1 . INTRODUÇÃO
Os mecenatos ou patrocínios culturais incentivados fomentam as atividades culturais na sociedade brasileira através de legislação federal específica.
Com o objetivo de demonstrar as origens do mecenato cultural atual, este artigo demonstra como governantes, nobres, religiosos e classes ascendentes, utilizaram-se da sistemática do mecenato através dos séculos. Tal sistemática foi inaugurada por Caio Cilnius Mecenas em 74 a. C. na Roma Antiga, como forma de se legitimar o poder do então Imperador Romano Caio César.
O entendimento dos interesses desses mecenas demonstrarão os movimentos e as transformações ocorridas, através dos séculos seguintes, até os mecenatos conhecidos atualmente, como no caso do marketing cultural de empresa motivado pelos incentivos fiscais do Estado.
2 . ASPECTOS HISTÓRICOS
Face a importância do poder transformador que a cultura impõe sobre as sociedades humanas, a UNESCO (União das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em conferência realizada em 2 de novembro de 2001, produziu um documento intitulado Declaração Universal da UNESCO, como citado por Brandt (2001, p. 19):
Declaração Universal da UNESCO
[...]
Artigo 7°— Patrimônio cultural, fonte da criatividade. Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, mas desenvolvem-se plenamente em contato com outras. Essa é a razão pela qual o patrimônio, em todas as suas formas, deve ser preservado, valorizado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e das ambições humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda a sua diversidade e instaurar um verdadeiro diálogo entre as culturas.
Observa-se na Declaração citada que toda a criação tem suas origens nas tradições culturais, formando-se como um patrimônio a ser preservado para as gerações futuras.
3 . ORIGEM DO MECENATO
Segundo Almeida (1993, p. 17) “Tendo como referência as ideias de Aristóteles disseminadas quatro séculos antes, a doutrina do mecenato encontra na Roma de Caio Augusto um terreno propício ao seu desenvolvimento.”
Abordado ineditamente em 74 a.C. por Caius Cilnius Mecenas, a relação de poder e cultura deu seus primeiros passos no cenário histórico dos mecenatos. A política estrategista inciada na Roma Antiga criou uma perspectiva de que governo e cultura eram inseparáveis, cabendo ao governo tal proteção à cultura. As expressões culturais quantificavam o poderio dos governantes sobre seus governados e/ou, até mesmo, sobre seus adversários. Quanto mais glamoroso e grandioso o trabalho artístico, mais poderio, por mera interpretação lógica, demonstrava o governante, conforme Brandt (2001, p. 44):
A origem vem da Roma Antiga, de Caius Cilnius Mecenas, Ministro de Caio Julio Augusto, Imperador de Roma. [...], Caius Mecenas como "estrategista de talentos múltiplos", é o responsável, entre 74 a.C. e 8 d.C., por uma política inédita de relacionamento entre governo e sociedade dentro do Império. Para Mecenas, as questões de poder e da cultura são indissociáveis e cabe ao governo a proteção às diversas manifestações de arte. Na equação de trocas, cabe à arte um papel no âmbito desse poder.
Mecenas, utilizando a filosofia e a arte como validadores do pensamento oficial, reforçou o fortalecimento do poder do império Romano, inaugurando um inédito e eficiente sistema de legitimação chamado de pensamento oficial, que perduraria por séculos, segundo Brandt (2001, p. 44):
Mecenas entende que o poder necessita se fazer cercar da criação artística e do pensamento, na busca de sua legitimidade. Neste sentido, são formados e mantidos os círculos de eruditos que gravitam em torno do ministro e do governo. Cabe a este círculo a intermediação das idéias e ações imperiais junto à população. Através de sua influência e prestígio junto aos cidadãos, os eruditos emprestam credibilidade, ao mesmo tempo que disseminam a política imperial. Por meio da implantação do que se convencionou chamar de "maneira grega de pensar o poder no coração do Império Romano", Mecenas arquiteta um dos mais sutis e eficientes sistemas de legitimação do poder na história. Ao transformar filosofia e arte em pensamento oficial, o ministro da propaganda de Augusto inaugura formalmente uma relação que iria prosperar nos séculos seguintes."
