objetiva.
Essa diferenciação não é pacífica, percebe-se hoje a formação de duas correntes: a primeira, defendida por Menezes Cordeiro, coloca a responsabilidade pela confiança, de certo modo, dentro da responsabilidade por violação da regra da boa-fé, e, portanto, seguiria seu modelo de responsabilidade civil.[87] E a segunda, composta por Carneiro da Frada, afirma que a tutela das legítimas expectativas não se enquadra em nenhum modelo existente nos dias de hoje, sendo necessária sua fundamentação como via autônoma de responsabilização (Tertium Genus).
Para a primeira corrente, não se poderia distinguir boa-fé e proteção da confiança. Menezes Cordeiro chega a afirmar que a confiança seria, por excelência, a “ponte entre as boas-fés objetiva e subjetiva, se fazendo presente entre ambas”.[88]
Assim, é possível dividi-la em dois grupos: a) as previsões de confiança, de características mais específicas, se assemelhando a uma séria de institutos propósitos da boa-fé subjetiva, “especificamente quando o legislador não se referiu, de modo expresso, à boa-fé”; e b) as que provenham de institutos gerais,informados por conceitos indeterminados, ligados de alguma forma à boa-fé objetiva.[89]
Eichler vai dizer:
“Esta realidade conectar-se-ia, desde logo, com os deveres pré-contratuais, devendo ser respeitadas as situações de confiança criadas nessa fase. A relação de confiança, assim derivada da boa-fé, fortalecer-se-ia em certos condicionalismos, ditados pela intensidade e pela duração do relacionar entre as partes. O estudo do uso comum da locução ‘boa-fé’ permite afirmar as suas conexões com a idéia da confiança, sendo ainda certo que esta depende, em primeira linha, do relacionar pessoal entre as partes, no que se apresentaria como ‘elemento de confiança subjetivo’ nas cláusulas gerais.”[90]
Segundo, citando Eichler, é possível aproximar a confiança à boa-fé objetiva, especificamente nos casos de aplicação do dever de lealdade: “A própria relação obrigacional afirmar-se-ia, por esta via, como relação de confiança, sendo o todo colorido pela regra universal da boa-fé.”[91]
Adere essa corrente Raphael Martins, ao criticar a atual redação do Enunciado n.º 362 da IV Jornada de Direto Civil:
“Conforme o Enunciado, cuja redação poderia ter sido mais caprichada, entende-se que a proibição do comportamento contraditório fundar-se-ia na proteção da confiança – que será referido como ‘princípio da confiança legítima’, proteção que, por sua vez, seria uma decorrência do princípio da boa-fé, previsto expressamente nos arts. 187 e 422 do Código Civil”.[92]
Acompanha esse posicionamento Fernando Noronha:
“Existe um princípio geral de direito, denominado princípio da boa-fé, ou princípio da boa-fé objetiva, segundo o qual cada pessoa deve agir, nas relações sociais, de acordo com certos padrões mínimos de conduta, socialmente recomendados, de lealdade, correção ou lisura, os quais por isso correspondem expectativas legítimas das outras pessoas. Este deve agir de acordo com a boa-fé, impõe-se na medida em que asproprias relações sociais não são possíveis sem um mínimo de confiança entre as pessoas; é por isso que os padrões de conduta exigíveis são os indispensáveis para que as expectativas legítimas das outras pessoas nao fiquem frustradas. Pode-se dizer que o princípio da boa fé é norteado pelas palavras-chaves ‘confiança legítima’, ou ‘expectativas legítimas’, sendo que escusado seria acrescentar, essa confiança e essas expectativas são duas outras pessoas com as quais cada um de nos está em relação”.[93]
Menezes Cordeiro aceita que “a aproximação entre confiança e a boa-fé constitui um passo da Ciência Jurídica que não mais se pode perder”. Mas para ele isso “só se torna produtivo quando, à confiança, se empreste um alcance material que ela, por seu turno, comunique à boa-fé”. [94]
Do contrário a confiança seria mera especulação doutrinária, sem pretensão de legitimação e fundamentação científica. É o que diz Cordeiro:
“Estas tentativas de sedimentar uma doutrina da confiança têm merecido as críticas dos estudos posteriores. De uma forma geral, as cesuras radicam na extensão desmensurada que as teorias em causa, desde H. Meyer, assumem, colidindo de modo fatal, com injunções do Direito positivo. Deve no entanto, sublinhar-se que as dificuldades ressentidas pelas velhas formulações da doutrina da confiança, contra o que possa emergir das apreciações comuns, não deriva tanto dos enunciados a que chegam, mas da metodologia que lhe subjaz. Sem uma recolha prévia de material juspositivo, que implicaria, no caso da confiança, uma batida por vários ramos do Direito, já então fora das práticas em especialização crescente, dos juristas estudioso, torna-se impossível efetuar a redução implicada pela formulação de um princípio atuante: as locubrações sobre a confiança tornam-se especulações de tipo central, desamparadas perante a realidade do sistema”. [95]
Já para a segunda corrente, a diferença estaria no fundamento da responsabilidade civil por violação da confiança. Para Carneiro da Frada, o modelo de responsabilidade civil atual não seria desenvolvido o suficiente para abarcar a responsabilidade por quebra das legítimas expectativas.
