Artigo Destaque dos editores

Legitimação individual no processo coletivo

Exibindo página 5 de 6
Leia nesta página:

6. LEGITIMAÇÃO INDIVIDUAL NO CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE

Não há dúvida de que os mecanismos de controle concentrado de constitucionalidade no Brasil constituem modalidade de processo coletivo uma vez que são destinados a tutelar a ordem constitucional que se constitui em direito difuso e coletivo.

Ter garantida a ordem jurídica constitucional é o mesmo que ter a proteção aos direitos subjetivos de matiz constitucional o que implica no interesse individual na resolução das questões constitucionais submetidas ao controle concentrado até porque é o individuo que vai sofrer os efeitos desse julgamento com natureza erga omnes e eficácia vinculante.

TEORI ALBINO ZAVASCKI pontifica:

[...] considerando essa circunstância, e, ainda mais, que as mesmas sentenças têm eficácia ex tunc, do ponto de vista material e erga omnes, na sua dimensão subjetiva, não há como negar que o sistema de controle concentrado de constitucionalidade constitui, mais que modo de tutelar a ordem jurídica, um poderoso instrumento para tutelar, ainda que indiretamente, direitos subjetivos individuais, tutela que acaba sendo potencializada em elevado grau, na sua dimensão instrumental, pela eficácia vinculante das decisões. É em outras palavras, um especial modo de prestar tutela coletiva.[59]

As inúmeras transformações pelas quais vem passando o estudo sobre o controle de constitucionalidade no Brasil, indicam sem a menor sombra de dúvida, que o modelo do controle concentrado é o destino almejado para o Supremo Tribunal Federal.

Diante das inovações introduzidas no processamento do Recurso Extraordinário por meio da Lei nº. 11.418/2006 exigindo como pressuposto recursal a presença da repercussão geral para admissão do recurso, fica claro que a Corte Constitucional precisa se livrar da árdua tarefa de última instância para o controle incidental difuso, o que é compreensível diante do volume absurdo de demandas individuais atualmente em curso na Corte Suprema.

Desta forma, somente questões que tenham repercussão geral, ou seja, que correspondam a interesse difuso ou coletivo é que terão doravante passagem livre para serem examinadas pelo Supremo Tribunal Federal. Evidente que essa modificação nada mais é do que modalidade de controle concentrado, já que no julgamento o Supremo Tribunal Federal poderá utilizando-se das técnicas de controle de constitucionalidade estender os efeitos para além das partes, como, aliás tem ocorrido em decisões recentes.

Há um grande empenho em se obter ao máximo possível o efeito erga omnes dos julgamentos da corte constitucional como forma de se evitarem demandas repetitivas com os mesmo assuntos já apreciados, emprestando maior agilidade e segurança ao sistema jurídico constitucional. Nessa linha de raciocínio o requisito da repercussão geral tem dimensão de direito coletivo no aspecto processual o que pode ser visto no artigo 543-B, § 2º do Código de Processo Civil ao dispor que “negada a existência da repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos”.

Com efeito, todas as pessoas que se encontram na mesma situação do recurso paradigmático, ou seja, que possuem recurso com a mesma matéria aguardando processamento, serão atingidas pela decisão negatória da repercussão geral, revelando efeito erga omnes restrito a esta classe de pessoas.

Diante do delineamento desse quadro vai ficando nítido que o controle concentrado de constitucionalidade irá, aos poucos, tornando-se predominante até o ponto em que já não mais será possível ao Supremo Tribunal Federal apreciar questões individuais que ficarão restritas aos procedimentos ordinários sob competência dos Tribunais inferiores.

Nesse rumo, o acesso ao controle constitucional perante o Supremo Tribunal Federal vai se fechando ao individuo ficando destinado apenas a apreciação das questões de interesse difuso e coletivo, cujos legitimados são poucos e nominados em rol taxativo, conforme opinião unânime da doutrina.

Nesse cenário, o individuo poderia ter interesse jurídico em postular controle concentrado de constitucionalidade? Cremos que a resposta é positiva aproveitando-se os mesmos argumentos já expendidos alhures para justificar a legitimação individual para os processos coletivos típicos, apenas transpondo os direitos difusos e coletivos para a órbita constitucional que é o ambiente de vivência e aplicação desse modo singular de jurisdição.

