3. CONCLUSÃO: O PARADOXO DE TSCHIRNHAUS.
O EMÉRITO PROFESSOR Tércio Sampaio Ferraz Jr., todos nós o sabemos, é um renomado estudioso do Direito da Universidade de São Paulo – USP. Pensamos nele quando, diante da observação de Habermas, “do fato de que a Filosofia do Direito – quando ainda busca o contato com a realidade social – ter emigrado para as Faculdades de Direito” (HABERMAS, 1997), nos perguntamos se foi a Filosofia do Direito ou se foi a Faculdade de Direito que haviam perdido contato com a realidade social? Pensamos que saber isso seria interessante! Mesmo porque, uma sublime frase de James Joyce, em “Ulisses”, reflete bem as disposições de espírito dos juristas herdeiros teóricos ou discípulos (com maior ou menor grau de fidelidade ou infidelidade) de Nuremberg, que podemos chamar de juristas ultraliberais, ou seja, com espírito de Peter Pan: “Manter isso para sempre, nunca mais ficar um dia mais velho teoricamente!” (JOYCE, 2003). Isso o que? A experiência alemã nazista, a experiência italiana fascista, a experiência russa stalinista etc. Por quê? Porque elas nos oferecem, diz-nos François Rigaux: “um paradigma da aptidão do Direito a se apropriar de qualquer situação que seja; a legalizar o crime para em seguida restituir-lhe a qualificação que merece” (RIGAUX, 2000). Então, como investigar a realidade social a partir da Filosofia do Direito ou da Faculdade de Direito sem recairmos em contradição e tautologias propícias a “eternidade” (direta e indiretamente, no todo ou em parte) das “leis de Nuremberg” etc.? Pois bem! O professor Ferra Jr. mostra-nos a existência de dois modos básicos de investigação do Direito, e, justamente, o que caracterizamos como o ponto básico do Paradoxo de Tschirnhaus, revela-se de forma cristalina. Estranho isso! Foucault parece ter razão: “A linguagem não diz exatamente aquilo que diz”. Vejamos! Ferraz Jr admite que “toda investigação científica esteja sempre às voltas com perguntas e respostas, problemas que pedem soluções, soluções já dadas que se aplicam a elucidação de problemas” (FERRAZ Jr., 2003). Tal reconhecimento o faz apontar dois modos básicos de investigação do Direito, orienta-nos Vitor Bartoletti Sartori a garimpar:
“Um ao partir de uma solução já dada e pressuposta, está preocupado com um problema de ação, de como agir. Outro, ao partir de uma interrogação, está preocupado com um problema especulativo, de questionamento global e progressivamente infinito das premissas” (FERRAZ Jr., 2003).
Ferra Jr. usa a terminologia de Theodor Viehweg (“Ideologie und Recht”) e diz que, no primeiro caso, acentuando o aspecto perguntas [que se configura como um Ser (o que é algo)], temos um enfoque “zetético”; no segundo, predominando o aspecto resposta [que se configura como um dever-ser (dever-ser algo)], temos o enfoque “dogmático”. – A aporia do problema resulta em que como é possível separar “Ser” e “Dever-Ser” algo, se, para “Ser” é necessário e suficiente “Dever-Ser” algo, ou, outra face da mesma aporia, para “Dever-Ser” é necessário e suficiente “Ser” algo que ainda não se é para se poder entrar em devir; e “Ser” – O fato é que Bartoletti Sartori tem razão; surge assim, “de um lado, a prática conectada umbilicalmente com a sociabilidade existente” [o que eu gostaria de frisar, en passant, que não necessariamente (e nem suficientemente), contudo]; “de outro, a teoria, a qual tenta se livrar dos impulsos pragmáticos inerentes a ação e as decisões limitadas por uma situação dada”. Neste sentido, conclui ele, “a teoria jurídica aparece de maneira que esses “pólos” surgem não só separados, como também contrapostos” (BARTOLETTI SARTORI, 2010). E eis que estamos diante do Paradoxo de Tschirnhaus, na forma de conflito ou contraposição entre Teoria e Prática jurídica. A superação do Paradoxo de Tschirnhaus dá-se, segundo Immanuel Kant, quando se busca corrigir as deficiências da Faculdade do Juízo que assim se manifesta. Diz Kant:
“Ninguém, portanto, pode passar por versado na prática de uma ciência e, no entanto, desprezar a teoria sem mostrar que é um ignorante no seu ramo: pois crê poder avançar mais do que lhe permite a teoria, mediante tacteios em tentativas e experiências, sem reunir certos princípios (que constituem propriamente o que chamamos de teoria) e sem formar para si, o propósito da sua ocupação, uma totalidade (que, quando tratada de modo sistemático, se chama sistema)” (KANT, 1990).