Assim, observou-se o poder se fortalecendo na imagem artística ou literatura criada por artistas, como uma espécie de auto propaganda do governo mecenas contratante.
4 . ARTE, PODER, FORTUNA E O MECENATO
A ideia inovadora de patrocínio criada por Caius Cilnius Mecenas ganhou força através dos séculos, sendo amplamente utilizada pelos poderosos, conforme ensina Brandt (2001, p. 42):
Ainda hoje vivemos influenciados por um antigo sisterna aristocrático, em que a arte a ser selecionada e executada era escolhida por e para poucos. À luz dessa tradição, a produção cultural pode ser pensada, desde o Império Romano, como instrumento determinante na relação de poder. Francis Haskell, autor de "Mecenas e Pintores", nos traz alguns exemplos de como se dava essa relação entre artistas e mantenedores. Sempre que um novo papa ascendia ao trono, cercava-se de urna multidão de parentes, de amigos e de clientes que afluíam a Roma de toda a Itália, a fim de abocanhar os inúmeros cargos lucrativos que a cada mudança de governo ficavam vagos. Mal haviam chegado, esses homens começavam a construir palácios e capelas, a construir coleções de quadros e a montar todas as espécies de espetáculos magníficos. Eram mecenas altamente competitivos, ansiosos por dar o mais rapidamente possível uma expressão a sua riqueza e a seu poder, ansiosos também por incomodar os seus rivais. Com a morte do papa, muitas vezes caíam em desgraça e, em todo caso, viam esgotar-se abruptamente as vastas fontes de renda, uma vez que o nepotismo não mais assumia a forma de impérios amputados do território da Igreja.
Almeida (1993, p. 18) ensina:
É no esplendor da Europa renascentista que o mecenato atinge o seu apogeu. O Século XV marca o engajamento generoso dos monarcas do continente no estímulo e proteção às artes. De Carlos V na Espanha aos Habsburgo na Áustria as cortes europeias empenham largas somas no financiamento a cultura, numa espécie de competição na qual vence a que for capaz de reunir a mais brilhante constelação de talentos.
Para King (2002, p. 15), interessante destacar os mecenatos de “gênios da arte” como no caso de Michelangelo:
No início de 1505, alguns meses após ter concluído o Davi, Michelangelo recebeu do papa Júlio II urna convocação que interrompeu seu trabalho em Florença. O papa ficara tão impressionado com a Pietà, que conhecera em urna capela da Basílica de São Pedro, que desejou que o jovem escultor também fizesse o seu túmulo. No final de fevereiro, o tesoureiro papal, cardeal Francesco Alidosi, pagou a Michelangelo uni adiantamento de cem florins de ouro, o equivalente a um ano de salário de um artesão. O escultor então retornou a Roma e começou a trabalhar para o papa.' Começava naquele momento o que ele mais tarde chamaria de "a tragédia do túmulo". (KING, 2002, p. 15)
Segundo Almeida (1993, p. 18), é legítima a dedução de que através dos mecenatos da igreja, por exemplo, as obras por ela encomendadas, impactassem de forma orientada e sugestiva seus expectadores. Registra-se a burguesia, classe ascendente atrelada ao mercantilismo, que também se utilizou do mecenato cultural como uma forma de alcançar seu prestígio social, tornando-se assim uma iniciativa alternativa aos mecenatos amplamente praticados por Imperadores, Reis, Papas e Nobres.