Carneiro da Frada vai desenvolver a tese de Canaris(Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht)[96] e concluir que confiança e boa-fé são grandezas que não se tocam. Podem até, em certos casos, se complementarem, mas cada uma atua em sua respectiva esfera jurídica e de forma autônoma.
Abstratamente a boa-fé seria uma norma – no direito brasileiro já positivada como regra – e, portanto, prévia, geral e obrigatória. Assim ela estaria, de plano, posta no ordenamento jurídico determinando a todos, previamente, o dever de agir com lealdade, proteção e informação. Já a responsabilidade pela confiança, não poderia ser visto como uma norma prévia, pelo contrário, ela seria uma norma construída no caso concreto.[97]
Até poder-se-ia dizer em um dever de confiança, mas a indenização por quebra da confiança só seria possível no caso concreto, em que uma expectativa se legitimaria com o cumprimento de determinados requisitos.
Dessa forma, enquanto a primeira corrente coloca a responsabilidade pela quebra da confiança no contexto contratual ou delitual, a segunda propõe que os pressupostos da tutela da confiança não se encaixam em nenhuma daquelas.
A responsabilidade contratual exige a violação de obrigações que circundam o contrato; a delitual exige, a princípio, a cumulação de três requisitos: dano, ato ilícito e nexo de causalidade; a responsabilidade pela confiança, por sua vez, exigira requisitos próprios, o que faria da tutela da confiança uma terceira via[98].
Seriam eles: a) uma conduta prévia e justificada, geradora de expectativas; b) o investimento de confiança; e c) um comportamento contraditório que frustre as expectativas criadas.[99]
O dever de respeitar a confiança surgiria somente após o primeiro requisito, momento em que se vê uma conduta criando uma expectativa legítima. Para ele não existe uma confiança, justificada, de maneira prévia e abstrata, ao contrário, ela seria construída e legitimada no caso concreto diante da postura de cada agente.
E segue Carneiro da Frada:
“Claro que na conformação dos ditames em que se concretiza a regra da conduta da boa fé podem pesar as específicas expectativas das partes, assim como representação usuais de quem se encontra no tipo de situação em causa (...) Todavia, a responsabilidade conexionada com a violação dessas representações não radica propriamente na frustração dessas expectativa, mas na infração dos ditames de correção ou razoabilidade e conduta interpretados à luz dessas expectativas”. [100]
Dessa forma os comportamentos das partes em suas relações intersubjetivas só interessam ao direito quando repercutirem na esfera jurídica de alguém. Meras esperanças ou expectativas injustificadas não terão o condão de dissolver o dever de todos de agir com a prudência inerente ao homem médio.
Ou seja:
“Não interessa portanto por si aquilo em que a vítima da violação da regra da boa fé acreditou. Quando muito, pode ser de averiguar se ela devia poder confiar no comportamento do outro. Mas as expectativas neste sentido “razoáveis” ou “legítimas” de um sujeito não são senão uma projeção de exigências objetivas de comportamento impostas pela ordem jurídica. Por outras palavras: a tutela das expectativas mediante a regra da boa fé é apenas reflexa. Releva somente no quando das exigências de probidade e equilíbrio de conduta que aquela veicula. E, como é evidente, a esperança que o sujeito deposite na sua observância não tem qualquer relevo dogmático autônomo como confiança no simples acatamento de normas que é”. [101]
Esses deveres de conduta não correspondem diretamente à norma que veda a violação de expectativas. O fato de existir um dever anexo de não criar expectativas infundadas não tem o condão de legitimar uma responsabilidade pela confiança, pelo contrário, é apenas a constatação da violação direta de uma norma previamente estabelecida pelo ordenamento jurídico.
A tutela da confiança, para ele, “não é uma linha de defesa de bens jurídicos (previamente) atribuídos às pessoas, mas uma proteção ‘lógica da coordenação de condutas’ entre sujeitos”. [102]
E segue:
“O fato de esta regra não representar um ditame (puro) de correspondência a expectativas alheias não prejudica de modo algum o dever (nela inspirado) de o sujeito não acalentar expectativas infundadas ou de esclarecer a outra parte de que as expectativas por ele criadas ou mantidas não virão ou poderão não vir a ser correspondidas, pelo menos se isso depender da sua simples vontade ou de circunstâncias sobre que ele tem o domínio. Só que este dever não é, bem vistas as coisas, destinado à realização mesma dessas expectativas. Ele limita-se, pelo contrário, a exprimir ainda meras exigências de lealdade e correção de comportamento. A responsabilidade pela sua violação não constitui, nesse sentido, uma responsabilidade pela confiança, pois a ordem jurídica não rege então à frustração de expectativas em si mesma (...). “Analogamente, quando um dos sujeitos da relação contratual cria no outro a expectativa de um certo comportamento futuro, apenas na medida em que a adoção de uma conduta defraudatória se revelar contrária ao civiliter agere, e somente porque assim é, será possível obter dele o ressarcimento dos prejuízos causados por via de regra da boa fé. Ainda não há, sumo rigore, responsabilidade pela confiança”. [103]
Outra distinção entre os dois princípios reside na hipótese irrenunciabilidade, ou não, diante da autonomia privada.
A boa fé, devido seu caráter avoluntarista e cogente, é irrenunciável, sob pena de violação expressa ao ordenamento jurídico.
Já a confiança, é perfeitamente renunciável.
Isso porque é inconcebível que uma atitude de desconfiança e aceitação volitiva de riscos poderia legitimar expectativas. Estaria se decotando de plano todos os requisito para a incidência da responsabilidade pela confiança, isto é, não haveria conduta prévia justificada, nem mesmo expectativa legítima e muito menos um comportamento contraditório.
A falta de confiança originária seria então uma das causas excludentes de responsabilidade como terceira via.
“Parece não ser possível em caso algum que as partes renunciem à regra da conduta de boa fé em qualquer das suas especificações, mas admitir-se-á com facilidade que a proteção da confiança possa ser em casos dispensada por eles, aceitando cada um dela correr por si o risco de determinada expectativa que deposita na outra poderem não se concretizar. (...) Uma reserva do sujeito, uma proteção própria contra a formação de expectativas alheias é, em princípio perfeitamente admissível e não contraria em si a regra da boa fé. Destruindo ou impedindo eficazmente a formação do Tatbestand de confiança, nenhuma responsabilidade por frustração das expectativas é suscetível de o atingir. Mas o sujeito já não pode eximir-se unilateralmente À regra de conduta da boa fé, pois as exigências de lisura e razoabilidade a que o seu comportamento deve obedecer encontram-se subtraídas à sua disponibilidade.”[104]
E complementa:
“Não Ficará então, todavia, ao menos dentro de certos condicionalismos, precludida a impugnabilidade por erro de uma eventual convenção com esse alcance. De qualquer modo, a disponibilidade da tutela não incide, posto que se destrince entre a genuína proteção da confiança e a que opera através dos deveres impostos pela boa fé, sobre uma adstrição à qual as partes estão imperativamente sujeitas. Por isso, a renúncia à proteção da confiança ou o consentimento na frustração da confiança não perfaz, summo rigore, a causa de exclusão da ilicitude apertis verbis prevista no artigo 340 n.º2 [Código Civil Português]. Todavia, uma convenção de afastamento da proteção da confiança está apenas no âmbito da disponibilidade privada se for conforme com as valorações em vista das quais a ordem jurídica concede essa tutela. De notar aqui que a convenção de exclusão da proteção da confiança, em vez de contrariar diretamente essas valorações (o que é de considerar proscrito), visa normalmente evitar o surgimento de uma situação de confiança digna de tutela em certo tipo de situações, alargando o âmbito do risco de frustração de expectativas que cada uma das partes terá de suportar. Ela limita-se pois a atuar imediatamente sobre o pressuposto da responsabilidade, eliminando-o.” [105]
Dessa forma, para essa corrente a distinção entre os institutos fica nítida, exigindo do aplicador do direito que selecione, no caso concreto, a melhor norma a ser aplicada.
4.3 O papel dos precedentes judiciais no direito brasileiro
Antes de se demonstrar o dano de confiança nas alterações jurisprudenciais, é necessário fazer breves anotações do papel dos precedentes judiciais no direito brasileiro.
Para Luis Roberto Barroso: “nos últimos anos, por fatores diversos, a jurisprudência dos tribunais, notadamente do STF, tornou-se elemento fundamental para a estabilidade e harmonia do sistema jurídico.” [106]
Isso porque a formação dos precedentes está intimamente ligada a valores essenciais do Estado Democrático, como a fundamentação das decisões, a legitimidade do poder judiciário e a igualdade na aplicação da norma.
Não obstante o direito brasileiro fazer parte da tradição Civil Law, os precedentes estão cada vez mais se solidificando como fonte normativa. O próprio legislador reconhece tal evolução, concedendo ao Judiciário cada vez mais autonomia e poder, fenômeno que se aproxima às características da lei (de regra, obrigatória, geral e inovadora).
