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Os direitos da personalidade sob a perspectiva constitucional

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27/05/2013 às 14:29

Resumo:


  • O paradigma liberal do Direito foi superado, ampliando a proteção jurídica para além dos bens patrimoniais e passando a tutelar direitos intrínsecos à pessoa humana, como a honra e a privacidade, com reconhecimento constitucional no Brasil.

  • Conflitos entre direitos da personalidade e outros direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, podem surgir, exigindo soluções que evitem o sacrifício total de um direito em detrimento de outro, com base em princípios como proporcionalidade e ponderação de interesses.

  • A proteção dos direitos da personalidade no ordenamento jurídico brasileiro reflete o princípio da dignidade da pessoa humana e demanda uma abordagem que concilie a liberdade de expressão com o respeito à intimidade, honra e imagem das pessoas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A violação à honra, intimidade e imagem de figuras notórias não encontra qualquer justificativa sob o ponto de vista do debate político, pluralismo cultural, para fins históricos, etc., se prestando apenas para fins lucrativos, alimentando a curiosidade pública (por vezes mórbida).

Resumo: A superação do paradigma liberal do Direito resultou na proteção pelo ordenamento jurídico a outros bens relacionados não apenas à tutela de cunho patrimonial. Passou o ordenamento jurídico a proteger direitos que não podem ser separados da pessoa humana. Tal proteção, inicialmente concebida sob a ótica das leis civis passou a apresentar status constitucional no ordenamento jurídico pátrio, nos termos do artigo 5º, X, da Constituição Federal de 1988. Ante sua nova posição hierárquica, podem surgir conflitos entre os direitos da personalidade e outros bens também objeto de proteção pela Carta Magna, notadamente no que tange à liberdade de expressão.

Palavras-chave: Personalidade. Honra. Conflitos.


1 INTRODUÇÃO

A proteção do Direito a determinados bens jurídicos se verifica após julgamento acerca daqueles que se apresentem objeto de maior relevância à pessoa humana, cuja tutela se apresenta imprescindível a resguardar a vida em sociedade, optando o legislador inicialmente, sob perspectiva eminentemente liberal, pelo resguardo a bens como a liberdade e patrimônio material.

O Direito representa elemento indispensável ao convívio em sociedade, já que, através das normas jurídicas, se compartilham direitos e deveres, bem como liberdades e responsabilidades. Sendo o homem um ser social, no exercício de seus direitos não poderá agir de forma abusiva, sob pena de grave ofensa às normas jurídicas. Assim é que, na lição de Arnaldo Vasconcelos, existir implica coexistir, ou seja, limitação recíproca de liberdade, apontando ainda que “a norma jurídica objetiva o propósito histórico de conciliar o individual com o social”.[1]

O Código Civil de 1916 não contemplou normas protetiva dos direitos de personalidade, conceituados pela doutrina clássica como aqueles relacionados à vida, à liberdade física ou intelectual, ao nome, ao corpo, à imagem e àquilo que o indivíduo crê ser sua honra, reputados como inalienáveis, intransmissíveis, imprescritíveis e irrenunciáveis.[2]

Ocorre que não obstante os códigos tenham se devotado inicialmente a proteger apenas direitos de caráter patrimonial, viu-se a necessidade de tutelar outros valores, também imprescindíveis à vida em sociedade, embora não pudessem ser objeto de mensuração econômica, e que sequer poderiam ser objeto de renúncia ou disponibilidade por seus titulares, como vida e honra.

Assim é que o Código Civil atualmente em vigor já dedicou um capítulo específico aos direitos da personalidade, reconhecendo serem os mesmos intransmissíveis e irrenunciáveis, trazendo proteção a bens jurídicos de altíssima importância a seus titulares, como o nome (artigo 17), honra, boa fama e respeitabilidade (artigo 20), bem como à vida privada (artigo 21).

