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O direito à saúde na Constituição Federal de 1988

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17/09/2013 às 07:07

Resumo:


  • O direito à saúde é assegurado pela Constituição Federal de 1988, destacando-se como um direito fundamental e recebendo uma proteção jurídica diferenciada.

  • A inclusão do direito à saúde na Constituição representou um avanço significativo, promovendo a universalização do acesso aos serviços de saúde e a conscientização da sociedade sobre a importância desse direito.

  • A falta de especificação clara do objeto do direito à saúde e dos princípios relacionados tem sido um desafio para a efetivação desse direito, exigindo ações concretas e normativas por parte do Estado para sua plena realização.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

É relevante o debate sobre o conceito da saúde e a abrangência desse direito, e deve ser realizado não apenas pelos juristas, mas por toda a sociedade brasileira.

Resumo: Dentre os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, o direito à saúde figura entre os mais debatidos nos âmbitos acadêmico, doutrinário e judicial. Após a inserção desse direito na Constituição Federal de 1988, a sociedade brasileira tem se conscientizado que, efetivamente, é a destinatária final da proteção conferida pelo Estado. Com efeito, a Constituição Federal de 1988 constitui-se marco histórico da proteção constitucional à saúde, de modo que, antes da sua promulgação, os serviços e ações de saúde eram destinados apenas a determinados grupos, os que poderiam, de alguma forma, contribuir, ficando de fora as pessoas quem não possuíam condições financeiras para custear o seu tratamento de forma particular e os que não contribuíam para a Previdência Social. Não obstante a proteção constitucional ao direito à saúde, a ausência de especificação do objeto desse direito e de definição dos princípios constitucionais relacionados à saúde tem dificultado a concretização desse direito fundamental.

Palavras-chaves: Direito à saúde. Constituição Federal de 1988. Sistema Único de Saúde.

Sumário:Introdução; 1- A saúde na Constituição Federal de 1988; 2 - O caminho da universalização dos serviços de saúde; 3 - A Assistência terapêutica integral no SUS; 4 –Financiamento da saúde: apontamentos sobre o mínimo constitucional; Conclusão.


Introdução

O presente artigo tem o escopo de analisar a saúde sob a ótica da Constituição Federal de 1988. De início, pretende-se abordar o conceito de saúde trazido pela Constituição Federal, partindo-se para o estudo sobre as principais diretrizes constitucionais envolvendo a saúde. Ao final, tratar-se-á sobre a previsão do mínimo constitucional no financiamento da saúde como mais uma garantia constitucional para efetivação desse direito fundamental.


1 -A saúde na Constituição Federal de 1988

O direito à saúde foi inserido na Constituição Federal de 1988 no título destinado à ordem social, que tem como objetivo o bem-estar e a justiça social. Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988, no seu Art. 6º, estabelece como direitos sociais fundamentais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância[1].

Em seguida, no Art. 196, a Constituição Federal de 1988 reconhece a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Dentre os direitos sociais, o direito à saúde foi eleito pelo constituinte como de peculiar importância[2]. A forma como foi tratada, em capítulo próprio, demonstra o cuidado que se teve com esse bem jurídico. Com efeito, o direito à saúde, por estar intimamente atrelado ao direito à vida, manifesta a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana.

A saúde, consagrada na Constituição Federal de 1988 como direito social fundamental[3], recebe, deste modo, proteção jurídica diferenciada na ordem jurídico-constitucional brasileira[4].

Ao reconhecer a saúde como direito social fundamental[5], o Estado obrigou-se a prestações positivas, e, por conseguinte, à formulação de políticas públicas sociais e econômicas destinadas à promoção, à proteção e à recuperação da saúde.

A proteção constitucional à saúde seguiu a trilha do Direito Internacional[6], abrangendo a perspectiva promocional, preventiva e curativa da saúde, impondo ao Estado o dever de tornar possível e acessível à população o tratamento que garanta senão a cura da doença, ao menos, uma melhor qualidade de vida.