De dissídio jurisprudencial, para se admitir recurso, a efeitos vinculantes das súmulas; da força obrigatória da decisão nas ações direitas de inconstitucionalidade à execução imediata da sentença contra a Fazenda Pública, nos casos de fundamentação da decisão fundada em jurisprudência de tribunal superior, a interpretação jurisprudencial está cada vez mais sendo instrumento de criação legítima de expectativas.
Nesse sentido, afirma Barroso, “a ascensão doutrinária e normativa do precedente não o torna imutável. Mas impõe maior deferência e cautela na superação”. Implica dizer que, os tribunais não podem simplesmente reverter, com indiferença às expectativas, uma jurisprudência já consolidada.
A própria noção de consolidação, ou mesmo do conceito de jurisprudência exige a perpetuação de expectativas e do respeito à isonomia, enquanto corolários do princípio democrático.
4.4O dano de confiança e a alteração jurisprudencial lesiva.
Dentre os elementos que formam a obrigação de indenizar, está o dano: a lesão, a diminuição no patrimônio da vítima.
Ao se falar em responsabilidade pela confiança, deve-se ter em mente o conceito de dano de confiança.
O dano de confiança está diretamente ligado à posição adotada pelo lesado por ter agido conforme a expectativa (investimento de confiança). São, por exemplo, as “despesas e outras disposições que efetuou em função da expectativa criada que se tornaram inúteis devido ao comportamento contraditório (danos emergentes, lucros cessantes e eventuais danos morais).[107]
Sua esfera, de certa forma, acaba se misturando com o dano patrimonial ou extrapatrimonial sofrido pela vítima – não obstante existirem autores que defendam uma nova dimensão do dano.
Carneiro da Frada elenca dois modelos de reparação para a tutela do dano de confiança: a proteção positiva e negativa da confiança.[108]
A proteção positiva teria o objetivo de garantir ao confiante a situação anterior à alteração da postura pela expectativa criada. Isto é, colocar o sujeito na situação correspondente à que tinha se não tivesse agido motivado pela conduta indutora de confiança.
Para ele, “é então legítimo pugnar-se por uma responsabilidade positiva pela confiança como meio de correção de forma ordinária de proteção da confiança; aí, portanto, onde esta claudica perante exigências indeclináveis de justiça.”[109]
Já a proteção negativa,atua diante da impossibilidade de se garantir o retorno ao statu quo ante, possuindo um caráter precipuamente indenizatório. Uma responsabilidade que pretende reparar o dano causado, que por sua vez, não ocorreria se o lesado não tivesse adotado determinada conduta.
A natureza jurídica da compensação, afirma o autor luso, pode visar antes de ressarcir o sujeito do dano pela frustração das expectativas que acalentou, concedendo-lheportanto (apenas) uma pretensão dirigida à reparação do prejuízo que ele não teria sofrido se não tivesse confiado”. [110]
Dessa forma percebe-se que:
“Juridicamente, com a proteção da confiança não se visa de forma alguma garantir propriamente a confiança no «compromisso» (expresso ou implícito), no sentido de efetivar juridicamente esse compromisso, mas apenas resolver um problema de responsabilidade pelos danos que surgem ou surgiriam da violação de tal compromisso, quando de fato o promissário viesse a sofrer danos com essa violação. Quer dizer, o problema jurídico a resolver é um problema de imputação da responsabilidade por danos – por danos verificados ou por danos iminentes que importa evitar.”[111]
Nesse ponto Menezes Cordeiro vai concordar com Carneiro da Frada, segundo ele:
“As consequências advenientes da proteção da confiança, podem, em teoria, consistir ou na preservação da posição nela alicerçada, ou num dever de indenizar o qual, por seu turno, ainda poderia atender ao interesse positivo, ou tão só, ao negativo. Em regra, o Direito português exprime a tutela da confiança através da manutenção das vantagens que assistiram ao confiante, caso a sua posição fosse real. Nesse sentido depõe a maioria das disposições específicas e referentes à boa-fé subjetiva, na parte em que esta se reporta à confiança: nos fatos jurídicos, os eventos que contrariem a confiança criada são-lhe inoponíveis e, nas situações reais, considera-se legitimado o aproveitamento do confiante – assim, na aquisição de frutos – ou, até, constituído o direito correspondente – na aquisição tabular ou a herdeiro aparente”. [112]
Com isso, deve-se ter em mente quenão se protege a confiança pela simples confiança. A norma não pode ser colocada em duas posições distintas na sistemática da responsabilidade civil. Não há como se ter, ao mesmo tempo, norma e dano.
Implica dizer que a confiança, não se trata de um bem, mas sim de um direito subjetivo, que, ao ser violado, é capaz de causar um dano.
Na jurisprudência pátria é possível encontrar decisões judiciais que concedem indenizações por danos morais em virtude da violação às legítimas expectativas.