[…] neste cenário de arte, poder e fortuna, a Itália desempenha um papel privilegiado. À atuação das grandes famílias como os Dona em Gênova, ou os Borghese em Roma, soma-se o mecenato pontifício que durante algum tempo supera todos os outros pelo seu fausto e esplendor. A Itália reunia na época as condições favoráveis à extensão deste quadro: era um importante eixo financeiro e comercial e abrigava famílias que, na busca do poderio político e econômico, presumiam aí o destaque artístico e intelectual. É em Florença que se encontram os maiores expoentes do mecenato nesta época. Os Médicis, família italiana cuja origem se confunde com a cidade, constroem, sobretudo entre 1400 e 1600, a mais sólida reputação europeia do patronato às artes.
Para Haskell (1997, p.64), as imponentes obras da igreja construídas ou restauradas por artistas de talento, financiados por mecenas, enalteciam temas ou símbolos de interesse da igreja, fortalecendo ainda mais as relações de seu poder. Consolidava-se assim, através da produção de obras artísticas de grande vulto, a força visual que os poderosos desejavam demonstrar. Os mecenatos da Igreja possuíam grande representatividade e influência sobre as sociedades ocidentais, à época.
Terminado o conjunto, ficou claro que o papa e Bernini haviam dado à basílica uma significação nova. Quando. nos últimos anos de sua vida. Urbano entrava na igreja pela porta da esquerda. era certamente, como todos os peregrinos que visitaram até hoje a igreja, atraído irresistivelmente pelo imponente baldacchino. De lá, podia contemplar os resultados de seu mecenato. Fosse pelo estilo, fosse pelo tema, todos os elementos se correspondiam: era um formidável hino à glória do martírio de Cristo, de Seus apóstolos e de Seus santos, de uma força emocional que não tem igual em todo o mundo: mas também, habilmente fundido no conjunto de maneira a constituir uma parte essencial da estrutura, uma recordação apaixonada dos brilhantes triunfos do papado e de sua própria família.
Conforme exposto, a manutenção de poder e de prestígio demonstrava-se, claramente, ser a grande motivação dos mecenas religiosos da época.
5 . SEPARAÇÃO ENTRE MECENATO E PODER
Cabe ressaltar que, séculos antes da separação que será abordada neste sub título, a classe artística já demonstrava os primeiros sinais de reflexão quanto ao modelo usual dos mecenatos “de interesse”. Os sistemas de mecenato, tradicionalmente conhecidos como “financiamentos” realizados por poderosos, relacionados aos interesses de governantes ou de classes sociais ascendentes, veem o início da diferenciação entre os artistas sérios e os artesãos mecânicos, àqueles que desempenhavam o ofício por mera e dirigida encomenda, segundo ensina Haskell (1980, p. 33-34):
A própria compreensão do papel social que o artista podia desempenhar e o fato de as grandes obras de arte não serem mais produzidas essencialmente para a admiração privada de uma corte de hedonistas foram, até certo ponto, os responsáveis por esse declínio no status do artista. A arte não era mais auto suficiente, como o fora na época de Leão X. Numa sociedade que se tomara mais utilitária, o artista conquistou um espaço mais garantido, mas perdeu um pouco de sua mística. Somente no século XVIII é que iria ressuscitar o culto do "génio". [...]. As somas astronômicas que um artista famoso podia ganhar eram em si mesmas responsáveis por grande parte de seu avanço social. [...] uma das principais preocupações dos artistas, no século XVII, era certamente a conquista de um lugar na sociedade. Foi esse motivo que inspirou os renovados esforços para estabelecer em bases sólidas a sua associação profissional, a Accademia di San Lttca. Cada vez que um novo papa ascendia ao trono, eram feitas tentativas de melhorar a condição da entidade e estimular uma diferenciação entre os artistas sérios e os artesãos mecânicos.
Para Reis (2003, p. 9) “Surgiram as academias nacionais e as escolas de belas artes. O artista foi elevado à condição de gênio criador, já que a atividade da criação tinha relação direta com a razão e a imaginação.”
Segundo Almeida (1993, p. 18-19), a separação entre os modelos tradicionais de mecenato, vistos até então, foi primeiramente observada no início do século XX nos Estados Unidos da América, com o advento do modelo de incentivos fiscais, incentivado pelo Governo daquele país, tendo os contribuintes tributários como um dos polos partícipes do novo modelo de mecenato.
A separação gradual entre mecenato e poder, acelerada pela Revolução Industrial e pelo surgimento de novas fortunas, redefine os limites entre o público e o privado. A virada do Século XX revela os Estados Unidos como proscênio privilegiado do mecenato de capital recentemente inaugurado. É conhecido como período heroico, marcado por uma certa anarquia que domina as relações entre capital e arte. Graças a uma legislação extremamente liberal, que até 1917 favorece o mecenato de indivíduos e não de empresas, desenvolvem-se juntos a criação artística e o culto a personalidade. É a época de sobrenomes sonoros como Rockefeller, Ford, Getty ou Carnegie, identificados a setores das finanças e da indústria. O Rockefeller Center, a Fundação Ford, o Museu Getty ou o Carnegie Hall são referenciais diretos desta aliança entre a sociedade, o Estado e a o empreendedor supostamente esclarecido que retorna à comunidade o que dela aufere, com a ajuda de um pequeno empurrão através do estímulo fiscal. É a generosidade do sistema tributário que irriga a generosidade do patronato de então.
Segundo Reis (2003, p. 7), a Fundação Ford nos Estados Unidos da América é até hoje centro de referência de estudos e desempenhou papel de enorme relevância no financiamento da cultura na primeira metade do século XX.
Vaz (2003, p. 214) considera:
Pessoas que possuem vasto patrimônio e almejam ter o nome lembrado pelas gerações futuras instituem fundações com recursos que possibilitam o desenvolvimento de continuada atividade cultural. É a motivação que dá origem a instituições como as Fundações Calouste Gulbenkian (Portugal), Ford e Rockefeller, e os Museus Guggenheim e Whitney (Estados Unidos).
Conforme exposto acima, vê-se como ocorreu o modelo de mecenato de pessoas que propiciou a origem de renomadas as Fundações Ford e Rockefeller e os Museus Guggenheim e Whitney, nos Estados Unidos da América.
6 . O MECENATO DE EMPRESA
O mecenato nos Estados Unidos da América, para Almeida (1993, p. 20):
[…] adquire significação a partir de 1960. Um novo ajuste no código tributário, a criação do Comitê de Negócios para as Artes por John e David Rockefeller e uma sensação geral de prosperidade econômica impulsionaram a participação das empresas no universo das subvenções.
O mecenato de empresa nos Estados Unidos da América inaugurou a figura do Estado como membro de um novo círculo de interesses formado por: a Empresa, o Artista e sua Expressão Cultural e o Estado, que iniciou assim um novo posicionamento de figuração como incentivador fiscal das Empresas, e estas, através dos benefícios fiscais concedidos pelo Estado tornaram-se mecenas, resguardados seus interesses como incentivadoras culturais, segundo Lipovetsky (2010, p. 298):
Não tenhamos ilusões: é a partir de critérios de comunicação que são tornadas as decisões de apadrinhamento, não a partir de perspectivas filantrópicas. Todas as acções morais são boas, mas nem todas as acções de mecenato o são; o acontecimento criado ou apadrinhado pela empresa deve estar em harmonia com a sua imagem, há sempre a procura de uma adequação, de uma coerência entre alvo, acontecimento e produto. A acção de mecenato não é, de forma nenhuma, desinteressada, a empresa espera sempre colher dela um benefício, aos olhos do direito das sociedades, uma acção de caridade sem contrapartidas seria associável a um abuso de bens sociais. Acção de comunicação na sua totalidade, o mecenato é um instrumento de promoção de uso interno e externo, que tem como tarefa unir o pessoal em torno de valores comuns, enobrecer a imagem da empresa, dotá-la, paralelamente aos projectos e códigos de empresas, de um código de identificação indispensável ao seu crescimento, criando um ambiente afectivo em torno dela.