O conceito de saúde evoluiu, hoje não mais é considerada como ausência de doença, mas como o completo bem-estar físico, mental e social do homem. Contudo, o debate sobre o direito à saúde ainda segue no sentido do combate às enfermidades e consequentemente ao acesso aos medicamentos. Em última análise, há de se concordar com as palavras de Schwartz[7], para quem o escopo do direito sanitário é a libertação de doenças.

A importância de delimitar o tema exsurge quando se tem em vista que a Constituição Federal, no Art. 196, adotou o conceito amplo de saúde ao incumbir o Estado do dever de elaborar políticas sociais e econômicas que permitam o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.

A par de assegurar o direito à saúde, a Constituição Federal de 1988 não delimitou objeto desse direito fundamental, não especificando “se o direito à saúde como direito a prestações abrange todo e qualquer tipo de prestação relacionada à saúde humana”[8].

Discute-se se o Estado, em seu dever de prestação dos serviços de saúde, obriga-se a disponibilizar o atendimento médico-hospitalar e odontológico, o fornecimento de todo tipo de medicamento indicado para o tratamento de saúde, a realização de exames médicos de qualquer natureza, o fornecimento de aparelhos dentários, próteses, óculos, dentre outras possibilidades.

Para Ingo Sarlet[9] é o Legislador federal, estadual emunicipal, a depender da competência legislativa prevista na própria Constituição, quem irá concretizar o direito à saúde, devendo o Poder Judiciário, quando acionado, interpretar as normas da Constituição e as normas infraconstitucionais que a concretizarem[10]. Com a indefinição do que seria o objeto do direito à saúde, o legislador foi incumbido do dever de elaborar normas em consonância com a Constituição Federal de 1988.

Sabe-se que a aplicação da norma constitucional depende intrinsicamente de procedimentos a serem executados pelo Estado, bem como criação de estruturas organizacionais para o cumprimento do escopo constitucional de promover, preservar e recuperar a saúde e a própria vida humana.

Há, portanto, um claro dever do Estado de criar e fomentar a criação de órgãos aptos a atuarem na tutela dos direitos e procedimentos adequados à proteção e promoção dos direitos.

Como bem acentua Robert Alexy[11], “as normas de organização e procedimento devem ser criadas de forma que o resultado seja, com suficiente probabilidade e em suficiente medida, conforme os direitos fundamentais.” Do mesmo modo, orienta Ingo Sarlet,

Se os direitos fundamentais são, sempre e de certa forma, dependentes da organização e do procedimento, sobre estes também exercem uma influência que, dentre outros aspectos, se manifesta na medida em que os direitos fundamentais podem ser considerados como parâmetro para a formatação das estruturas organizatórias e dos procedimentos, servindo, para além disso, como diretrizes para a aplicação e interpretação das normas procedimentais.[12]

Ainda sobre a íntima vinculação entre direitos fundamentais, organização e procedimento, pontua Ingo Sarlet que “os direitos fundamentais são, ao mesmo tempo e de certa forma, dependentes de organização e do procedimento, mas simultaneamente também atuam sobre o direito procedimental e as estruturas organizacionais”[13]. Significa dizer que, ao mesmo tempo em que os deveres de proteção do Estado devem concretizar-se mediante normas administrativas e com a criação de órgãos destinados ao cumprimento da tutela e promoção de direitos, a extensão e limites dessas normas e órgãos são impostos pela própria Constituição.

Na linha dos autores citados, Konrad Hesse[14] defende que a organização e o procedimentopodem ser considerados o único meio de alcançar um resultado conforme aos direitos fundamentais e de assegurar a sua eficácia. Do outro lado, é direito do cidadão

obter do Estado prestações positivas, as quais, pela importância que detém, ultrapassam o campo da discricionariedade administrativa para uma inafastável vinculação de índole e força constitucionais, de modo que as pautas de atuação governamental estabelecidas no próprio seio da Lei de Outubro, jamais poderão ser relegadas a conceitos de oportunidade ou conveniência do agente público, eis que não podem transformar-se em mero jogo de palavras, pois, como visto, são indispensáveis à manutenção do “status” de dignidade da pessoa humana[15].