GILMAR FERREIRA MENDES comentando sobre a natureza do controle abstrato de normas constitucionais diante do julgamento da ADI 79/89 afirmou que “[...], parece pacifico o entendimento sobre a natureza do controle abstrato de normas como processo objetivo, para cuja instauração se afigura suficiente a existência de um interesse público de controle”[60]

Na mesma obra o referido autor constatou a natureza política do controle abstrato de constitucionalidade ao referir:

Na decisão de 3 de fevereiro de 1986, ressaltou o Tribunal, uma vez mais, a natureza política do controle abstrato de normas. O processo judicial deveria, por isso, ser considerado simples forma. Essa orientação tornou-se ainda nítida no acórdão de 18 de maio de 1988. O Supremo Tribunal Federal ressaltou a objetividade desse processo, que não conhece partes e outorga ao Tribunal um instrumento político de controle de normas.[61]

O individuo pode ter esse interesse público de controle da ordem constitucional? Como se trata de processo político, não teria este mesmo individuo o direito de participar de sua formulação diante das prerrogativas da democracia?

Se afirmativas essas respostas, qual seria o obstáculo à legitimação individual para suscitar o controle concentrado de constitucionalidade?

Nos parece claro que as respostas são positivas, ou seja, situações podem existir em que o individuo apresenta interesse juridicamente tutelado de provocar o controle concentrado de constitucionalidade para a preservação da ordem constitucional que a todos beneficia. E nos parece, também, não haver obstáculos de ordem cientifica ou mesmo de conveniência política para justificar o afastamento dessa legitimidade.

Uma tentativa de positivação dessa legitimidade subjetiva ocorreu com a Lei nº. 9.882/99 que inicialmente, em seu artigo 2°, II, previa que "qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público" seria legitimada a propor Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, mediante representação ao Procurador Geral da República.

A tentativa, porém, foi abortada no nascedouro mediante veto do Presidente da República, com a justificativa de aumento do número de processos e, sobretudo, porque a legitimação seria inadequada diante do sistema de controle concentrado adotado no Brasil. Eis as razões:

A disposição insere um mecanismo de acesso direto, irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal sob a alegação de descumprimento de preceito fundamental por "qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público". A admissão de um acesso individual e irrestrito é incompatível com o controle concentrado de legitimidade dos atos estatais – modalidade em que se insere o instituto regulado pelo projeto de lei sob exame. A inexistência de qualquer requisito específico a ser ostentado pelo proponente da argüição e a generalidade do objeto da impugnação fazem presumir a elevação excessiva do número de feitos a reclamar apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, sem a correlata exigência de relevância social e consistência jurídica das argüições propostas. (...) Afigura-se correto supor, portanto, que a existência de uma pluralidade de entes social e juridicamente legitimados para a promoção de controle de constitucionalidade – sem prejuízo do acesso individual ao controle difuso – torna desnecessário e pouco eficiente admitir-se o excesso de feitos a processar e julgar certamente decorrentes de um acesso irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal. Na medida em que se multiplicam os feitos a examinar sem que se assegure sua relevância e transcendência social, o comprometimento adicional da capacidade funcional do Supremo Tribunal Federal constitui inequívoca ofensa ao interesse público. Impõe-se, portanto, seja vetada a disposição em comento. (BRASIL. Presidente da República, 1999).

 A posição do Supremo Tribunal Federal não diverge em essência das razões do veto, já que repele prontamente a possibilidade da legitimação individual, conforme se colhe do julgamento da ADPF 138-MC.

(...) Pessoas físicas, estranhas ao rol exaustivo inscrito no art. 103 da Carta Política, não dispõem de qualidade para agir, perante o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle normativo abstrato, falecendo-lhes, em conseqüência, em virtude da cláusula de legitimação estrita consubstanciada no preceito constitucional mencionado, a prerrogativa para ajuizar ação direta de inconstitucionalidade (...). É por essa razão que o Supremo Tribunal Federal, tendo em consideração o que prescreve o art. 2º, I, da Lei n. 9.882/99, não tem conhecido de argüições de descumprimento de preceito fundamental, quando ajuizadas, como sucede na espécie, por quem não dispõe de legitimidade ativa para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade (...).” (ADPF 138-MC, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 30-4-08, DJE de 7-5-08). No mesmo sentido: ADPF 166, Rel. Min. Cármen Lúcia, decisão monocrática, julgamento em 25-3-09, DJE de 3-4-09; ADPF 20, Rel. Min. Maurício Corrêa, decisão monocrática, julgamento em 15-10-01, DJ de 22-10-01.

A doutrina é maciça em reconhecer falta de legitimidade individual para o acionamento do controle concentrado por meio das ações diretas de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental, limitando-se a maioria esmagadora dos autores constitucionalistas a dizer que o rol dos legitimados ao controle concentrado assim como previsto no art. 103 da Constituição Federal é taxativo.