Inicia-se assim o marketing cultural de empresas, tendo como uma das bases de interesse a capacidade de conectar a marca da “empresa mecenas”, ao conteúdo artístico patrocinado.
7 . OS INCENTIVOS FISCAIS NO BRASIL
Interessante citar, conforme Oliveira e Mattos (1999, p. 81), que D. João VI, Rei de Portugal, Brasil e Algarves, foi é considerado o primeiro mecenas do Brasil. Coube a ele a iniciativa de implantar instituições importantes como a Biblioteca Nacional, o Jardim Botânico e a Impressão Régia, como o ensino superior em diversas áreas do conhecimento, além da contribuição para a contratação da nominada Missão Francesa, contemplada por monumentos arquitetônicos, dentre outras obras artísticas.
Foi necessário que D. Pedro II assumisse o poder em 1840, para que esta situação se revertesse se iniciasse uma colaboração mais efetiva entre a academia e o governo. O novo monarca havia recebido urna educação cunhada em moldes europeus e ocupava-se seriamente colo a questão do impei que as artes deveriam assumir na construção do imaginário da nação, refletindo, nesse contexto. também sobre a importância fundamental de seu mecenato. Assim, logo depois de sua maioridade. ele tenta o fomento e desenvolvimento de instituições como o Instituto Histórico Geográfico, a Academia de Belas-artes e o Colégio Pedro II como tarefa pessoal, participando ativamente de seus encontros e demais atividades.
Após D. João VI, ocupa D. Pedro II o posto de incentivador cultural, utilizando-se, além de seu prestígio pessoal, de recursos financeiros propiciados por um Brasil mais abastecido financeiramente, dentre aspectos externos e internos, a explosão do ciclo do café, segundo Oliveira e Mattos (1999, p. 81):
Aproveitando-se das novas condições criadas por esse interesse pessoal de D. Pedro II pelas artes, ex-professor da academia, Manoel Araújo Porto-Alegre, enviou-lhe, em 1853. uma carta sugerindo transformações urgentes naquela instituição, de forma a viabilizar as idéias. acalentadas pelo próprio monarca, de um estreitamento das relações entre a produção iconográfica gerida pela instituição e o governo". Os termos da carta expunham abertamente tal proposta de aproximação entre academia e Estado.
Um salto temporal remete-se à era do ex-Presidente do Brasil Getúlio Vargas, e para Almeida (1993, p. 25) apesar da significância do movimento modernista para a discussão em torno do estabelecimento da identidade cultural brasileira, é só a partir de 1930 que arte e poder convergem conceitualmente.
A Constituição de 1934, criada durante o Governo Vargas, inaugurou os dispositivos constitucionais de incentivo e proteção cultural como dispõe o seu artigo 148:
Art. 148 Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual.(BRASIL, 1934)
Iniciava-se, conforme o texto constitucional acima, a fase dos incentivos culturais no Brasil.
Segundo matéria online publicada em 20 Nov. 2012 pela Agência Senado, ocorre na década de 1980 a promulgação da Lei Federal Nº 7.505/1986, conhecida como “Lei Sarney”, sendo a primeira legislação federal de incentivo à produção cultural do Brasil baseada em incentivos fiscais através de abatimentos do Imposto de Renda, assunto a ser tratado oportunamente por este trabalho.
A Lei Rouanet é uma evolução da Lei Sarney (Lei 7.505/86), que até 1990 permitiu abater do Imposto de Renda doações (100%), patrocínios (80%) e investimentos (50%) em cultura.