No que toca ao direito à saúde, foram inseridos, no próprio texto constitucional, relevantes matizes da dimensão organizatória e procedimental. A Constituição Federal de 1988, nos Arts. 198 a 200, atribuiu ao Sistema Único de Saúde a coordenação e a execução das políticas para proteção e promoção da saúde no Brasil.

A Constituição Federal de 1988 não se limitou a prever a criação de uma estrutura organizacional para garantir o direito à saúde, indicou, ainda, como seria atuação desse órgão administrativo e os objetivos que deveria perseguir, conferindo o esboço do que seria o Sistema Único de Saúde. Mesmo com a previsão constitucional, os procedimentos para o adequado funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como as atribuições específicas dos órgãos, só puderam ser concretizadas a partir da elaboração das Leis específicas da Saúde.

Nesse propósito, foi criada a Lei Federal 8080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as atribuições e funcionamento do Sistema Único de Saúde, bem como a Lei Federal 8142, de 28 de dezembro de 1990, que trata sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde.

Há procedimentos do SUS que são veiculados por meio de regulamentos, decretos, portarias, especificados no capítulo a seguir. Essas normas infralegaisdevem adequar-se à moldura constitucional que impõe a observância dos procedimentos à efetivação dos direitos fundamentais.

Desse modo, integra o chamado direito sanitário não apenas a Constituição Federal de 1988 e leis específicas atinentes à saúde, mas também as portarias e protocolos dos SUS, sendo imperioso que todas as normas atendam à finalidade constitucional do direito à saúde.

Cabe ao Estado, por ser o responsável pela consecução da saúde, a regulamentação, fiscalização e controle das ações e serviços de saúde.Desse modo, o amplo acesso aos medicamentos, por integrar a política sanitária, insere-se no contexto da efetivação do direito à saúde, de modo que as políticas e ações atinentes aos produtos farmacêuticos devem sempre atender ao mandamento constitucional de relevância pública.

A Constituição Federal de 1988, em seu Art. 198, estabelece como diretrizes do Sistema Único de Saúde (i) a descentralização, com direção única em cada esfera de governo, (ii) o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais e (iii) a participação da comunidade.

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Importante observar que as diretrizes do SUS não se esgotam nessas três diretrizes, porquanto ao longo da seção destinada à saúde observam-se alguns fundamentos desse direito, que servem de norte para a conduta da Administração Pública no tocante ao direito à saúde.

O presente tópico se dedicará aos pontos cujo conhecimento revela-se imprescindível ao estudo dos medicamentos do câncer, tais como a universalidade no acesso à saúde, a integralidade no atendimento, a descentralização dos serviços e ações de saúde e, por fim, o financiamento do SUS.

A universalidade não só constitui uma diretriz do Sistema Único de Saúde, mas também a base de toda a estrutura administrativa da saúde. A integralidade, por sua vez, relaciona-se sensivelmente com a política de fornecimento de medicamento, porque diz respeito à assistência terapêutica fornecida ao usuário do SUS. Em relação à descentralização dos serviços e ações de saúde e ao financiamento, apesar de serem analisados separadamente, há uma estreita interferência de um assunto sobre o outro, devendo-se analisar se a transferência de obrigações dá-se com o correspondente repasse financeiro em favor da saúde. É o que se verá nas linhas a seguir.


2 - O caminho da universalização dos serviços de saúde

Na primeira oportunidade em que mencionou o direito à saúde, a Constituição Federal de 1988 já apontou a diferença do tratamento dispensado a esse direito diferenciando-o da previdência social[16].

O que parece um detalhe, em verdade, é um importante marco histórico, porquanto, apenas após a Constituição Federal de 1988, foi reconhecido o direito de todos de obter os serviços e ações de saúde independentemente de contribuição, diferentemente do que ocorre no sistema de previdência social, essencialmente contributivo.

O estudo sobre a história da saúde pública revela o tratamento desigual a que esteve submetida a população brasileira, caracterizando-se pela ausente ou pouca intervenção do Poder Público e a restrição de serviços de saúde a determinadas classes sociais.[17]

O Sistema Único de Saúde substituiu o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), autarquia responsável pela saúde dos contribuintes da Previdência desde 1974, quando foi desmembrado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) até 1990, ano em que foi aprovada a Lei 8080, que implementou o Sistema Único de Saúde (SUS).