A tutela acima referida surge como decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana, reconhecido como fundamento da República Federativa do Brasil, nos moldes do artigo 1º, III, da Carta Magna de 1988, ao qual podem ser reconduzidos todos os direitos fundamentais e que representa norte hermenêutico para a interpretação de conflitos que possam surgir entre os vários direitos resguardados pela norma em tela.

O reconhecimento da supremacia, efetividade e força normativa do texto constitucional produz inegáveis reflexos em relação ao Direito Privado, que passa por um fenômeno de uma cada vez mais intensa publicização, com a progressiva transformação de princípios como o da autonomia contratual. De fato, deixa de ser suprema a legislação civil, passando a apresentar status hierarquicamente superior a norma constitucional e os bens que tutela.

O status normativo dos direitos de personalidade pode ser extraído da evidência de que os mesmos representam reflexo nos direitos humanos, ou fundamentais, porém no campo das relações entre particulares, e não do cidadão em relação ao Estado, como aponta, entre outros, Gustavo Tepedino, contemplando, além do direito à integridade física, o direito à integridade moral, do qual decorrem a proteção à honra, moral, dignidade, imagem, etc.[3]

A supremacia do texto constitucional, com o reconhecimento de sua força normativa, decorre da constatação da necessidade de um cada vez mais intenso intervencionismo estatal, associado ao surgimento dos chamados direitos de 3ª geração, caracterizados pela nota da solidariedade social, o que provocará forte impacto na forma de compreensão e no reconhecimento dos direitos de 1ª e 2ª gerações, especialmente no que se refere aos direitos de liberdade, que formaram a base da legislação civil. A respeito, colhe-se da doutrina:

Temos, então, o fenômeno da constitucionalização de certos princípios e institutos fundamentais do direito privado, como é o caso da família, da propriedade, da atividade econômica – ou seja, passam a estar disciplinados na Constituição os princípios fundantes dos três institutos básicos do direito privado.[4]

Uma das principais projeções acerca dos reflexos da constitucionalização do direito privado se refere aos chamados direitos da personalidade. De fato, não se poderia deixar de reconhecer, face às profundas implicações da cada vez mais intensa implicação do Direito Público sobre o Direito Privado, que os direitos de personalidade, intimamente ligados ao próprio homem, poderiam deixar de ser afetados, por não mais ser visto o homem como um mero titular de propriedades.

Os direitos da personalidade podem desse modo ser reconduzidos de sua sede civil, com fundamento no artigo 11 e seguintes do Código Civil, para as normas mais gerais do artigo 5º, X, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

No dizer de Daniel Sarmento, “a personalidade mais do que um direito é um valor – o mais importante do ordenamento, diga-se de passagem -, que se irradia e penetra por todos os campos do Direito, público ou privado[5], que se poderia extrair exatamente do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, do qual emana a proteção a variados bens jurídicos.

Tem-se assim uma especial proteção aos bens jurídicos em referência, notadamente considerando a superioridade hierárquica das normas constitucionais, que se impõem sobre as normas que lhe são inferiores no ordenamento jurídico. Considerando ainda a variedade de bens também reconhecidos como fundamentais pela Carta Magna, podem vir a ocorrer conflitos entre os direitos da personalidade e outros igualmente objeto de tutela, os quais deverão ser resolvidos de forma a evitar o total sacrifício de um dos direitos. Tais conflitos deverão ser resolvidos no plano constitucional, com o uso das técnicas que têm sido consagradas pela doutrina e jurisprudência constitucionais, notadamente os princípios da proporcionalidade e ponderação de interesses.

 Uma das hipóteses atuais de conflito entre um direito de personalidade e outro igualmente com sede constitucional é aquele em que se verifica caso se defrontem o direito à honra, imagem e privacidade, de um lado, com o direito à liberdade de expressão, de outro, nos moldes do artigo 20 do Código Civil, que por sua vez encontra fundamento no artigo 5º, X, da Constituição Federal de 1988, em oposição ao artigo 5º, XII, da norma em tela, como se verá a seguir.


2 DESENVOLVIMENTO

Os direitos à honra, imagem e privacidade, que podem ser remetido aos direitos da personalidade em geral, representam inegáveis elementos de proteção ao ser humano em face de ilícitos praticados pelos demais. Não se resguarda ao homem, nesse sentido, apenas sua integridade física e seu acervo patrimonial, mas sim lhe é reconhecida a existência de um conjunto de direitos de que dispõe, ainda que deixem de se revestir de conteúdo econômico.

A incidência dos direitos fundamentais também nas relações entre particulares, não mais sendo o Estado visto meramente como o único ente ao qual se poderiam opor os mesmos, caracterizando-se a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais, faz com que também os particulares tenham o dever de respeitar a honra, imagem e privacidade dos demais cidadãos, o que por vezes pode levar ao surgimento de uma série de conflitos.

A honra tem sido considerada como sentimento pessoal, interior e exterior, de que se reveste o sujeito, que lhe associa a valores como ética, honestidade e virtude. Por privacidade se pode considerar o resguardo da pessoa em sua individualidade, sendo reconhecida a proteção de sua intimidade à salvo de devassas indevidas. A imagem pode ser conceituada como o conceito da pessoa em sociedade, podendo o ordenamento proteger tais direitos em face de violações praticadas por terceiros. Protegem os mesmos não a integridade física, mas sim a integridade moral do indivíduo. Sobre o tema, colhe-se da doutrina:

A ideia básica que orienta a positivação desses valores é a de que nem o Estado nem a sociedade de modo geral devem se intrometer, indevidamente, na vida pessoal dos indivíduos. Inserem-se, nesse contexto, inúmeras prerrogativas de caráter individual-subjetivo, como o direito de buscar a paz de espírito e a tranquilidade, o direito de ser deixado só (direito ao isolamento), o direito de não ser bisbilhotado, de não ter a vida íntima e familiar devassada, de não ter detalhes pessoais divulgados, nem de ter a imagem e o nome expostos contra a vontade da pessoa.[6]

Uma das normas que ofereceram concretude ao comando acima referido se encontra no artigo 20 do Código Civil, o qual prescreve que “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.

Também no mesmo sentido, o artigo 21 da norma em tela estabelece que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. É sabido contudo que, nos tempos atuais, há uma cada vez mais forte invasão na esfera de privacidade do indivíduo, praticada não pelo Estado, mas pela mídia (revistas de “celebridades”, programas de auditório, etc.).

As normas acima devem ser interpretadas, contudo, não segundo a lógica civilista, mas sim como parte de um ordenamento que tem na norma constitucional seu topo. No dizer de Daniel Sarmento, “trata-se, antes, da imposição de uma releitura das normas e institutos do Direito Privado, filtrados a partir da axiologia constitucional, diante do reconhecimento de que a Constituição não representa apenas a norma básica do Estado, tendo se convertido, nas palavras de Konrad Hesse, na 'ordem jurídico-fundamental da comunidade'”.[7]

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Cabe destacar, a respeito, prevalecer na jurisprudência entendimento que diferencia a extensão da privacidade em razão da projeção social do titular do direito. Assim, pessoas como agentes políticos, artistas de renome, entre outras, estarão naturalmente mais expostas à curiosidade pública, sendo possível a divulgação de sua imagens, palavras, etc., independentemente de expressa autorização, nos mais diversos veículos de imprensa.

O contrário ocorre, contudo, em se tratando dos cidadãos comuns. Relativamente aos mesmos, ausente qualquer predisposição a maior exposição midiática, deverá se proteger em nível máximo o resguardo de suas privacidades, em espaços públicos ou reservados. Não sendo sua condição social fator determinante a maior exposição perante os demais cidadãos, gozam de máxima tutela ao referido direito da personalidade.

Pode vir a se verificar, contudo, o que é próprio dos conflitos entre bens protegidos em normas de cunho eminentemente principiológico, tratando-se das chamadas normas-princípio, aplicáveis segundo mandamentos de otimização, e não na base do tudo-ou-nada, próprio das normas-regra, a presença de situações de penumbra, em decorrência do choque entre os direitos de personalidade de pessoas com exposição pública e direitos como a liberdade de expressão.

No entender da doutrina, “o sistema brasileiro não assegura o abuso no direito à informação se o mesmo for agressivo, eis que não se trata de um direito absoluto. Ao contrário, encontra limites nos direitos de personalidade quando ferem o direito à honra, à intimidade, à vida privada ou à imagem de outrem, ensejando uma colisão de princípios”.[8]

É o que ocorre, por exemplo, com a exposição em situações cotidianas, como compras em supermercados, passeios com familiares, de pessoas de grande projeção pública. Nesse caso, deixariam as mesmas de titularizar o direito ao resguardo de suas imagens e privacidade? Posta a questão sob outra perspectiva, a vedação à divulgação das referidas imagens representaria cerceamento ao princípio da liberdade de expressão?

Veja-se não estarmos a tratar da exposição de pessoas públicas no que se relaciona diretamente à área temática em que se projetam ao público. Assim, será legítima a divulgação da imagem de um ator ou cantor, no que se refere à crítica de uma peça ou show, em festas de divulgação, etc., da mesma forma que um político, em comícios, reuniões com outros parlamentares e pronunciamentos. No caso, a utilização da imagem se relaciona à própria notoriedade inerente às funções.

Oferecendo solução interessante, o Código Civil Português, em seu artigo 79°, 2, estabelece que “não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse publico ou que hajam decorrido publicamente”.

O tema tem suscitado intensas polêmicas, notadamente considerando a proliferação de revistas, impressas e eletrônicas, que, alimentando a curiosidade pública, formam um segmento midiático cada vez mais forte. Trata-se de autêntico choque entre os direitos de personalidade, de um lado, e o direito à liberdade de imprensa, como reflexo da liberdade de expressão, de outro, o qual, segundo as técnicas de resolução de conflitos entre bens constitucionais, deverá, sempre que possível, ser resolvido de forma a conciliar os bens em choque, sem que se faça necessário o total sacrifício de um em detrimento do outro.

Uma pessoa de grande projeção pública, embora seja naturalmente exposta em razão de suas atividades, não deixará de ser titular de direito à privacidade e resguardo de sua imagem, caso a mesma seja obtida em contexto não relacionado às suas funções. Caso se verifique a captação de imagens e divulgação sem autorização, deverá ser assegurada indenização compatível, a qual deverá levar em conta a extensão do dano e o proveito patrimonial obtido pelo agente.

É o que tem se verificado, recentemente, com membros da família real britânica, personalidades que, embora sejam naturalmente mais expostas à curiosidade pública, não deixam de titularizar uma série de direitos que inclusive se apresentam irrenunciáveis, e cuja violação os atinge ainda que não necessariamente provoquem repercussão negativa. Nada justifica, pois, a obtenção de fotografias em momentos de lazer e férias, com divulgação das mesmas sem autorização, como tem sido amplamente noticiado pelos vários meios de comunicação.

No exemplo acima, destaca-se que a notícia sobre a divulgação das fotos se apresenta revestida de interesse jornalístico, ao passo que a própria divulgação, que se propõe a meramente devassar a intimidade e a vida privada, para fins comerciais, não ostenta tal condição, pelo que pode e deve ser duramente reprimida, inclusive, se for o caso, por instrumentos criminais.

A resposta a tal indagação passa ainda por necessário debate acerca da liberdade de expressão, gênero ao qual se pode vincular a liberdade de imprensa. De fato, qual o papel de tal direito, também alçado ao status de fundamental na Carta Magna de 1988, numa sociedade em que proliferam novas mídias, facilmente acessíveis a todos com a popularização da internet e redes sociais?

O estudo acerca do tema evidencia justificar-se sua tutela como elemento imprescindível à formação do debate político e ao pluralismo cultural. De fato, reputa-se indispensável garantir ao homem a livre manifestação de suas ideias, podendo logicamente fazê-lo de forma a propagá-las pelos mais diversos meios, seja para criticar os governantes, julgar atos de seus concidadãos, criticar atos que considere reprováveis, etc. Nesse sentido, leciona a doutrina:

O ser humano se forma no contato com o seu semelhante, mostrando-se a liberdade de se comunicar como condição relevante para a própria higidez psicossocial da pessoa. O direito de se comunicar livremente conecta-se com a característica da sociabilidade, essencial ao ser humano.

A garantia da liberdade de expressão tutela, ao menos enquanto não houver colisão com outros direitos fundamentais e com valores constitucionalmente estabelecidos, toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não – até porque 'diferenciar entre opiniões valiosas ou sem valor é uma contradição num Estado baseado na concepção de uma democracia livre e pluralista'.[9]

Não contribui de forma alguma a tais altos propósitos a violação desmedida aos direitos de personalidade, notadamente honra, intimidade e imagem, de figuras notórias, o que não encontra qualquer justificativa sob o ponto de vista do debate político, pluralismo cultural, para fins históricos, etc., se prestando apenas para fins lucrativos, alimentando a por vezes mórbida curiosidade pública.

No caso brasileiro, embora não promovidas pelo Estado, têm se intensificado restrições ao discurso, inclusive ao chamado discurso do ódio, que se apresentariam inadmissíveis à luz da experiência liberal norte-americana, a qual, mesmo em se tratando do discurso do ódio, somente o restringe caso se identifique, em razão das palavras proferidas, o que se chamada de “perigo real e imediato”.

A Corte Europeia de Direitos Humanos, embora apresente em seu catálogo uma série de decisões que buscam preservar o direito fundamental à liberdade de expressão, não tem se mantido inerte no resguardo aos direitos da personalidade, podendo ser citado, entre outros, o caso Von Hannover vs. Germany (59320/00, j. em 24.06.2004)[10], através do qual se reconheceu o direito a indenização pecuniária decorrente da violação à privacidade e imagem da Princesa de Mônaco Caroline Von Hannover.

Questionava a autora a publicação de uma série de fotografias, nos anos 90, em revistas de circulação na Alemanha (Bunte, Fereizeit Revue e Neue Post) que a apresentavam em situações absolutamente cotidianas, como em jantar num restaurante, em local reservado, na companhia do ator Vincent Lindon, a pretexto de noticiar romance entre ambos; com seus filhos, na praia e praticando esportes; fazendo compras em um supermercado, acompanhada de seu segurança; esquiando, e em clube no Principado de Mônaco.

O relato fático evidencia que as fotografias em nada se relacionavam a eventuais atividades de cunho político-administrativo ou culturais, tendo chamado a atenção da imprensa, inclusive por se tratar de situações corriqueiras, unicamente em razão da projeção pública da pessoa envolvida. Foi reconhecido pela Corte Europeia o direito a indenização, cujo valor foi posteriormente acordado entre as partes, devendo ser os seguintes trechos extraídos da decisão, em tradução livre:

A Corte considerou que o fator decisivo no balanceamento da proteção da vida privada em face da liberdade de expressão deveria residir na contribuição que as fotografias e matérias publicadas promovem ao debate de interesse geral. No caso analisado, as fotografias mostram Caroline Von Hannover em cenas de sua vida diária, e assim participando de atividades de natureza puramente privada. A Corte levou em consideração as circunstâncias em que as fotografias foram obtidas: sem o conhecimento ou ciência da reclamante e, em alguns casos, em segredo. […] Apesar da liberdade de expressão se estender à publicação de fotografias, essa é uma área na qual a proteção dos direitos e honra alheios assumem importância peculiar. O presente caso não se refere à disseminação de ideias, mas de imagens veiculando informações muito pessoas ou íntimas sobre um indivíduo. Além disso, as fotos veiculadas em tabloides são frequentemente obtidas em um clima de contínuo assédio o que leva a um forte senso de invasão na vida privada ou mesmo de perseguição.