"EMENTA: Mandado de Segurança. 2. Acórdão do Tribunal de Contas da União. Prestação de Contas da Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária - INFRAERO. Emprego Público. Regularização de admissões. 3. Contratações realizadas em conformidade com a legislação vigente à época. Admissões realizadas por processo seletivo sem concurso público, validadas por decisão administrativa e acórdão anterior do TCU. 4. Transcurso de mais de dez anos desde a concessão da liminar no mandado de segurança. 5. Obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 6. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público. 7. Concurso de circunstâncias específicas e excepcionais que revelam: a boa fé dos impetrantes; a realização de processo seletivo rigoroso; a observância do regulamento da Infraero, vigente à época da realização do processo seletivo; a existência de controvérsia, à época das contratações, quanto à exigência, nos termos do art. 37 da Constituição, de concurso público no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista. 8. Circunstâncias que, aliadas ao longo período de tempo transcorrido, afastam a alegada nulidade das contratações dos impetrantes. 9. Mandado de Segurança deferido" (RE22357 DF , Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 26/05/2004, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 05-11-2004 PP-00006 EMENT VOL-02171-01 PP-00043 LEXSTF v. 26, n. 312, 2005, p. 135-148 RTJ VOL 00192-02 PP-00620).
“EMENTA: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS - PRESTAÇÃO DE SERVIÇO EDUCACIONAL - CURSO DE TURISMO, GESTÃO EM HOTELARIA, TURISMO E LAZER - INFORMAÇÃO EQUIVOCADA - BACHARELADO EM ADMINISTRAÇÃO COM HABILITAÇÃO EM GESTÃO DE HOTELARIA, TURISMO E LAZER - DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO.Uma vez que a instituição de ensino veiculou informação inadequada a respeito do curso ofertado, gerando expectativa ao aluno de que receberia determinado título de bacharel, quando, na verdade, sua formação seria em outra área, deve responder pelos danos materiais e morais daí decorrentes.O valor da indenização por danos morais deve ser fixado com razoabilidade, de modo a servir como compensação à vítima e punição ao responsável, devendo-se evitar, por outro lado, que se converta em fonte de enriquecimento sem causa.” [113]
“AÇÃO INDENIZATÓRIA. INSTITUIÇÃO DE ENSINO. VIOLAÇÃO AO DEVER DE INFORMAR. RESPONSABILIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE AQUISIÇÃO DO TÍTULO DE BACHAREL PRETENDIDO. dano moral CONFIGURADO. BASE DE CÁLCULO. SALÁRIO MÍNIMO. IMPOSSIBILIDADE. FIXAÇÃO. CRITÉRIOS. TRANSGRESSÃO CONTRATUAL. MENSALIDADES DEVIDAS. PROVEITO OBTIDO COM O CURSO. RESTITUIÇÃO INTEGRAL. LOCUPLETAMENTO INDEVIDO. LUCROS CESSANTES E DANOS EMERGENTES. NÃO COMPROVAÇÃO. Ausente informação satisfatória acerca do curso ministrado e da formação acadêmica dele decorrente, inequívoca a responsabilidade da instituição de ensino. O simples fato de freqüentar curso de graduação na expectativa de recebimento de determinado título de bacharel sem, contudo, alcançar o objetivo almejado por negligência da instituição de ensino, que omitiu informações relevantes acerca do serviço prestado, torna visível o sofrimento e a angústia. A indenização por dano moral deve ser arbitrada em quantia certa, sem vinculação com o salário mínimo, como decorre do artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal. A fixação do valor indenizatório exige prudente arbítrio do juiz, que deve levar em consideração a gravidade da ofensa e as circunstâncias fáticas, o comportamento e a realidade econômica do ofensor, estipulando um valor suficiente para reparar o mal sofrido, cuidando para não propiciar enriquecimento sem causa, mas, por outro lado, devendo ser um valor capaz de dissuadir à prática de novas ofensas, tendo, assim, um caráter pedagógico. Auferindo o aluno proveito do curso ministrado pela universidade, é incabível a restituição integral das mensalidades pagas, sob pena de locupletamento indevido. Não demonstrados os prejuízos argüidos, incabível a procedência do pedido de lucros cessantes e danos emergentes.” [114]
O problema fundamental na chamada alteração jurisprudencial lesiva, reside na constatação de que, o abuso do direito na mudança de posicionamento dos tribunais, leva, antes de um amadurecimento social, um dano de proporções irreversíveis.
Dano esse que, vindo da função jurisdicional, é capaz de colocar em risco a própria estabilidade sistêmica, tamanha gravidade.
Sua relação com a proteção da confiança é íntima, haja vista que o desequilíbrio causado pela alternância dos julgamentos causa insegurança jurídicae incrementa o risco social.
No caso em tela, o dano de confiança chega a ser explícito.
