2. OS CONFLITOS DE MASSA E A ADEQUADA SOLUÇÃO JURISDICIONAL
A civilização ocidental experimentou enorme transformação social com o advento da revolução industrial interferindo sobremaneira nas relações intersubjetivas e também exigindo maior organização social com o surgimento de entidades intermediárias, como os sindicatos e organizações de classe para melhor canalizar os interesses coletivos diante do Estado.
Do mesmo modo, o desenvolvimento tecnológico possibilitou significativa interferência nos recursos naturais chamando a atenção para os riscos oferecidos aos bens comuns, tais como água, ar, florestas, mares, rios, enfim, o que se denominou de meio ambiente.
A exploração desses recursos tem grandes conseqüências ambientais com potencial de afetar os elementos indispensáveis à própria vida, exigindo da ciência em geral e especialmente do Direito a atenção necessária à resolução dos naturais conflitos que podem atingir toda a humanidade.
A sociedade de massa, de outra parte, também refletiu no convívio social, assumindo cada vez mais importância as estruturas coletivas simbolizadas por grandes cidades, edifícios, condomínios, produtos em série, serviços essenciais massificados, como energia elétrica, consumo de água, telecomunicações, transportes, dando origem no direito material a figura dos contratos de adesão, dos contratos coletivos de trabalho e outros instrumentos adequados às superestruturas exigidas para suportar a crescente demanda no fornecimento desses bens ditos essenciais.
As mudanças são imensas e atingiram todos os compartimentos da sociedade, desde o direito individual (direitos de personalidade), passando pelas transformações na família (reconhecimento da união fora do casamento, proibição de discriminação dos filhos adulterinos, proteção dos relacionamentos homoafetivos, etc), chegando às exigências de tutela de bens de natureza difusa, como o meio ambiente saudável, e os direitos coletivos dos consumidores, apenas para citar alguns.
Sobre essa transformação VICENTE DE PAULA MACIEL JUNIOR anotou:
A nova dimensão trazida com o acatamento dos direitos coletivos e difusos modificou a antiga matriz do individualismo e da autonomia da vontade privada, que via no individuo o centro de todos os direitos. Ao lado dos direitos individuais, foram reconhecidos neste século direitos que sempre existiram, mas que não tinham espaço e eram abortados do ordenamento jurídico (MACIEL JÚNIOR, 1996, P. 35). Esses “novos” direitos são hauridos em uma nova atmosfera, coletivizada, ou muitas vezes fragmentada, difusa, porque numa sociedade de massa muitas vezes não se consegue identificar claramente todos os interessados atingidos por determinado fato. Somente foi possível o acatamento desses direitos porque houve uma disseminação dos Estados Democráticos de Direito, que passaram a permitir e proteger a atuação das associações, ao invés de contê-las como se fossem perigosos inimigos eu exerciam atividades paralelas e concorrentes às do Estado (MACIEL JUNIOR, 1996, p. 34-36)[11].
Enfim, chega-se ao século XXI com uma clara constatação, a de que as estruturas sociais concebidas na antiguidade parecem não conseguir atender a uma nova sociedade caracterizada pelo coletivo, pela massa, pela quase completa ausência de individualidade.
A propósito desta constatação, emblemático é o vaticínio de CELSO BASTOS quanto ao forte influxo que a ciência jurídica, em especial a processual, sofreria em face dessas transformações ao afirmar que “não mais assistiremos aos clássicos dualismos autor versus réu ou individuo versus autoridade pública, mas sim ao alinhamento no processo de várias partes coletivas, numa multiplicidade de posições concorrentes e conflitantes”.[12]
Digno de nota é a transformação provocada pela inadequação dos institutos jurídicos concebidos sobre o sistema econômico liberal para a proteção de direitos metaindividuais e que fora percebida pela arguta observação de BARBOSA MOREIRA:
A filosofia do egoísmo, que impregnou a atmosfera cultural dos últimos tempos, não concebe que alguém se possa deixar mover por outra força que o interesse pessoal. Nem faltou quem ousasse enxergar aí a regra de ouro: a melhor maneira de colaborar na promoção do bem comum consistiria, para cada individuo, em cuidar exclusivamente de seus próprios interesses. O compreensível entusiasmo com que se acolheu há dois séculos e se cultua até hoje, em determinados círculos, essa lição de Adam Smith, explica o malogro da sociedade moderna em preservar de modo satisfatório bens e valores que, por não pertencerem individualmente a quem quer que seja, nem sempre se vêem bem representados e ponderados ao longo do processo decisório político-administrativo, em geral mais sensível à influência de outros fatores.[13]
Veja-se que ao longo do tempo tais transformações foram promovendo uma demanda social que exerceu pressão suficiente à criação de normas capazes de assegurar proteção a nova classe de direitos. Por isso, o legislador de 1988 vislumbrou a necessidade de positivação a nível constitucional de inúmeros direitos metaindividuais que careciam de proteção jurisdicional em face dos riscos que os bens jurídicos assim tutelados passaram a ser expostos.
Nesse contexto podem ser compreendidas as garantias ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à proteção do consumidor, da criança e do adolescente, do idoso, da família, da ordem econômica, da probidade administrativa, da seguridade social, bens e direitos que podem ser considerados coletivos ou difusos.
São bens e direitos que pertencem ao individuo e à coletividade ao mesmo tempo e que carecem de instrumentos adequados à eficaz proteção jurisdicional de forma coletiva, ou porque são direitos metaindividuais, ou porque, a tutela coletiva em juízo é mais apropriada e adequada à proteção exigida.
Nota-se que determinados direitos difusos e coletivos têm natureza infungível e por essa razão não comportam tutela reparadora, antes, porém, exigem atuação preventiva a fim de que não sejam lesionados. É o que ocorre, por exemplo, com o meio ambiente. Não haverá como substituir-se por indenização pecuniária, a perda de uma fonte de água potável por contaminação química, ou a extinção de certa espécie florestal ou animal em decorrência de exploração desordenada em desacordo com a legislação aplicável.
Neste sentido convém ressaltar as características peculiares dos direitos difusos e coletivos, referindo-se a indeterminação dos sujeitos, a indivisibilidade do objeto, a intensa litigiosidade interna e a permanente mutação no espaço e no tempo, verificáveis em todas as situações em que se demanda a proteção a esses bens coletivos.
Disso resulta que o sistema processual voltado para a reparação de lesão assim como concebida nos moldes do liberalismo é ineficaz para a proteção do bem jurídico difuso e coletivo a ser tutelado, servindo à espécie, na maioria dos casos, apenas, a tutela preventiva estabelecida pelo legislador constitucional no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal.[14]
Mas não basta somente o texto legal para a tutela dos bens em questão. Exige-se mais. Ao Poder Judiciário incumbe encontrar os meios de coerção capazes de evitar a lesão ou fazer cessar a prática delituosa que coloca em risco o direito difuso ou coletivo a ser protegido, o que demanda ultrapassar os modelos tradicionais de tutela jurisdicional, servindo a título de exemplo, o que dispõe o artigo 461 do Código de Processo Civil.
Na observação de RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO encontra-se solene advertência a esse respeito, quando anotou:
Dessa circunstância sobreleva o novo papel do juiz nas ações que envolvem interesses metaindividuais. Deverá ele ser criativo, ter conhecimentos parajuridicos, procurar antes a justiça e a equidade na solução do caso concreto do que a fria aplicação dos textos. Até porque, em muitos casos, não terá ele um texto perfeitamente aplicável à espécie, ou então o texto deixará a ele a tarefa de definir se existe a representatividade adequada no grupo que se apresenta como portador desses interesses (a defining function, atribuída ao juiz nas class actions do direito norte-americano). Haverá, por certo, limites a essa atuação jurisdicional, um sistema de freios e contrapesos que preserve a independência entre os Poderes. [...] Em face do caráter efêmero desses interesses e de sua inaptidão aos meios comuns de ressarcimento, deve o Direito elaborar novos instrumentos, novas tutelas de urgência com que preservá-los, antes que ocorra a lesão.[15]
E a missão não é simples, como a princípio pode parecer dadas as características inerentes especialmente aos direitos difusos decorrentes de situações de fato imprevisíveis e variáveis no tempo e espaço, como as situações conflituosas que naturalmente afloram na apreciação da tutela a essa espécie de direito supraindividual, pela qual se apresenta a necessidade de ponderação entre os valores jurídicos em jogo.
É o que ocorre, por exemplo, no caso de construção de hidrelétrica de grande porte que exige a inundação de extensas áreas florestais e modificação do curso natural de rios importantes e desalojamento de populações inteiras, por vezes, indígenas que necessitam daquele espaço para a sua vida social. Há um evidente conflito entre a necessidade de geração de energia para atender a demanda crescente com suporte ao desenvolvimento econômico e o meio ambiente que será inevitavelmente afetado, assim como as populações localizadas nas áreas a serem inundadas.
Trata-se de direitos e valores jurídicos cuja situação momentânea faz atritarem-se, vez que não é possível a obtenção de energia sem a interferência no meio ambiente. Tais situações conflituosas demonstram o que RODOLGO MANCUSO denomina de “caráter fluído” dos direitos difusos que se mostram presentes em situações fáticas instáveis e momentâneas e que reclamam proteção jurisdicional que se fará, necessariamente, por meio da ponderação dos bens jurídicos envolvidos, o que traduz “escolha de caráter político” conforme conclui o mesmo jurista.
A esse respeito, o citado autor preleciona:
Assim, temos interesses difusos disseminados em áreas e temas de largo espectro social tais como ecologia, qualidade de vida, tutela dos consumidores, gestão da coisa pública, direitos humanos, defesa de etnias, defesa de minorias sociais, etc. Em assuntos tão abrangentes, é natural que os conflitos de interesses figurem exacerbados; ao interesse à contenção dos custos de produção, e bem assim aos preços, se opõem interesses ao “aquecimento” da economia; ao interesse à automatização industrial, se opõem os interesses à criação de novos empregos; aos interesses à proteção dos recursos naturais em geral, se opõem interesses financeiros, imediatistas, de grupos tão gananciosos quanto predadores; [...] Essa extrema diversidade dos interesses difusos provém do fato de que os dados que os compõem variam no tempo e lugar. Giorgio Recchia lembrar os exemplos do “DDT”, antes utilizado como excelente inseticida e hoje proscrito; os pântanos já foram considerados nocivos, mas hoje são protegidos [...]. A isso se podem acrescentar a pílula anticoncepcional, as lentes de contato, com fontes geradoras de opiniões as mais controvertidas, numa imensa “área de conflituosidade social” que tende a crescer à medida que se for sofisticando essa “tecnologia de massa”[16].
Diante desse quadro, o sistema processual necessita de evolução dos institutos e criação de outros novos para possibilitarem a plena tutela desses direitos e interesses “fluídos”, já que a jurisdição é chamada para agir de forma eficaz carecendo, para isso, dos instrumentos adequados que o processo individual não está adequadamente preparado para oferecer. Conforme anota ANTONIO HERMAN BENJAMIM, “tanto o fenômeno do ‘conglomerado de interesses’ (nem sempre formalizado), como o da ‘dispersão dos danos’ põem em xeque a formulação e montagem do processo civil tradicional na instrumentalização da solução de conflitos ambientais”.[17]
Basta ver, como já se afirmou alhures, as limitações na admissão de litigantes em número elevado revelada no uso do instituto do litisconsórcio; ou, nos institutos de legitimação processual onde é exigida a relação direta e quase absoluta entre os demandantes e a titularidade dos direitos e/ou obrigações a eles vinculados. Na convivência harmônica entre as possibilidades de atuação processual de forma coletiva e individual que não podem ser excludentes. Ou, ainda, ao instituto da coisa julgada que não pode ser admitido sem temperamentos em face dos riscos de se perpetuarem situações jurídicas injustas e, sobretudo, ruinosas aos interesses da coletividade exigindo evolução em sua compreensão, conforme se demonstrará em tópico próprio.
Noutro vértice, também a própria atuação da jurisdição precisa evoluir para dar maior efetividade e proteção especialmente àqueles direitos coletivos infungíveis, já que a mera reparação a posteriori não terá nenhuma eficácia na maioria das situações, o que demanda evolução do pensamento acerca da posição ocupada pelo Poder Judiciário que não pode se intimidar diante de infundadas acusações de violação do princípio da separação dos poderes, cada vez que é chamado a tutelar os interesses coletivos onde possa haver, também, interesse da administração pública.
É próprio da função jurisdicional, decidir os conflitos evitando as lesões a bens juridicamente tutelados e isso só ocorre quando os demais Poderes da República falham em sua missão. Instalado o conflito, é inerente ao Poder Judiciário a prerrogativa de solucioná-lo dentro do quanto disposto no ordenamento jurídico. Deve ser dito, porém, que há limites a atuação jurisdicional, como adverte ADA PELEGRINI GRINOVER:
A tendência ao indiscriminado controle do ato administrativo, quanto ao seu mérito, tem sido condenada pela doutrina e pela jurisprudência, atentas aos perigos do controle jurisdicional do ato discricionário: teríamos, ai, na verdade, a substituição da discricionariedade do administrador pela discricionariedade do juiz, invertendo as posições funcionais do poder e bloqueando toda a atividade administrativa.[18]
A esse propósito é importante destacar o pensamento de CARLOS ALBERTO DE SALLES a respeito do fenômeno da judicialização dos conflitos envolvendo direitos difusos, que em sua opinião serve ao propósito:
[...] trazer para o Judiciário a função de adjudicar o interesse público na situação disputada pelas partes, isso é, decidir no caso concreto o interesse que deve ser preponderante entre aqueles consagrados pelo ordenamento jurídico. Mais do que isso, deixando de adjudicar interesses circunscritos às esferas individuais de autonomia privada, ao decidir sobre bens coletivos, realiza opções relacionadas com a alocação e apropriação de recursos comuns. Nessa nova tarefa, a atividade judicial deve responder à questão de realizar não apenas uma justiça corretiva (ou retributiva), mas também aquela distributiva, ligada à atribuição individual de recursos comuns [...][19]
O que se propugna, sem embargo da criação de novos paradigmas, não é uma revolução que promova ruptura do sistema processual em vigor, senão somente, que se apliquem esforços no sentido de conferir interpretação mais ampla aos institutos para que cumpram a função de ancilar a tutela de direitos difusos e coletivos, para os quais, inegavelmente não foram originalmente concebidos.
Desse modo, a título ilustrativo, deve-se ampliar a interpretação do artigo 6º, do Código de Processo Civil para se permitir a legitimação processual ativa a quem não seja, diretamente, o titular do direito difuso ou coletivo ao qual se pede a proteção judicial. É bem verdade que em certa medida tal avanço já ocorre com o fenômeno da substituição processual na legitimação extraordinária, mas ainda é insuficiente para contemplar todas as situações em que os valores difusos estão em jogo, isto porque, a substituição processual na esteira da legitimação extraordinária ainda guarda nítida relação com a idéia originaria da titularidade do direito material envolvido, inadequada para a proteção de “direitos e interesses tuteláveis mesmo sem a apresentação imediata de um titular, decorrentes de um fato básico que afeta a todos”[20].
Por esta razão adverte CASSIO SCARPINELLA BUENO:
Se, como não se pode esconder, o processo brasileiro é iluminado e traçado a partir do mesmo vetor do devido processo legal que norteia o sistema norte-americano, parece que não se pode buscar resolver o problema da legitimidade para agir meramente no campo da lei. Que a lei possa (e deva) indicar soluções, não há o que contestar. O que não pode fazer, todavia, é pretender, em grau de definitividade, que aquela solução seja a mais adequada e a mais escorreita possível, não permitindo ao aplicador da lei liberdade para, caso a caso, valorar as situações e verificar se o espírito daquele dispositivo legal está em sintonia à cláusula constitucional precitada. Desde que positiva sua pesquisa, não há qualquer óbice de a lei, tal qual escrita, ser aplicada. De outro lado, na negativa, plausível que o juiz entenda que, naquele caso concreto, os vetores do devido processo legal não estão sendo adequadamente cumpridos. Nestes casos, deve recusar, motivadamente , o prosseguimento da ação, ao menos, enquanto veículo de tutela coletiva.[21]
Nesse rumo de ideias poderia haver uma significativa evolução com a ampliação da legitimação processual, como observa a autorizada doutrina de Rodolfo de Camargo Mancuso, avançando-se do conceito de substituição processual para a “representação adequada” a semelhança do quanto sucede na class action do direito norte-americano.
Tal avanço poderia ampliar as situações de tutela de direitos difusos, por exemplo, nas demandas que envolvam grupos ou classes que não possuem adequada representação processual, como movimentos sociais sem personalidade jurídica, grupos autóctones, entre outros.
Nestes casos, não haveria uma associação com personalidade jurídica formada, capaz de substituir os membros em juízo o que poderia excluir a tutela jurisdicional em favor dos direitos do grupo, sem prejuízo, evidentemente, da atuação do Ministério Público.
Ora, se presente algum representante legitimo que tenha amplas condições de litigar e genuíno interesse comum com o direito material a ser tutelado, não deveria haver obstáculo para que pudesse fazer uso das ações coletivas em busca da melhor proteção aos direitos coletivos da classe que representa.
A explicação para esse avanço é fornecida com propriedade por Rodolfo de Camargo Mancuso, ao anotar:
Essa interpretação especial que devem merecer esses princípios tradicionais, quando se trate de ações à finalidade coletiva, repousa em duas ordens de argumentos: em primeiro lugar, nos interesses difusos, o homem não é tomado em sua acepção singular, e sim em dimensão coletiva, vale dizer, enquanto integrante de uma coletividade mais ou menos vasta (cuja extensão pode variar, desde núcleos menores – habitantes de um bairro; consumidores de um produto – até vastas comunidades, como os cidadãos de um país, como se dá nas ações populares, fundadas em lesão de âmbito nacional). Em tal circunstância, é claro que o critério para a legitimatio ad causam não pode ser o mesmo empregado nos conflitos individuais (uti singuli), do tipo “Ticio versus Caio”. Em segundo lugar, as garantias individuais do due processo os Law (especialmente as referentes à defesa, contraditório e limites subjetivos do julgado) hão que ser vistas sob a óptica de garantias de índole coletiva, consentâneas com a natureza e finalidade dessas novas exigências sociais. Daí por que, nas ações coletivas o conceito de “representação adequada”veio substituir o critério de legitimação fundada na coincidência ou correspondência entre titularidade do direito subjetivo material e autor da ação.[22]
Eis um campo em que se poderia avançar inovando na interpretação do instituto da legitimatio ad causam para estendê-lo também à qualquer individuo que demonstre algum grau de relação, ainda que indireto (interesse juridicamente protegidos, conforme ILHERING), com o direito material difuso ou coletivo a ser tutelado, o que atenderia ao desiderato da proteção do interesse público, já que nas palavras de VICENTE DE PAULA MACIEL JUNIOR “não há interesse difuso, mas uma indeterminação difusa de interessados. Tanto isso é verdade que os chamados interesses difusos podem ser sempre manifestados na esfera individual dos interessados”[23].
Nessa ordem de idéias e diante da importância inerente aos direitos difusos e coletivos, seria preferível outorgar a qualquer pessoa a legitimação para estar em juízo na defesa dessa classe de direitos, desde que tenha condições suficientes de litigar, inclusive com apoio do Ministério Público, fundamentada esta atuação conjunta nas prerrogativas que lhe são conferidas pelo art. 127 da Constituição Federal.