A veiculação de notícias não será ilícita, pois, caso se relacione a fatos verdadeiros, acerca dos quais exista presunção de veracidade, como se verifica com a notícia de que determinada pessoa é suspeito do cometimento de um ilícito, com base em informações policiais, denúncias, etc., ou caso a informação noticiada se apresente de interesse público, como já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, entre outros, no julgamento do REsp 1263973/DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe de 29.03.2012.

Tema que também tem suscitado polêmicas sobre os direitos da personalidade, também relativamente a confronto com o direito à liberdade de expressão, se refere à exigência estabelecida pelo Código Civil, nos termos dos seus artigos 20 e 21, nos termos das quais a publicação de biografias exigiria o consentimento do biografado ou de seu cônjuge, ascendentes ou descendentes, caso falecido.

Forma-se um autêntico embate entre os direitos de personalidade, notadamente a preservação da memória, que se associa a direitos como honra, privacidade e imagem, decorrentes do já mencionado princípio da dignidade da pessoa humana, e o exercício da liberdade de expressão no exercício da atividade informativa, imbuída de relevante interesse histórico, e também um reflexo dos direitos da personalidade, notadamente considerando a publicação de biografias de grandes personalidades, que em geral encontram público significativo.

Como já se expôs acima, o tema não se põe relativamente a conflitos envolvendo cidadãos comuns. Embora não se possa falar que os mesmos sejam titulares de direitos da personalidade em grau mais intenso, a própria condição de menor notoriedade em que vivem lhes resguarda uma maior privacidade, pondo à salvo do escrutínio midiático sua vida privada, ao contrário do que se verifica em relação às chamadas pessoas públicas.

Ocorre que o fato de não serem as últimas cidadãs naturalmente mais sujeitas à observação por terceiros não lhes retira o direito à tutela de seus valores. Assim, publicações a seu respeito que se apresentem ofensivas à honra, através da veiculação, exempli gratia, de fatos ofensivos, mentirosos, obtenção de provas ilícitas, etc., ensejará o direito à propositura de ações penais e cíveis, independentemente de qualquer prejuízo de cunho patrimonial, o que é próprio do reconhecimento em sede normativa dos direitos da personalidade.

No caso brasileiro, vetou-se a edição ou comercialização de biografias referentes a diversas personalidades, como os cantores Roberto Carlos (“Roberto Carlos em Detalhes”) e Noel Rosa (“Noel Rosa – Uma Biografia”), além do jogador de futebol Garrincha (“Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha”), em todos os casos tendo sido apontada violação à privacidade dos biografados. Não se apontou, para fins de proibição, a existência de declarações inverídicas, sendo as obras fruto de intensa pesquisa junto às fontes, como documentos, testemunhos, artigos jornalísticos, entre outras.

Tem sido alegado que a exigência de autorização do biografado ou de seus familiares  equivaleria à censura prévia, vedada pelo artigo 5°, IX, da Constituição Federal de 1988 (“é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”), a qual, ao contrário do que se verificava durante o período ditatorial, seria exercida não pelo Estado, mas pelos particulares retratados.