A alternância na posição do Tribunal Superior Eleitoral, incentivada pela constante modificação legislativa, é capaz de causar graves prejuízos, antes mesmo de se mostrar um avanço positivo.
Nas palavras da ministra Nancy Andrighi (voto proferido em 1.3.2012, no julgamento da IN n.º 154.264 – TSE) a alteração do Tribunal Superior Eleitoral, só em 2012, atinge diretamente cerca de 21.000 (vinte e um mil) registro de desaprovação de contas, consignados no cadastro da Justiça Eleitoral.
Levando-se em consideração todo os preparativos de escolha de candidatos – das convenções partidárias, aos acordos das coligações, a alteração abrupta no posicionamento da jurisprudência eleitoral atinge, indiretamente, proporções gigantescas.
São acordos feitos e desfeitos, diretrizes e ações, elaboradas e desmanteladas em cada voto divergente do Tribunal Superior Eleitoral.
É notório que desde a vontade do próprio candidato, como a relação dele com os demais filiados ao partido político, leva em consideração sua capacidade eleitoral passiva, o pleno exercício dos direitos políticos, o que envolve a quitação eleitoral.
Quem era escolhido como líder, com candidato, passou a não ser, depois voltou a ser, depois deixou de sê-lo novamente.
Ponto relevante, é o fato de que, assim como na confiança, para se reconhecer a alteração da jurisprudência como prejudicial, deve-se levar em consideração o elemento tempo e as expectativas que foram criadas nos cidadãos.
Imagine, portanto, que pretenso candidato eleito em 2010, e no gozo demandato eletivo – com suas contas de campanha apresentadas e rejeitadas, mas, sem a anotação de ausência de quitação eleitoral – tentasse se eleger em outro cargo em 2012. Com a necessidade de aprovação das contas de campanha, seria manifestamente impossível, por ausência de condição de elegibilidade.
É de se causar espanto que um mesmo órgão, que havia atestado a legitimidade de um mandatário, em apenas dois anos, conclua completamente o oposto na análise de um mesmo caso concreto.
Frisa-se, em apenas dois anos uma mesma situação
Vale frisar que não é novo, na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o reconhecimento de que decisões judiciais, ainda que corretas e constitucionais, podem ser mais danosas do que benéficas.
Tanto é verdade quese adota no Brasil a possibilidade de modulação dos efeitos da ADIn. O que, inclusive, foi proposto pela Ministra Nancy Andighi, no caso das prestações de contas eleitorais.
É como afirma Luís Roberto Barroso:
“A proteção da confiança ou das expectativas legítimas, assim como a boa-fé, são princípios que se dirigem, primariamente, à Administração Pública e ao Poder Judiciário. Compete a tais órgãos aplicar o direito aos casos concretos e, nesse ofício, devem atuar com certa constância e previsibilidade, já que lhes cabe preservar a ordem jurídica existente e assegurar a isonomia perante a lei. Nem mesmo o legislador poderá ser totalmente indiferente a tais princípios constitucionais. Embora lhe caiba justamente inovar na ordem jurídica, modificando o direito aplicável, em determinadas circunstâncias, quando seja possível caracterizar a legítima expectativa do cidadão diante, e.g., da longa permanência no tempo de determinada disciplina jurídica, a proteção da confiança poderá gerar o direito dos particulares a um regime de transição razoável”. [115]
É o posicionamento do Supremo Tribunal Federal:
EMENTA: DECISÃO JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO. INTEGRAL OPONIBILIDADE DESSE ATO ESTATAL AO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. CONSEQÜENTE IMPOSSIBILIDADE DE DESCONSTITUIÇÃO, NA VIA ADMINISTRATIVA, DA AUTORIDADE DA COISA JULGADA. EXISTÊNCIA, AINDA, NO CASO, DE OUTRO FUNDAMENTO CONSTITUCIONALMENTE RELEVANTE: O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. A BOA-FÉ E A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA COMO PROJEÇÕES ESPECÍFICAS DO POSTULADO DA SEGURANÇA JURÍDICA. MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. SITUAÇÃO DE FATO – JÁ CONSOLIDADA NO PASSADO – QUE DEVE SER MANTIDA EM RESPEITO À BOA-FÉ E À CONFIANÇA DO ADMINISTRADO, INCLUSIVE DO SERVIDOR PÚBLICO. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM TAL CONTEXTO, DAS SITUAÇÕES CONSTITUÍDAS NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRECEDENTES. DELIBERAÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO QUE IMPLICA SUPRESSÃO DE PARCELA DOS PROVENTOS DO SERVIDOR PÚBLICO. CARÁTER ESSENCIALMENTE ALIMENTAR DO ESTIPÊNDIO FUNCIONAL. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
- O Tribunal de Contas da União não dispõe, constitucionalmente, de poder para rever decisão judicial transitada em julgado (RTJ 193/556-557) nem para determinar a suspensão de benefícios garantidos por sentença revestida da autoridade da coisa julgada (RTJ 194/594), ainda que o direito reconhecido pelo Poder Judiciário não tenha o beneplácito da jurisprudência prevalecente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, pois a “res judicata” em matéria civil só pode ser legitimamente desconstituída mediante ação rescisória. Precedentes.