Importante salientar que os beneficiários da saúde eram apenas as pessoas que contribuíam com a Previdência Social, em regra, pessoas com vínculo empregatício. Aos excluídos da Previdência Social restava a prestação dos serviços de saúde apenas na forma preventiva, estando à mercê dos serviços de instituições filantrópicas de saúde para os demais serviços médicos.

A universalização dos serviços públicos de saúde foi resultado da influência do movimento sanitarista na Assembleia Constituinte de 1987. Um dos mais importantes atos políticos do chamado movimento sanitarista ocorreu entre 17 a 21 de março de 1986, em Brasília- DF, onde se realizou a VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), tendo discutido, dentre outros temas, a reformulação do sistema nacional de saúde pública, sobretudo, com a ampliação da cobertura e dos beneficiários dos serviços de saúde.

Após a VIII Conferência Nacional de Saúde, formulou-se o Sistema Unificado e Descentralizado da Saúde (SUDS) a partir de convênios entre o INAMPS e os Estados, esboço do Sistema Único de Saúde (SUS), trazido pela Constituição Federal de 1988.

O Sistema Único de Saúde (SUS), organização administrativa destinada à promoção da saúde pública brasileira, cujo acesso deve ser universal e igualitário, constitui-se como uma rede regionalizada e hierarquizada, organizando-se de acordo com as diretrizes estabelecidas pela própria Constituição Federal de 1988, consoante se registra a seguir:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade.

O princípio da universalidade não está expresso em dispositivo constitucional, mas é norma facilmente extraído do Art. 196 da Constituição Federal de 1988, que prevê o acesso universal às ações e serviços de saúde, o que possibilita o ingresso de qualquer pessoa no Sistema Único de Saúde (SUS).

Além de universal, o acesso deve ser igualitário, não devendo haver distinção em relação a grupo de pessoas, nem de serviços prestados.

Para que o acesso seja universal e igualitário, impõe-se a gratuidade dos serviços, porquanto não se pode considerar universal, serviço público que exija contrapartida pecuniária[18].

Para conseguir atender à população, o SUS conta com rede própria e contratada, sendo que a participação da iniciativa privada dá-se apenas de forma complementar, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fim lucrativo.

Consoante se lê no Art. 200 da Constituição Federal de 1988, as atribuições do SUS variam da competência fiscalizatória e de controle das atividades que envolvam a saúde, passando pela produção de medicamentos e insumos, preparação dos profissionaise a busca pela inovação na saúde.

Apesar de ter dado os contornos procedimentais do SUS, a Constituição Federal de 1988 reservou à Lei específica a regulamentação do modelo estabelecido para prestação do serviço de saúde pública.

Em obediência à norma constitucional, foi publicada a Lei Federal n. 8080/90, que trata da organização do SUS, bem como a Lei Federal 8142/90, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde, ambas formando a Lei Orgânica da Saúde.

A Lei Federal 8.080/90, em seu Art. 2º, reconhece a saúde como direito fundamental do ser humano, sendo do Estado o dever de prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

Em seguida, o Art. 5º estabelece os principais objetivos do SUS: (i) identificar e divulgar os fatores condicionantes e determinantes da saúde; (ii) formular política de saúde; (iii) promover, proteger e recuperar a saúde a partir de ações assistenciais e de atividades preventivas.

No tocante às atribuições do Sistema Único de Saúde, a Lei Federal 8.080/90 reitera os dispositivos constitucionais e acrescenta outras obrigações no Art. 6º, sendo que uma se destaca em razão da pertinência com este trabalho, a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, disposta no inciso I, alínea d, do mesmo artigo.

Destacam-se, ainda, os incisos VI e X, ambos incumbindo ao SUS a formulação da política de medicamentos e incentivo ao desenvolvimento científico e tecnológico na área de saúde.