Não se pode olvidar, a respeito, associar-se a noção de privacidade, inclusive em seus antecedentes históricos, à ideia do “right to be left alone”, expressão cunhada em conhecido ensaio elaborado por Samuel Warren e Louis D. Brandeis. Transcrevendo a respeito voto de Brandeis, com base em seu ensaio, na condição de membro da Suprema Corte dos Estados Unidos, Anthony Lewis destaca:

'Os autores de nossa Constituição […] reconheciam a importância da natureza espiritual do homem, de seus sentimentos e de seu intelecto. Sabiam que apenas uma parte da dor, do prazer e das satisfações da vida é encontrada em coisas materiais. Eles buscaram proteger os americanos em suas crenças, pensamentos, emoções e sensações. E concederam, contra o governo, o direito de ser deixado em paz – o mais abrangente dos direitos e o direito mais valorizado pelos homens civilizados'.[11]

Em relação às personagens públicas, notórias, seria muito difícil, do ponto de vista prático e intelectual, separar para fins biográficos aquilo que se reveste de interesse público daquilo que representa mero interesse privado, se relacionado única e exclusivamente à intimidade de suas vidas. Cuida-se assim de fronteiras de delimitação bastante imprecisa, até porque, por vezes, eventos que poderiam ser considerados íntimos poderão apresentar consequências naquilo que se projeta ao público.

Outra questão de difícil contorno se dará do ponto de vista prático já que as chamadas personalidades públicas necessariamente terão mantido vínculos políticos, pessoais, econômicos, etc., com terceiros, que não necessariamente ostentarão o mesmo status, e que poderão eventualmente questionar a forma como se apresentam expostas na narrativa biográfica da vida de terceira pessoa.

O prévio exame da obra pode ainda se prestar para que se promova verdadeira autorização seletiva, obstaculizando o biografado ou seus familiares trechos da obra que reputem como prejudiciais à imagem e ao conceito adquirido na sociedade, o que, por certo, prejudicaria o valor e a precisão históricas da obra, tornando-a por consequência revestida de menor interesse ao público, afetando seu êxito comercial.

Deixa de se pôr em dúvida, ademais, qualquer restrição à ideia de que, identificada mentira e ofensas no texto biográfico, restará ao prejudicado o direito à reparação do dano experimentado, além da lógica possibilidade de responsabilização criminal do autor do ilícito, através dos chamados crimes contra a honra, nas modalidades de calúnia, difamação e injúria. A controvérsia que se coloca é se tal controle poderá ser prévio.

A restrição à publicação de biografias não representa tema novo, embora no Brasil persista tormentoso. É bastante conhecido o célebre caso Mephisto, de Klaus Mann, biografia reputada injuriosa do ator Gustaf Gründgen, famoso na Alemanha por sua caracterização como Mephistopheles na obra de Goethe, Fausto, cuja circulação veio a ser proibida pelo Tribunal Constitucional daquele país, sob o fundamento de que veicularia uma série de fatos inverídicos e injuriosos ao biografado.

Embora inicialmente se tenha decidido que a obra poderia ser comercializada, desde que acompanhada de advertência no sentido de que partes da mesma representariam mero exercício de licença poética pelo autor, decidiu-se posteriormente pela impossibilidade de separar o público aquilo que seria real do exercício da poesia. A respeito, extrai-se da doutrina:

A editora recorreu ao Tribunal Constitucional, que logo reconheceu que a descrição da realidade 'integra o âmbito de proteção do direito de liberdade artística' (tutela da arte engajada), mas este direito não fora assegurado de forma ilimitada. A garantia dessa liberdade 'não poderia desconsiderar a concepção humana que balizou a Lei Fundamental,  isto é, a ideia do homem como personalidade responsável pelo seu próprio destino, que se desenvolve dentro da comunidade social'. Em suma, a liberdade artística subordinava-se ao princípio da dignidade humana.[12]

A restrição à comercialização da obra, como se vê, foi motivada ante a suposta veiculação de fatos não correspondentes à realidade, que não encontrariam amparo na biografia do falecido ator. Trata-se ademais, como se percebe, de restrição a posteriori, e não de censura prévia, que pode se configurar caso subsista a atual interpretação às normas sobre o direito da personalidade, em se tratando de biografias.