- Os postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público (RTJ 191/922, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES), em ordem a viabilizar a incidência desses mesmos princípios sobre comportamentos de qualquer dos Poderes ou órgãos do Estado (os Tribunais de Contas, inclusive), para que se preservem, desse modo, situações administrativas já consolidadas no passado.
- A fluência de longo período de tempo – percepção, no caso, há mais de 16 (dezesseis) anos, de vantagem pecuniária garantida por decisão transitada em julgado – culmina por consolidar justas expectativas no espírito do administrado e, também, por incutir, nele, a confiança da plena regularidade dos atos estatais praticados, não se justificando – ante a aparência de direito que legitimamente resulta de tais circunstâncias – a ruptura abrupta da situação de estabilidade em que se mantinham, até então, as relações de direito público entre o agente estatal, de um lado, e o Poder Público, de outro. Doutrina. Precedentes.(MS 27.962 MC/DF. Relator: Ministro Celso de Mello. Julgado em 24 de abril de 2009).
Do mesmo modo é o entendimento do Superior Tribuna de Justiça:
“Na avaliação da nulidade do ato administrativo é necessário temperar a rigidez do princípio da legalidade, para que ele se coloque em harmonia com os princípios da estabilidade das relações jurídicas, da boa-fé e outros valores essenciais à perpetuação do Estado de Direito” ( STJ, DJU 16.set.1991, REsp 6518/RJ, Rel. Min. Gomes de Barros).
O raciocínio é simples: se é o Poder Judiciário é o responsável por dizer o direito, e estando mo Supremo Tribunal Federal em seu ápice, a modificação do entendimento dessa Corte modifica o próprio direito.
Levando-se em consideração que a Constituição preocupou-se em limitar a alteração legislativa, em face à segurança jurídica, pelas mesmas razões, a Suprema Corte brasileira deveria preocupar-se com cuidados semelhantes.[116]
Contudo, não se defendea imutabilidade e o engessamento jurisprudencial, pelo contrário, defende-se o constante e progressivo avanço das decisões, mas também, a adoção de critérios menos lesivos, nos casos de alterações abruptas. Isso nada mais é do que a aplicação da vedação do abuso do direito a um órgãoque integra o Poder Judiciário.
4.5A rotatividade na composição do TSE e a responsabilidade do órgão VS.responsabilidade pessoal.
A Justiça Eleitoral, dentre as justiças especializadas, possui uma particularidade curiosa, é um órgão que não detém uma composição de magistrados fixos. Em outras palavras, as cortes e juízes eleitorais são compostas por magistrados de outros órgãos, que exercem, momentaneamente, a judicatura eleitoral.
Na primeira instância a tarefa é declinada aos Juízes de Direito, integrantes da jurisdição comum estadual, cuja tarefa, cumulativa, é de administrar e exercer a jurisdição eleitoral.
Nas segundas e terceiras instâncias a composição é ainda mais curiosa.Segundo o art. 119 da Constituição da República de 1988:
O Tribunal Superior Eleitoral compor-se-á, no mínimo, de sete membros, escolhidos:
I - mediante eleição, pelo voto secreto:
a) três juízes dentre os Ministros do Supremo Tribunal Federal;
b) dois juízes dentre os Ministros do Superior Tribunal de Justiça;
II - por nomeação do Presidente da República, dois juízes dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Supremo Tribunal Federal.
Do mesmo modo, o art. 120 da CR/88, disciplina que:
Haverá um Tribunal Regional Eleitoral na Capital de cada Estado e no Distrito Federal.
§ 1º - Os Tribunais Regionais Eleitorais compor-se-ão:
I - mediante eleição, pelo voto secreto:
a) de dois juízes dentre os desembargadores do Tribunal de Justiça;
b) de dois juízes, dentre juízes de direito, escolhidos pelo Tribunal de Justiça;
II - de um juiz do Tribunal Regional Federal com sede na Capital do Estado ou no Distrito Federal, ou, não havendo, de juiz federal, escolhido, em qualquer caso, pelo Tribunal Regional Federal respectivo;
III - por nomeação, pelo Presidente da República, de dois juízes dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Tribunal de Justiça.
Ou seja, a jurisdição eleitoral é composta por um mix de juízes, de diferentes classes e diferentes experiências.
Pois bem, se por um lado a troca de experiências é salutar – sobretudo para manter o caráter apolítico do tribunal – por outro a inexperiência e a rotatividade acaba por prejudicar o avanço da prática dos tribunais eleitorais (que, diga-se de passagem, louvável é a atuação do corpo de servidores públicos da justiça eleitoral).