Além disso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal também é no sentido restritivo do acesso a este mecanismo de controle de constitucionalidade já que exige para os legitimados especiais a representatividade adequada com a pertinência temática, similar as exigências contidas no artigo 5º, V, da Lei da Ação Civil Pública. Ressalte-se a exceção feita ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIn 3-DF, relatada pelo Ministro Moreira Alves:

[...] Em se tratando do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, sua colocação no elenco que se encontra no mencionado artigo, e que a distingue das demais entidades de classe de âmbito nacional, deve ser interpretada como feita para lhe permitir, na defesa da ordem jurídica com o primado da Constituição Federal, a propositura de ação direta de inconstitucionalidade contra qualquer ato normativo que possa ser objeto dessa ação; independente do requisito da pertinência temática entre o seu conteúdo e o interesse dos advogados como tais de que a Ordem é entidade de classe. (STF. ADIn 3- DF. Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 142: 383, 1992).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Apesar de todas essas vozes dignamente autorizadas em matéria de direito constitucional, ousamos provocar a reflexão desse tema diante das inovações no modelo de controle constitucional em franca mutação, vislumbrando uma cidadania plena que contemple a possibilidade de acesso a todos os mecanismos de tutela jurisdicional que objetivem uma situação de proteção, salvaguarda e tutela aos direitos coletivos, como é a ordem constitucional hígida.

Tangenciando este tema, mas sem ousar propor modificações, GILMAR MENDES percebeu as conseqüências de uma abertura nesse campo da legitimação individual para as ações de controle concentrado de constitucionalidade ao advertir que “uma orientação menos criteriosa poderia imprimir ao sistema instituído pela Constituição de 1988 quase a amplitude de uma ação popular de inconstitucionalidade”[62].

Ele sustenta que as organizações contempladas com a legitimação especial já representam adequadamente todos os seguimentos da sociedade sendo o suficiente para atender ao desiderato democrático.

Objetamos essa conclusão com os mesmos argumentos já esgrimidos para a legitimação individual nas ações coletivas, porque entendemos plenamente válidos na transposição para o ambiente de controle concentrado de constitucionalidade, sendo o mais importante, a obrigatoriedade de associação contra o qual há garantia inserida nas cláusulas pétreas da Constituição Federal.

Curioso notar que a questão da legitimação para as ações de controle concentrado de constitucionalidade caminharam historicamente ao lado do nível de democracia vigente no País. Com efeito, na ordem constitucional vigente entre 1965 até 1988, como anota Luis Roberto Barroso:

[...] a deflagração do controle abstrato e concentrado de constitucionalidade era privativa do Procurador-Geral da República. Mais que isso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido da plena discricionariedade do chefe do Ministério Público Federal no juízo acerca da propositura da ação, sem embargo de posições doutrinárias importantes em sentido diverso. Desse modo, era ele o árbitro exclusivo e final acerca da submissão ou não na discussão constitucional ao STF. Registre-se, por relevante, que o Procurador-Geral da República ocupava cargo de confiança do Presidente da República, do qual era exonerável ad nutum. Assim sendo, o controle de constitucionalidade por via de representação fica confinado às hipóteses que não trouxessem maior embaraço ao Poder Executivo.[63]

Com a redemocratização do País, a Constituição Federal ampliou o rol dos legitimados, libertando o controle de constitucionalidade da interferência exclusiva do Chefe do Poder Executivo em um passo largo em direção a plena democracia. Advogamos a tese que esse rol precisa ser ampliado para se admitir também o individuo, como expressão máxima do amadurecimento democrático, porquanto esta legitimação atende ao interesse público de maior participação dos processos decisórios que interferem na esfera coletiva e por conseqüência, também na individual.

Inovador nesse rumo e já sinalizando uma maior abertura para a participação coletiva nesses temas de interesse difuso e coletivo estão as disposições contidas na Lei nº. 9.868/99 – art. 7º, § 2º, e no artigo 543-A, § 6º do Código de Processo Civil, prevendo a possibilidade de manifestação de terceiros interessados em similaridade com a figura do amicus curiae do direito norte-americano no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e na análise da presença da repercussão geral para admissão do recurso extraordinário. 

Não se ouvida que essa hipótese é deveras controvertida, porém é um tema que precisará ser discutido diante das necessidades de tutela jurisdicional coletiva eficaz o que inclui, também, a ordem constitucional.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Hamilton Donizeti Ramos Fernandez

Mestrando em Direito pela FADISP - Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo. Advogado em São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Hamilton Donizeti Ramos. Legitimação individual no processo coletivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3625, 4 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24606. Acesso em: 29 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos