O androcentrismo na Ciência Jurídica, a política alternativa feminista de reconhecimento de Nancy Fraser e a concepção procedimental do direito de Habermas
Habermas afirma que o estado liberal e o do bem-estar social não deram conta de lidar com a questão dos direitos das mulheres. Na política liberal, pretendeu-se garantir às mulheres uma igualdade de oportunidades no âmbito do trabalho, prestígio social, nível de educação formal, poder político, etc. A “igualdade formal alcançada, no entanto, só fez evidenciar desigualdade de tratamento factual a que as mulheres estavam submetidas”[12].
A política socioestatal, em especial no direito social, do trabalho e de família, em reação às desigualdades evidenciadas na política liberal, instituiu “regulamentações especiais, relativas a gravidez ou maternidade, ou então a encargos sociais em casos de divórcio”. O delineamento dessas proteções, a depender de sua configuração, acaba por reforçar uma expectativa em relação à atuação da mulher na sociedade, atribuindo-lhe a responsabilidade por sua manutenção, que se expressa pelo cuidado com a casa e com os filhos gerados, quase que exclusivamente, sem a participação efetiva do homem[13].
Habermas explica ainda que,
“De um ponto de vista jurídico, uma razão estrutural para essa discriminação criada por via reflexa consiste nas classificações sobregeneralizantes que se aplicam a situações lesantes e pessoas lesadas. Pois as classificações ‘erradas’ levam a intervenções no modo de vida em questão, que o ‘normalizam’ e que permitem converter as almejadas compensações de perdas em novas discriminações, ou seja, permitem converter garantia de liberdade em privação de liberdade. Em áreas do direito feminista, o paternalismo socioestatal assume um sentido literal, já que o poder legislativo e a jurisdição se orientam conforme modelos tradicionais de interpretação, o que só corrobora estereótipos sobre a identidade de gênero ora vigentes.”[14]
Nancy Fraser relata que a luta da mulher ao longo da história é uma luta por redistribuição e reconhecimento, decorrente de uma injustiça econômica e uma injustiça cultural, que estão interligadas e se reforçam mutuamente[15]. A autora explica que
“Normas culturais enviesadas de forma injusta contra alguns são institucionalizadas no Estado e na economia, enquanto as desvantagens econômicas impedem participação igual na fabricação da cultura em esferas públicas e no cotidiano. O resultado é frequentemente um ciclo vicioso de subordinação cultural e econômica.”[16]
A questão de gênero tem dimensões político-econômicas que resultam em modos de exploração, marginalização e privação específicos de gênero que exige uma solução distributiva. Isso se explica no fato de que, para a mulher é designado, inicialmente, o ‘trabalho reprodutivo’ e o doméstico e, para o homem, o trabalho assalariado. No trabalho assalariado, aos homens são destinadas as melhores ocupações e salários e à mulher, o trabalho doméstico e outras profissões de ‘colarinho rosa’ mal pagas[17].
Além das dimensões político-econômicas, Nancy Fraser ressalta que gênero é também uma diferenciação cultural-valorativa, o que leva a problemática do reconhecimento. A principal característica de injustiça de gênero é o androcentrismo, ou seja, “a construção autoritária de normas que privilegiam características associadas com a masculinidade”, aliado ao sexismo cultural, que é a “desvalorização e depreciação aguda de coisas vistas como ‘feminina’”[18], que geram
“um rol de punições sofridas pelas mulheres, incluindo agressão sexual, exploração sexual e violência doméstica; trivialização, coisificação e humilhação esteriotípica nas representações da mídia; molestamento e depreciação em todas as esferas de vida quotidiana; sujeição a normas androcêntricas nas quais as mulheres aparecem como menos importantes ou desviantes e que contribui para prejudica-las, até mesmo na ausência de qualquer intenção de discriminação; discriminação atitudinal; exclusão ou marginalização em esferas públicas e corpos deliberativos; negação de plenos direitos legais e proteções iguais.” [19]
Segundo Alda Facio y Lorena Fries, citada por Rosa Maria de Oliveira, a sociedade patriarcal se caracteriza pelo androcentrismo, onde “os estudos, análises, investigações, narrações e propostas são enfocadas a partir de uma perspectiva unicamente masculina, e tomadas como válidas para a generalidade dos seres humanos, tanto homens como mulheres”[20].
Os discursos filosóficos da antiguidade clássica acerca da igualdade e da diferença, da democracia, da formação do Estado, da organização familiar, das relações interpessoais, da relação entre os gêneros, etc. revelam a influência do androcêntrico “sobre a justificação das desigualdades fundadas nas diferenças ‘naturais’, e permite a compreensão da origem dessa forma de racionalidade e de suas implicações nas relações sociais”[21].
A cultura androcêntrica é evidenciada, por exemplo, na obra de Immanuel Kant, Doutrina do Direito, onde na parte destinada ao direito privado discursa sobre “a maneira de se ter alguma coisa exterior como sua, com a possibilidade da posse jurídica de uma pessoa, enquanto parte dos bens de alguém, por exemplo: a posse de uma mulher, de uma criança ou de um escravo”[22].
“Kant reafirma que a prevalência da autoridade masculina não prejudica a noção de igualdade, pois é derivada da superioridade de gênero, expressamente admitida como natural em relação ao gênero feminino.”[23]
O androcentrismo e a questão da desigualdade de gênero podem ser encontrados em diversos diplomas infraconstitucionais brasileiros, como, por exemplo, no Código Penal de 1940, que tratava o estupro como um crime contra os costumes e não contra a pessoa, no antigo Código Civil de 1916, somente revogado pelo novo Código Civil que entrou em vigor em janeiro de 2003, e na Consolidação das Leis do Trabalho, no art. 384, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo TST. Claramente se nota a adoção da perspectiva masculina como central e o homem como paradigma da humanidade e de uma postura discriminatória em relação à mulher, o que restringe o alcance de elementos normativos contemporâneos e inovadores, como a Constituição de 1988 e os tratados e declarações internacionais que tratam dos direitos da mulher[24].
A convivência de elementos normativos contemporâneos com outros, androcêntricos e sexistas, que reforçam a discriminação de gênero, ainda que ausente a intenção de discriminar, revelam “tensões e conflitos valorativos”, “objeto da atividade do intérprete do Direito”, especialmente do Poder Judiciário e dos doutrinadores[25], que adotam, por vezes, posturas conservadoras que fomentam a “reprodução de estruturas e categorias jurídicas tradicionais, construídas há quase um século, o que tem inviabilizado a tarefa de reconstrução do pensamento jurídico à luz de novos paradigmas e novas interpretações”[26].
Além de inviabilizar a reconstrução do pensamento jurídico, as normas androcêntricas e sexistas, institucionalizadas no Estado e na economia, geram uma desvantagem econômica às mulheres que restringem sua voz, impedindo sua igual participação “na fabricação da cultura, em esferas públicas e na vida quotidiana”, cujo “resultado é um círculo vicioso de subordinação cultural e econômica”[27].
Superar o androcentrismo e o sexismo ainda presente na sociedade demanda uma mudança na economia política e nas avaliações culturais e suas expressões legais e práticas que reforçam a masculinidade e negam igual respeito às mulheres[28].
Para solapar a diferenciação de gênero, é necessária a “desinstitucionalização dos padrões androcêntricos de valor cultural que impedem a paridade de gêneros e a substituição desses padrões por outros que deem suporte a essa paridade”[29]. Essa é a política alternativa feminista de reconhecimento que Nancy Fraser defende, onde as mulheres devem ser vistas como parceiras plenas de interação social, “capazes de interagir com os homens como seus pares e iguais” e, para tanto, se requer o reconhecimento não da identidade feminina individual e sim da identidade feminina coletiva[30].
Para evitar estereótipos sobre a identidade de gênero ora vigentes, Habermas apresenta uma “concepção procedimental do direito, segundo a qual o processo democrático pode assegurar a um só tempo a autonomia privada e a pública”[31]. Para tanto, salienta que para a implementação de qualquer política pública, especialmente no que tange aos direitos subjetivos que visam garantir às mulheres a organização de forma particular e autônoma de suas próprias vidas, é necessária a promoção de discussões públicas com a participação dos afetados, de modo que as próprias mulheres articulem e fundamentem os aspectos relevantes para o tratamento igualitário ou desigual, delineiem a interpretação mais adequada, conforme o caso[32], assumindo a responsabilidade pelas questões que as afetam. Tal concepção do direito se baseia no princípio do discurso.
Para Habermas, é por meio do discurso racional e das “negociações reguladas pelo procedimento”, onde os indivíduos são autores e destinatários de seus direitos, que as leis se tornam legítimas[33].
Essa concepção procedimental apresenta uma alternativa à política liberal e de bem-estar social, onde as tentativas de proteção à mulher, realçando sua condição de igualdade em relação ao homem ou suas diferenças, acabaram por gerar sobre ela o ônus de assimilar as instituições existentes que tradicionalmente serviam aos interesses dos homens, e é uma maneira de sair do dilema igualdade/diferença, uma vez que nesse modelo esse dilema se torna irrelevante[34].
Outra vantagem dessa concepção sobre a interpretação de interesses conflitantes é que ela propicia uma mudança na natureza das próprias instituições, na medida em que a lei deixa de ser um veículo de promoção dos interesses masculinos reprodutores de desigualdades de gênero[35], propiciando alterações profundas quanto aos direitos das mulheres, decorrentes da maior inclusão e engajamento das mulheres no processo de organização e tomada de decisões na sociedade.
Conclusão
As injustiças culturais e sociais vivenciadas pelas mulheres no curso da história brasileira perduram até a atualidade. A política liberal propiciou uma igualdade entre homens e mulheres meramente formal que não trouxe a tão desejada justiça social. A política do bem-estar social, em reação às desigualdades de gênero salientadas pela política liberal, investiu em normas protetivas para a mulher, que acabaram por reforçar o papel a ela designado na sociedade: mãe, dona de casa e profissional que cumpre dupla jornada para atender sua “vocação primária”.
A análise da jurisprudência do STF e do TST demonstrou que o pensamento jurídico evoluiu no sentido de se reconhecer a igualdade de gêneros até certa medida, pois ainda predomina uma cultura androcêntrica, onde legislativo e judiciário se orientam de acordo com modelos tradicionais de interpretação que ratifica estereótipos de identidade de gêneros e gera para as mulheres desvantagem econômica e subordinação cultural.
A solução para superar o androcentrismo na cultura jurídica brasileira, a discriminação de gênero na sociedade e a distribuição de papéis no mercado de trabalho se encontra no reconhecimento da mulher com parceira plena de integração social, capaz de interagir com o homem em posição de igualdade, e no envolvimento das mulheres na construção de seus direitos, mediante discussões públicas, onde elas mesmas pronunciem e justifiquem os aspectos que consideram relevantes para o tratamento igual ou desigual e se responsabilizem pelas questões que as afeta, de modo que as leis, ainda que ausente qualquer intento discriminatório, não se transformem em mecanismos de opressão ou de diminuição de valor social.
Bibliografia
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SORIAL, Sarah. Habermas, Feminism, and Law - Beyond Equality and Difference? Ratio Juris. Vol. 24. nº 1. March 2011, p. 25–48.
Notas
[1] SANTOS. Sidney Francisco Reis dos. Mulher: sujeito ou objeto de sua própria história? Florianópolis: OAB/SC, 2006, p. 119.
[2] FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança na Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 39/40.
[3] SILVA, Salete Maria da. Constitucionalização dos direitos das mulheres no Brasil: um desafio à incorporação da perspectiva de gênero no direito. In: Interfaces Científicas - Direito. Aracaju. Vl. 01. N. 01. p. 59-69. Out. 2012, p. 61.
[4] IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Mensal de Emprego 2003-2011.
[5] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL. 1ª Turma. Recurso Extraordinário nº 7.421 – Distrito Federal. Rel. Designado Min. Philadelpho Azevedo, publicado em 17.4.1944. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=567649. Acesso em 30 de maio de 2013.
[6] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL. 2ª Turma. Recurso Extraordinário nº 69.811 – Rio Grande do Sul. Rel. Min. Xavier de Albuquerque, publicado em 18.3.1974. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=165757. Acesso em 30 de maio de 2013.
[7] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL. 2ª Turma. Recurso Extraordinário nº 85.416 – Rio de Janeiro. Rel. Min. Xavier de Albuquerque, publicado em 17.5.1976. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=179310. Acesso em 30 de maio de 2013.
[8] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL. 1ª Turma. Recurso Extraordinário nº 102.130-6 – Rio de Janeiro. Rel. Min. Soares Muñoz, publicado em 30.4.1984. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=194445. Acesso em 30 de maio de 2013.
[9] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL JUSTIÇA. 4ª Turma. Recurso Especial nº 988090/MS. Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 22.2.2010. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=8212591&sReg=200702189396&sData=20100222&sTipo=5&formato=PDF. Acesso em 1º de junho de 2013.
[10] BRASIL. TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Tribunal Pleno. IIN-RR-1540/2005-046-12-00.5, Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho, DJe 12.2.09. Disponível em: http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/inteiroTeor.do?action=printInteiroTeor&format=html&highlight=true&numeroFormatado=RR%20-%20154000-83.2005.5.12.0046&base=acordao&rowid=AAANGhAAFAAApBLAAW&dataPublicacao=13/02/2009&query=. Acesso em 30 de maio de 2013.
[11] BRASIL. TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. 4ª Turma. RR-5200-40.2003.5.22.0003, Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho, DJe 1º.4.2005. Disponível em: http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaunificada2/inteiroTeor.do?action=printInteiroTeor&format=html&highlight=true&numeroFormatado=RR%20-%205200-40.2003.5.22.0003&base=acordao&rowid=AAANGhAAFAAATniAAV&dataPublicacao=01/04/2005&query=. Acesso em 2 de junho de 2013.
[12] HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução: George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 236.
[13] Ob. loc. cit.
[14] HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução: George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 236.
[15] FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In SOUSA, Jessé (ed). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora UnB, 2001, p. 251.
[16] Ob. loc. cit.
[17] Ibidem, p. 259/260.
[18] Ibidem, p. 260.
[19] Ibidem, p. 260/261.
[20] OLIVEIRA, Rosa Maria Rodrigues de. Para uma crítica da razão androcêntrica: gênero, homoerotismo e exclusão da ciência jurídica. In: Revista Sequencia, nº 48, p. 41-72, jul. de 2004, p. 43.
[21] Ob. loc. cit.
[22] Ibidem, p. 51/52.
[23] Ibidem, p. 52.
[24] PIOVESAN. Flávia. Temas de Direitos Humanos. Ed. Saraiva. 4. ed. São Paulo: 2010, p. 296/298.
[25] Ibidem, p. 296.
[26] PIOVESAN. Flávia. Temas de Direitos Humanos. Ed. Saraiva. 4. ed. São Paulo: 2010, p. 298.
[27] FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In SOUSA, Jessé (ed). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora UnB, 2001, p. 260.
[28] Ibidem, p. 260/261.
[29] Idem. Políticas feministas na era do conhecimento: uma abordagem bidimensional da justiça de gênero. BRUSCHINI, Cristina e UNBEHAUM, Cristina (orgs.). São Paulo: Fundação Carlos Chagas/Editora 34, 2002, p. 72.
[30] Ob. loc. cit.
[31] HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução: George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 237.
[32] Ob. loc. cit.
[33] HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 145.
[34] SORIAL, Sarah. Habermas, Feminism, and Law - Beyond Equality and Difference? Ratio Juris. Vol. 24. nº 1. March 2011, p. 25–48, p. 26.
[35] Ob. loc. cit.