Determina o art. 121, § 2º, da CR/88 (norma essa que é repetida no art. 2º do Regimento Interno do TSE e art. 14 do Código Eleitoral), ainda, que “os juízes dos tribunais eleitorais, salvo motivo justificado, servirão por dois anos, no mínimo, e nunca por mais de dois biênios consecutivos, sendo os substitutos escolhidos na mesma ocasião e pelo mesmo processo, em número igual para cada categoria”.
Ou seja, dois biênios é o prazo máximo para um magistrado ocupar a cadeira eleitoral, se ambientar com a disciplina, desenvolver seus conceitos pessoais, e deixar a sua marca nos feitos eleitorais.
O Tribunal Superior Eleitoral, nesses últimos biênios, praticamente mudou todos os anos a sua composição, fazendo com que temas polêmicos, com julgamentos apertados, fossem revistos, alguns até alterados.
É em especial o caso das prestações de contas eleitorais.
Em 2011 o TSE, em votação apertada, mantinha o posicionamento de que bastava a apresentação das contas de campanha para determinado candidato estar quite com a Justiça Eleitoral.
Com a nova composição da Corte eleitoral, no dia 1º de março de 2011, por apenas um voto de diferença, o TSE reverteu completamente o posicionamento e passou a exigir a aprovação de contas de campanha.
Desde então os Tribunais Regionais Eleitorais adotaram o novo posicionamento, alguns determinando, inclusive, a anotação nos registros eleitorais do candidato “conta-suja”.
Após a reviravolta de posicionamento, uma enxurrada de pedidos de reconsideração foram protocolados no TSE, ao todo 14 (catorze) partidos (PMDB, PSDB, DEM, PTB, PR, PSB, PP, PSD, PRTB, PV, PCdoB, PRP e PPS), foram diretamente atingidos, visto que faltavam pouco mais de 1 (um) ano para o início das eleições.
O julgamento dos pedidos de reconsideração foi iniciado, tendo votado pela rejeição do pedido os ministros Marco Aurélio, Nancy Andrighi e Cármen Lúcia. Votaram a favor os Ministros Henrique Neves, Gilson Dipp e Arnaldo Versiani.
O julgamento foi interrompido por um pedido de vista do José Antonio Dias Toffoli e terminou novamente empatado. Após analisar detidamente o processo o Toffoli apresentou seu voto, a favor da revogação, e acabou por mudar novamente, em tão curto período de tempo, o entendimento da corte superior eleitoral brasileira.
Como visto, o fenômeno da rotatividade dos magistrados na Justiça Eleitoral relaciona-se diretamente com a alternância no entendimento dos conceitos jurídicos a serem empregados nas lides.
Dessa forma, a troca de magistrados eleitorais acaba guardando relação íntima com a proteção da confiança, na medida em que o comportamento dos tribunais é fonte legitimadora de expectativas.
E isso se dá por uma razão muito simples, seres distintos podem possuir pontos de vista diferentes de fatos semelhantes. É o que preconiza a Constituição a buscar garantir o livre convencimento motivado do juiz.
Mas, a indagação que fica é: essa rotatividade pessoal, dos membros da corte superior eleitoral, é argumento razoável para se aceitar a alteração jurisprudencial lesiva?
A resposta a essa provocação pode estar na noção de responsabilidade do órgão público perante a sociedade.
O Estado, enquanto pessoa jurídica, é responsável independentemente de culpa, pelos danos que seus agentes causarem. Muitas teorias tentaram justificar essa assertiva (Teoria do Mandato, Teoria do Quase Mandato, Teoria da Representação etc.), mas a que, majoritariamente, se adota hoje é a Teoria do Órgãoou Teoria da Imputação.
De origem germânica, a Teoria do Órgão, cunhada porOtto Gierke, defende que a relação jurídica entre o Estado e o agente decorre de uma imputação legal (e não de contrato ou de representação). A vontade do agente não se distingue da vontade do Estado, sendo uma coisa sóna relação com os indivíduos.
Pois bem, no trato das expectativas, não se parece plausível aceitar o argumento de que a modificação pessoal dos magistrados eleitorais, justificaria a alteração abrupta e descriteriosa de posicionamentos já consolidados anteriormente.
Isso porque os comportamentos externados pelos Tribunais Eleitorais não refletem a vontade individual de cada um de seus membros, mas sim o resultado de um debate coletivo de ideias.
O entendimento que prevalece não é o do relator, o do revisor ou dos vogais, mas sim do próprio tribunal.Em outros termos, o comportamento prévio que gera e legitima expectativas, decorre do próprio órgão, que deve ser responsável o suficiente por suas condutas, independentemente de quem componha suas cadeiras.