A LeiFederal 8.080/90 trata, ainda, do financiamento da saúde, sendo este tema, posteriormente, objeto da Lei Complementar 141/2011, que será estudada em tópico específico. Antes disso, alguns apontamentos serão realizados sobre a assistência terapêutica integral no SUS e a descentralização na saúde, temas importantes por direcionarem a política pública de saúde no Brasil.


3 - A Assistência terapêutica integral no SUS

O termo “atendimento integral”, inserido na Constituição Federal como um dos princípios norteadores da saúde, foi emprestado da medicina integral que propunha uma conduta médica que não se reduzisse às dimensões exclusivamente biológicas, em detrimento das considerações psicológicas e sociais[19]. Segundo Ruben Araújo Matos[20], a noção de medicina integral foi adaptada ao Brasil no sentido de prevenção de moléstias com enfoque na saúde coletiva.

Com efeito, o Art. 198, II, da Constituição Federal de 1988 registra a importância das ações de prevenção quando determina que o atendimento integral deva dar prioridade às atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais.

O atendimento integralabrange apenas prestações exigíveis dos serviços do SUS, de caráter preventivo ou curativo, relacionadas a ações de promoção, proteção e recuperação da saúde.

Mesmo sendo fatores que influenciam e são importantes para saúde, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o lazer não devem ser considerados como ações e serviços de saúde a serem exigidos do SUS[21].

A propósito, o atendimento integral foi assegurado pelo Art. 198, II, da Constituição Federal de 1988, sendo definido pela Lei 8080/90, em seu artigo 7º, inciso II, como “conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”.

De se registrar que a Constituição Federal de 1988 e a Lei Federal 8080/90 não esclarecem quem deve ser considerado usuário do SUS e que ação pode ser reputada adequada.

Para Lenir Santos[22], a assistência integral somente é garantida àqueles que estão no SUS. Dessa feita, quem optou pela assistência privada, não poderia pleitear parcela da assistência pública, porque esta pressupõe a integralidade da atenção, devendo o paciente estar sob a terapêutica pública.[23]Nesse raciocínio, a assistência farmacêutica restringir-se-ia às pessoas que integralmente tenham optado pelo sistema público de saúde.

Do mesmo pensamento partilha Marlon Alberto Weichert[24], para quem o princípio da integralidade não confere, por si só, direito aos pacientes dos serviços privados de obter os insumos do SUS. Segundo entende,

As estruturas e as ações do sistema público são afetas aos usuários efetivos do SUS, que as acessam conforme regras e procedimentos específico. Assim, o usuário potencial do SUS que optou pela assistência sob uma relação jurídica de direito privado não é titular de pretensões subjetivas em relação ao sistema público naquele tratamento. [...]

É ao cidadão que acessou ao SUS para receber a assistência integral que se devem prestações de tratamento de todas as suas demandas. O SUS não está –como regra constitucional – obrigado a fornecer insumos isolados àqueles que optaram pelo uso de serviços privados. [25]

A noção de integralidade restrita apenas àqueles que estiverem utilizando o serviço público foi eleita pelo Decreto Federal nº 7.508, de 28 de junho de 2011, que regulamentou a Lei Federal 8080/90, para definir a assistência farmacêutica do SUS.

Art. 28.  O acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica pressupõe, cumulativamente:

I - estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS;

II - ter o medicamento sido prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de suas funções no SUS;

III - estar a prescrição em conformidade com a RENAME e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas ou com a relação específica complementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos; e

IV - ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do SUS.

§ 1º Os entes federativos poderão ampliar o acesso do usuário à assistência farmacêutica, desde que questões de saúde pública o justifiquem.

§ 2º O Ministério da Saúde poderá estabelecer regras diferenciadas de acesso a medicamentos de caráter especializado.

O Decreto Federal nº 7.508/11 condiciona o acesso de determinada pessoa à assistência farmacêutica à comprovação de que o usuário seja assistido do SUS. Contudo, essa ressalva não foi feita na Constituição Federal, nem na Lei Federal 8080/90, devendo ser tida como ilegal. Da mesma forma, não atende à finalidade constitucional.

A Constituição Federal de 1988 distingue bem a saúde da assistência social, prevendo, no Art. 203, que a assistência social será prestada a quem dela necessitar. Identificam-se apenas quanto à independência da contribuição à seguridade social.

No tocante ao direito à saúde, qualquer pessoa tem direito a obter os serviços do SUS, tenha ou não condições econômicas para arcar com os gastos da saúde de forma privada. Há quem contrate um plano privado de saúde, pagando-o com muito esforço por entendê-lo prioritário e quem possua contrato de assistência médica adquirida com incentivo financeiro do empregador, não sendo razoável negar a essas pessoas a assistência farmacêutica do SUS punindo-as por ter assistência médica privada, até porque a distinção não tem fundamento legal, sequer constitucional.

Em verdade, a Constituição Federal, em seu Art. 196, dispõe que a saúde é direito de todos e dever do Estado, não cabendo à Lei restringir a extensão desse direito fundamental. Do mesmo modo, não se autoriza interpretação que reduza o direito à saúde às prestações de saúde a apenas uma categoria de pessoas, as que estejam sendo atendidas pelos profissionais do SUS.

Além de não ter embasamento jurídico, a exclusão de que possui assistência médica dos serviços do SUS é medida sem propósito. Isso porque o SUS, quando atende beneficiário de assistência médica privada, poderá ser ressarcido das despesas subsequentes, conduta que tem lastro no Art. 35 da Lei n. 9.656, de 03 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, in verbis:

Art. 32.  Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde - SUS.

Com o objetivo de impugnar o dispositivo legal que permite o ressarcimento ao SUS pelas empresas operadoras de saúde, a Confederação Nacional de Saúde ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1931/98, contudo, a medida cautelar requerida foi negada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), não tendo havido, até o presente momento, o julgamento final da demanda[26].

Mesmo sem uma posição derradeira sobre o pedido de declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal que permite o ressarcimento ao SUS, há de se destacar que o STF tem entendido, em demandas individuais com o mesmo pedido, que não haveria inconstitucionalidade a ser declarada, estando autorizada a cobrança do ressarcimento pelo serviço prestado, pois medida visaria, a um só tempo, recompor o patrimônio público e impedir o enriquecimento sem causa[27].

O Decreto Federal n. 7.508/11 quanto à restrição da assistência farmacêutica a apenas os usuários efetivos do SUS revela-se inconstitucional, porque inova no ordenamento jurídico sem ter base legal e afronta o direito fundamental à saúde da população que necessita de assistência terapêutica.

Por se tratar de regulamento, o Decreto Federal n. 7.508/11 não pode restringir as possibilidades existentes na Lei Federal 8080/90, pois possui apenas a função de explicitar o teor da norma legal ou explicar didaticamente seus termos a fim de facilitar a execução da Lei[28]. Celso Antônio Bandeira de Mello adverte que

Opostamente às leis, os regulamentos são elaborados em gabinetes fechados, sem publicidade alguma, libertos de qualquer fiscalização ou controle da sociedade, ou mesmo dos segmentos sociais interessados na matéria. Sua produção se faz apenas em função da vontade, isto é, da diretriz estabelecida por uma pessoa, o Chefe do Pode Executivo, sendo composto por um ou poucos auxiliares diretos seus ou de seus imediatos. Não necessitar passar, portanto, nem pelo embate de tendências políticas e ideológicas diferentes, nem mesmo pelo crivo técnico de uma pluralidade de pessoas instrumentadas por formação ou preparo profissional variado ou comprometido com orientações técnicas ou científicas discrepantes. Sobremais, irrompe da noite para o dia, e assim também pode ser alterado ou suprimido.[29]

Em relação ao conteúdo, a integralidade deve ser interpretada de modo a incluir atividades de prevenção epidemiológica, como vacinação, além dos atendimentos e consultas médicas, cirurgias, internações e de assistência farmacêutica, incluindo fornecimento de medicamento e de outros insumos como próteses, dentre outros.

Para Mônica de Almeida Magalhães Serranoo atendimento deve ser adequado, independentementeda complexidade da doença ou do custo do tratamento, mesmo que seja necessário o fornecimento de medicamentos não incluídos na lista de remédios elaborada pelo SUS[30].

A assistência terapêutica integral, nos termos do Art. 19-M, inciso I, da Lei Federal 8080/90, consiste na dispensação de medicamentos, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença.

O usuário de serviço público de saúde tem direito a obter o tratamento integral para doença que lhe acomete,todavia o tratamento dispensado para sua enfermidade deve estar previsto em protocolo clínico e diretriz terapêutica, documento utilizado no SUS que estabelece os critérios para o diagnóstico da doença, bem como os medicamentos e posologias recomendadas com o fim de padronizar o atendimento médico, com condutas terapêuticas fundamentadas em estudos científicos.

Marlon Alberto Weichert[31] considera legítimos os protocolos e esquemas terapêuticos, contudo, adverte que a vinculação a esses protocolos deve ser relativa, porquanto, algumas vezes, a situação concreta do paciente recomenda alterações no tratamento não previstas no protocolo, tornando-se indispensável que os serviços de saúde tenham disponível um canal apto a analisar e aprovar prescrições de medicamentos que fujam ao padrão.

Para o autor citado[32], deve haver revisão por uma câmara técnica preparada para reanalisar o caso, sempre que for possível ao profissional do SUS responsável pelo atendimento do paciente concluir a necessidade de aplicação de um tratamento ou esquema terapêutico distinto do preconizado nos protocolos.

Parcela das demandas judiciais tem como causa a ausência de medicamento, nos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, para determinada moléstia ou indicação terapêutica inapropriada para o usuário.

A Administração Pública, nesse caso, deve individualizar o tratamento de saúde, justificando sua decisão em parecer de equipe médica. A relação oficial de medicamentos traz segurança e previsibilidade de gastos com a saúde, mas não pode servir de obstáculo ao atendimento integral.

Do mesmo modo, entendem Sueli Gandolfi Dallari e Vidal Serrano Nunes Júnior[33]:

É evidente que os órgãos responsáveis podem, e devem, criar padrões de atendimento, objetivando não só a econômica de recursos, como também o aperfeiçoamento das modalidades de atenção. Faz parte de qualquer grande estrutura, pública ou privada, um intento de racionalização do sistema, o que frequentemente se realiza por meio de padronizações de processos e expedientes. Todavia, como dito, a questão é de fundo e não de forma.  Assim, é evidentemente impossível que, por meio desses processos de padronização, o Poder Público venha a, direta ou indiretamente, limitar direitos que estejam enraizados na Constituição, especialmente o da saúde. admiti-lo constituiria autêntica burla a premissas essenciais do Estado de Direito, pois se concederia ao administrador público a possibilidade de anular um comando constitucional, o qual, além de reunido à norma fundante de nossa ordem jurídica, cuida, na espécie, de veículo de direitos fundamentais, quais sejam, o direito à vida e, especificamente, o direito à saúde.

O tratamento fornecido pelo Sistema Único de Saúdedeve ser privilegiado, mas sem impedira Administração de decidir de forma diversa, caso se comprove que o tratamento oferecido não é eficaz em determinada situação[34].

Desse modo, decidiu o Supremo Tribunal Federal, com voto de relatoria do ministro Gilmar Mendes, concluindo que a ausência de Protocolo Clínico no SUS não pode violar o princípio constitucional da integralidade, não justificando a distinção entre as opções acessíveis aos usuários da rede pública e as disponíveis aos usuários da rede privada[35].

Encerra-se esse tópico sem esgotar a discussão sobre o princípio da integralidade. A discussão que permeia o atendimento integral do SUS seguirá em todos os capítulos dessa dissertação, uma vez que se constitui o âmago da presente pesquisa que é voltada ao acesso a medicamentos antineoplásicos para os pacientes de câncer.

A seguir outra importante diretriz do Sistema Único de Saúde, a descentralização das ações e serviços de saúde, cujo conhecimento é imprescindível à compreensão do organograma administrativo da saúde no Brasil.

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Sobre a autora
Elisangela Santos de Moura

Defensora Pública Federal Mestre em direito constitucional pela UFRN

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA, Elisangela Santos. O direito à saúde na Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3730, 17 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25309. Acesso em: 22 dez. 2024.

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