O atual presidente do Senado, José Sarney, apresentou essa proposta pela primeira vez em 1972, em seu primeiro mandato como senador. Devido às dificuldades de implementar uma parceria público-privada em plena ditadura militar, não conseguiu aprovação. No ano seguinte tentou mais duas vezes. Em 1980, fez mais dois projetos similares, que também foram arquivados com a alegação de que eram inconstitucionais. Mas a ditadura militar acabou, e o primeiro presidente civil foi justamente José Sarney. Em 1986, 14 anos depois de apresentar pela primeira vez seu projeto, pôde enfim transformar sua ideia em realidade, por meio de decreto.[...]
Assim o texto legal da “Lei Sarney” dispunha sobre os percentuais possíveis das deduções fiscais em face ao fomento de operações de caráter cultural ou artístico:
LEI No 7.505, DE 2 DE JULHO DE 1986.
Dispõe sobre benefícios fiscais na área do imposto de renda concedidos a operações de caráter cultural ou artístico.
Art. 1º. O contribuinte do imposto de renda poderá abater da renda bruta, ou deduzir com despesa operacional, o valor das doações, patrocínios e investimentos inclusive despesas e contribuições necessárias à sua efetivação, realizada através ou a favor de pessoa jurídica de natureza cultural, com ou sem fins lucrativos, cadastrada no Ministério da Cultura, na forma desta Lei.
§ 1º Observado o limite máximo de 10% (dez por cento) da renda bruta, a pessoa física poderá abater:
I - até 100% (cem por cento) do valor da doação;
II - até 80% (oitenta por cento) do valor do patrocínio;
III - até 50% (cinqüenta por cento) do valor do investimento.
§ 2º O abatimento previsto no § 1º deste artigo não está sujeito ao limite de 50% (cinqüenta por cento) da renda bruta previsto na legislação do imposto de renda.
§ 3º A pessoa jurídica poderá deduzir do imposto devido, valor equivalente à aplicação da alíquota cabível do imposto de renda, tendo como base de cálculo:
I - até 100% (cem por cento) do valor das doações;
II - até 80% (oitenta por cento) do valor do patrocínio;
III - até 50% (cinqüenta por cento) do valor do investimento.
[…]
Observa-se que o referido diploma previa a possibilidade de a pessoa jurídica deduzir do seu imposto devido, limitado a 10% (dez por cento) de sua renda bruta, percentuais distintos com doações ou patrocínios, chegando a 100% (cem por cento) dos incentivos realizados.
Porém, o artigo 1º da Lei 8.034/1990, aprovada durante o governo do ex-Presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) suspende os incentivos fiscais recém concedidos pela “Lei Sarney” à patrocinadores, doadores ou investidores.
Art. 1º A partir do exercício financeiro de 1991, correspondente ao período-base de 1990: […].
III - ficarão suspensos, para pessoas jurídicas, os benefícios fiscais previstos […] na Lei nº 7.505, de 2 de julho de 1986, […], assim como o incentivo ao treinamento e aperfeiçoamento de recursos humanos para as atividades de informática [...];
§ 2º Os benefícios fiscais que, de acordo com o inciso III deste artigo, tiveram sua aplicação suspensa, serão devidamente reavaliados, no prazo em que durar a suspensão, de forma a possibilitar o encaminhamento de medidas corretivas cabíveis.
A Lei 8.028/1990, aprovada durante o Governo Collor, cria a Secretaria Nacional de Cultura e extingue o cargo de Ministro da Cultura, rebaixando assim o Ministério da Cultura a uma Secretaria.
Art. 1º A Presidência da República, é constituída, essencialmente, pela Secretaria de Governo, pela Secretaria-Geral, pelo Gabinete Militar e pelo Gabinete Pessoal do Presidente da República.
Parágrafo único. Também a integram:
[…]
c) como órgãos de assistência direta e imediata ao Presidente da República:
1. a Secretaria da Cultura;
[...]
Art. 25. Em decorrência do disposto nos arts. 1º, 17 e 24, são extintos os cargos: […]
II - de Ministros de Estado:
[…]
l) da Cultura;
[…].
Segundo Althoff (2008, p. 56), a sociedade brasileira assiste, à época, uma série movimentações políticas, sociais e econômicas:
Muitos retrocessos se deram nos vários âmbitos da vida nacional. O Ministério da Cultura foi rebaixado ao nível de secretaria e as instituições responsáveis pela proteção e preservação do patrimônio, SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), FNPM (Fundação Nacional Pró-Memória), o Conselho Consultivo da SPHAN, foram extintos e criou-se no seu lugar, o IBPC (Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural).
Ensina Olivieri (2004, p. 35):
Em março de 1990, o então Presidente Fernando Collor de Melo extinguiu todas as instituições culturais vinculadas ao Governo Federal e transformou o Ministério da Cultura em Secretaria diretamente vinculada à Presidência da República, situação que foi revertida ainda em seu governo, no final de 1992.[...]
Esta rápida viagem pela história recente da política cultural brasileira demonstra que o Estado esteve sempre presente no financiamento das produções culturais, alternando os papéis de mecenas, arquiteto, facilitador, até mesmo engenheiro […].
Conforme exposto, o Estado sempre esteve presente no financiamento das produções culturais, ora agindo como o próprio mecenas, ora como arquiteto, facilitador, e até mesmo engenheiro.
A Lei 8.490/1992 restabeleceu em 1992 o Ministério da Cultura no cenário do Executivo Nacional.
LEI N° 8.490, DE 19 DE NOVEMBRO DE 1992
Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios e dá outras providências.
[...]
Art. 14. São os seguintes os Ministérios:
[…]
IX - da Cultura;
[…]. (BRASIL, 1992)
Observa-se que o período compreendido entre a extinção e o restabelecimento do Ministério da Cultura foi curto.
8 . CONCLUSÃO
O presente artigo apresentou o modelo de mecenato inaugurado em 74 a. C. por Caio Mecenas, que defendia a tese de que poder e cultura eram indissociáveis e que cabia ao governo a missão de proteger a cultura. A legitimação do poder se dava através do cercamento e incentivo das expressões literárias e artísticas. Tal sistemática ganhou força através dos séculos, como nos mecenatos da igreja católica, que utilizava-se desse mecanismo para o fortalecimento, legitimação e demonstração de seu poder, através da contratação de grandes e genias artistas para materializar cenários. A burguesia, classe ascendente a reboque do mercantilismo, utilizou-se dos mecenatos como meio de inserir-se socialmente.
A separação de poder e mecenato se deu a partir do século XVII quando emergiu um movimento de artistas tidos como sérios, em oposição aos chamados de mecânicos, àqueles que se sujeitavam às encomendas dos poderosos mecenas contratantes. Tal movimento deu origem as primeiras escolas de belas artes e academias nacionais, elevando o artista à condição de gênio criador.
A primeira forma de mecenato incentivado com a participação efetiva do Estado como financiador de atividades culturais ocorreu no início do Séc. XX nos Estados Unidos da América. Tal iniciativa do governo americano inaugurou o mecenato de indivíduos, onde grandes e poderosos utilizavam-se dos incentivos tributários do governo para fundar Institutos e Museus como meio de enaltecer e perpetuar o nome de seus fundadores e mecenas, a exemplo da Fundação Ford e do Rockfeller Center.
O texto da Constituição de 1934 inaugura no Brasil os dispositivos de animação e fomento à produção artística e cultural brasileira, porém não dispunha de incentivos fiscais diretos.
Apenas no ano de 1986, através da Lei 7.505/1986 (Lei Sarney), o Brasil conheceu a primeira legislação federal de incentivo à produção cultural, baseada em incentivos fiscais propiciados ao patrocinador empresa ou pessoa física interessados em realizar patrocínios ou doações, deduzirem estes aportes do imposto de renda devido. Os incentivos da referida legislação permaneceram vigentes por pouco mais de 5 (cinco) anos, sendo estes substituídos pelos dispositivos trazidos da Lei 8.313/1991 (Lei Rouanet), vigente até hoje.
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