De forma a buscar regulamentar o tema, tramita perante o Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 393/2011, o qual, em seu artigo 2°, dando nova redação ao artigo 20 do Código Civil, estabelece que “a mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”.

Tem curso perante o Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4815, proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL), em face do disposto nos artigos 20 e 21 do Código Civil, pendente de decisão sobre o pedido liminar formulado, em que se busca a declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, das normas em tela, buscando o afastamento da necessidade de consentimento do biografado ou de seus familiares para a publicação de biografias.

Na referida ação, sustenta-se que as normas em tela não se coadunariam com a sistemática constitucional da liberdade de expressão e do direito à informação, ensejando a formação de verdadeira censura privada aos autores, historiadores e artistas em geral, ao mesmo tempo em que cerceariam o direito difuso da cidadania de acesso à informação, em que pese o propósito do legislador de proteger a vida privada e a intimidade das pessoas. Colhe-se da respectiva inicial, disponível no site do Supremo Tribunal Federal:

As figuras públicas, ao adquirirem posição de viabilidade social, têm inseridas as suas vidas pessoais e o controle de seus dados pessoais no curso da historiografia social, expondo-se ao relato histórico e a biografias, literárias, dramatúrgicas e audiovisuais. Quanto a essas, por evidente, não há qualquer dúvida quanto à desnecessidade de seu consentimento para a elaboração de obras biográficas a seu respeito.

Também nesse caso, ainda que se dispensasse o consentimento prévio, não se poderia deixar de reconhecer o direito a indenização aos prejudicados no caso de veiculação de fatos ofensivos à honra e inverídicos, já que a liberdade de expressão se destina à tutela da verdade (a respeito, contudo, veja-se trabalhar a imprensa com a verdade imaginada, e não necessariamente com a real).

Um aspecto relevante destacado nas informações prestadas pela Mesa do Congresso é que, com base no Código Civil, busca-se evitar a mercantilização da intimidade, privacidade, honra e imagem das pessoas, em detrimento da dignidade humana, passando como “imunidade à publicação livre e desenfreada de biografias não autorizadas”,[13] ainda que ofensivas aos princípios em tela.

Da manifestação do Advogado-Geral da União, por sua vez, em defesa do ato impugnado, extrai-se que, diante das dificuldades de separar a verdade da mentira, “o consentimento para a divulgação de biografias faz-se ainda mais necessário. Será sempre a biografada a pessoa mais indicada e qualificada para provar que a informação é enganosa e que é abusiva a qualificação de detalhes íntimos de sua vida pessoal como fatos de interesse social”.[14]

Reputamos ser legítima a procedência da ação em tela. De fato, embora o Código Civil estabeleça parâmetros para o julgamento acerca do cabimento de restrições à atividade de produção biográfica, será razoável sua livre publicação, independentemente de prévia análise, em se tratando de personalidades públicas, as quais poderão, posteriormente, em face de conteúdos inverídicos e ofensivos, promover a responsabilização do autor ou, caso se apresente como o único meio possível à reparação do dano, obter ordem judicial para que se proíba a divulgação e comercialização da obra.

Trata-se de solução que representa a conciliação de interesses possível no caso em exame, de forma a evitar o total sacrifício de um dos bens constitucionalmente protegidos, a liberdade de expressão, em detrimento dos direitos da personalidade, ao mesmo tempo em que possibilita ao titular dos mesmos, em caso de violação, a reparação dos danos imateriais causados.

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Sobre o autor
Rômulo Moreira Conrado

Procurador da República. Mestrando em Direito. Especialista em Direito Constitucional e em Direito e Processo Tributários.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CONRADO, Rômulo Moreira. Os direitos da personalidade sob a perspectiva constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3617, 27 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24537. Acesso em: 23 dez. 2024.

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