E sem dúvida, permanecendo o descompasso entre Teoria e Prática, e apenas assim, Bartoletti Sartori tem razão quando diz que: “O Direito vem, quer se queira, quer não, a ser visto como um instrumento e, como tal, é passível de manipulação”, o que, sem dúvida, “pode levar à hipertrofia do Direito justamente por meio de seu esvaziamento” (BARTOLETTI SARTORI, 2010). E assim, parafraseando Kant, podemos dizer que, se não há Teoria bastante, falha-se em tentar captar o universal, e, perde-se o mais particular; e se não se apreende a experiência, torna-se impossível captar o mais particular, e, conseqüentemente, o universal é manipulado, ou seja, a hermenêutica torna-se estúpida, a deontologia torna-se permissiva, a heurística torna-se vazia, a epistemologia perde o rumo, a genealogia se perverte etc. etc. E a sepultura está pronta para o enterro do Direito. Bartoletti Sartori está certo: a impossibilidade de “deixar as soluções em suspenso” (CF: Art. 5º XXXV e CPC: Art. 126), pode mesmo vir a gerar “soluções impostas por situações não questionadas, tomadas, assim, como premissa, como se “evidentes’ fossem” torna qualquer coisa e tudo possível... (Cf. BARTOLETTI SARTORI, 2010). E a anomia pode se estabelecer. O Direito torna-se Torto. Mesmo porque, é preciso entender que dogmática é doutrina, não teoria científica. E sempre que é apresentada como teoria científica o Direito esbarra nas contradições e tautologias impostas pelo Paradoxo de Tschirnhaus, ou seja, sempre que se pretende compreender os escritos jurídicos não como Doutrina, mas como Criação Científica, perdeu-se de vista seu conteúdo de verdade relativa a, ou, nas palavras do Professor Roberto Romano (em “Prefácio” ao livro de Márcio Sotelo Felippe), “expulsaram da Ciência Jurídica a consciência que não se reduz ao fato visível (ou a experiência), e ignoram a dignidade sublime explorada na “Kritik der Urteilkraft”. Diz-nos, então, Romano: “Dignidade. Este é o imperativo que rege a íntegra doutrina”. Diz-nos, então, Márcio Sotelo Felippe:
“A dignidade é o fim. A juridicidade da Norma positiva consiste em se poder reconhecer que, tendencialmente, ela se põe para esse fim. E se não se põe, não é legítima” (FELIPPE, 1996).
O que pode solucionar o conflito entre Teoria e Prática, entre Forma e Conteúdo, ou entre Teorias antagônicas, que dão ensejo a formulação do Paradoxo de Tschirnhaus, é não se perder de vista o fim a que se destina a construção do Direito, como Experiência e como Doutrina (ou Teoria): a dignidade humana. Se isso não for compreendido definitivamente o Paradoxo de Tschirnhaus continuará em ação provocando deformações em todas as soluções (que nada solucionam) apresentadas para a denominada “Crise do Judiciário”, pois que, todos os problemas disfuncionais do Poder Judiciário estão ligados ao fenômeno da alienação institucional decorrentes das mediações simbólicas das distinções (Bourdieu) que se interpõem na sociedade civil-burguesa como forma garantida de status, oportunidades, arbítrio, poder... (WALTER AGUIAR VALADÃO, Venda Nova do Imigrante (ES), 21 de maio de 2013).
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