O foco deve ser deslocado da questão da titularidade do direito material questionado, para aquele relativo à necessidade e interesse público na tutela de direitos ditos “fluídos”, especialmente se for considerado que os direitos coletivos têm relevância per si, conforme foi observado por VICENTE DE PAULA MACIEL JUNIOR ao anotar:
[...] o direito difuso não é organizado, não tem assembléia, nem deliberação para estabelecer a vontade da maioria. O direito difuso se expressa na norma que tutela bens que afetam muitas pessoas e serão legitimadas naturais a uma ação todas as pessoas que manifestem seu interesse individual em relação ao bem [...][24]
Ora, seria ilógico deixar de proteger os direitos difusos apenas porque não se identifica num primeiro momento quem seja seu legitimo titular no sentido clássico de apropriação de um direito. Daí porque qualquer individuo poderia ser legitimada para provocar a jurisdição em busca da proteção a um bem de todos, o que poderia ser realizado de forma conjunta com o Ministério Público, atendendo ao que BARBOSA MOREIRA designa como “legitimação concorrente disjustiva”. A respeito do tema pondera TEORI ALBINO ZAVASCKI:
[...] a substituição processual tem eficácia apenas no plano do processo. Quem defende em juízo, em nome próprio, direito de outrem não substitui o titular na relação de direito material, mas sim, e apenas, na relação processual. Como conseqüência, ao substituto é vedado praticar qualquer ato que, direta ou indiretamente, importe em disposição do direito material tutelado [...].[25]
BARBOSA MOREIRA ainda enfatiza a urgência na ampliação do espectro dos legitimados para a defesa dos direitos coletivos e difusos quando alude a necessidade de:
[...] alargar os limites, às vezes demasiado estreitos, da acionalidade, quer pelo ângulo objetivo – abrindo a hipóteses injustificamente excluídas a via de acesso à cognição judicial -, quer do ponto de vista subjetivo - rompendo as barreiras erguidas pela acanhada concepção tradicional da legitimação para agir [...].[26]
Diante da análise das situações concretas, da litigiosidade interna inerente a tutela dos direitos difusos e coletivos e da inafastável necessidade de garanti-los, sobretudo naquelas situações em que a própria sobrevivência do grupo está em jogo, verifica-se que o instituto da legitimação assim como preconizada no Código de Processo Civil, incluindo a extraordinária, não se mostra adequada à plena tutela desses direitos. Daí a conclusão da necessidade da evolução no entendimento de tais conceitos que permitiriam, sem nenhuma ruptura no sistema, o pleno atendimento das novas e urgentes demandas que chegam ao Poder Judiciário, conferindo-se a qualquer pessoa a legitimação para agir, pois o que se tem no caso é a necessidade de uma tutela de direito coletivo e não uma tutela coletiva de direitos, conforme foi bem delimitado por TEORI ALBINO ZAVASCKI.[27]
Da mesma forma, ocorre com o instituto da coisa julgada que também carece de nova compreensão para atender à necessidade de imunização das decisões proferidas nesta espécie de processo, onde as carências são diferentes daquela preocupação originária em impedir novas discussões entre as partes sobre a mesma demanda.
Evidente que tais desideratos ainda permanecem na aplicação do instituto às decisões proferidas nos processos coletivos, todavia, são insuficientes para solucionar as questões suscitadas no ambiente coletivo, a exemplo da posição dos terceiros que não participaram da relação jurídica ou naquelas situações onde o legitimado ativo deixa de diligenciar na defesa dos interesses coletivos sob sua representação, levando a improcedência dos pedidos por ausência de provas.
Com efeito, é preciso conciliar a necessidade de segurança jurídica proporcionada pela imunização da coisa julgada com o desiderato de evitar prejuízos a terceiros que seriam atingidos pela conduta negligente daqueles que foram legitimados para representar os direitos/interesses coletivos em jogo.
Nesse sentido, os conceitos da coisa julgada secundum eventus litis e secundum eventus probatione devidamente adaptados com a finalidade de servirem as tutelas coletivas podem fornecer os instrumentos eficazes na técnica de imunização das decisões.
Outro aspecto igualmente importante é a extensão da decisão para além do ambiente subjetivo do processo, alcançando o efeito erga omnes ou ultra partes, como prefere a redação do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor, ou, ainda, a relação processual entre as demandas individuais e as coletivas versando sobre os mesmos direitos materiais e submetidos ao instituto da litispendência.
Em todos esses campos é preciso nova e abrangente compreensão dos institutos processuais para lhes conferir alcance mais amplo a fim de instrumentalizar o processo coletivo com as melhores técnicas para se alcançar o fim maior, qual seja, a plena tutela dessa classe de direitos tão importantes e complexos.