Resumo: O presente artigo tem o objetivo de propor formas de aplicação prática do instituto da prescrição das medidas socioeducativas, demonstrando que a fixação de entendimento sumular favorável não se traduziu em pleno respeito ao microssistema previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente ou no atendimento das diretivas internacionais aplicáveis aos sujeitos especialmente protegidos pela legislação infanto-juvenil.
Palavras chave: prescrição; medidas socioeducativas; Estatuto da Criança e do Adolescente.
Introdução
É ordinária a constatação de que cada vez mais os adolescentes alvos da Justiça Especializada são cuidados, ou melhor, simplesmente processados, sem o completo respeito às garantias próprias e adequadas à sua condição de pessoas em desenvolvimento físico, mental e especialmente psíquico.
Diversas são as falácias ditas, ouvidas e infelizmente até oficializadas em termos oficiais durante a realização das atividades estatais correlacionadas, quando da apuração de atos infracionais. Ora se indica a segregação da liberdade e, conseqüentemente da convivência familiar e social, como “necessária” medida “protetiva”, ora se utiliza dessa e de outras privações de direitos à título supostamente “profilático”. Mas, acima de tudo, comumente não se medita por mais do que alguns segundos quanto aos efeitos da imposição desmesurada das medidas sócio-educativas.
Quais as razões, então, desta ausência de limites?
Tal constatação, que deveria restar abolida pela vigência plena da lei federal nº 8.069/90, pelos vetores da Constituição Federal e por aquilo que nos obrigamos em Tratados Internacionais de o que o Brasil é signatário, no entanto, acaba por ser justificada pela própria e pretensa aplicação do sistema de proteção integral. Uma contradição que em raros momentos de lucidez é trazida à ordem do dia pelos operadores do Direito.
Com efeito, não se ignora que a sistemática estatutária tem contornos diferenciados, os quais nem sempre podem ser mesclados, ou até confundidos, com os de outros ramos jurídicos diversos. Entretanto, essa leitura torna-se essencialmente duvidosa ao nos depararmos com institutos protetivos, mesmo que indiretos, das garantias gerais de qualquer processado perante o Poder Judiciário.
É neste diapasão que o estudo das consequências práticas trazidas pelo enunciado da súmula nº 338 do Superior Tribunal de Justiça mostra-se relevante, mormente porque, a despeito de afirmar certo limite à ação estatal, a partir da aplicação de regras penais nos processos socioeducativos (prescrição), não define em que medida tal limitação da pretensão deve ser aplicada e, ainda, em que extensão a enunciada intersecção de um instituto estranho ao espírito do microssistema estatutário deve ser balizada.
1 NOTAS DA EVOLUÇÃO ESTATUTÁRIA: PRÉVIO ENTENDIMENTO DA MUTAÇÃO DE PARÂMETROS NORMATIVOS
A lei federal nº 8069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente – surgiu no cenário jurídico brasileiro rompendo as características enunciadas nas legislações anteriores que visavam tratar da prática de infrações penais por menores inimputáveis na esfera penal.
Antes de sua edição vigia a doutrina da situação irregular, admitida pelo Código de Menores – lei federal nº 6697, de 10 de outubro de 1979 – o qual preconizava pretenso “direito dos menores infratores”, denominando de delinquência a conduta antissocial manifestada durante o desenvolvimento dos infantes. Como se percebe, sem qualquer preocupação aparente com a condição diferenciada daquele que cometia uma infração em tenra idade e com o desenvolvimento psicossocial incompleto.
A então denominada situação irregular nada mais era do que a classificação de “menores infratores” pela difusão da ideia de que teria havido a “opção” pela vida marginal e delinquencial.
Para tanto, partia-se do pressuposto de que a todos eram oferecidas as mesmas oportunidades de crescimento e de desenvolvimento sócioeconômico, restringindo-se a análise dos casos à esfera subjetivo-psicológica do “menor”, sem questionar-se acerca dos reais motivos da prática ilícita.
Os infratores eram nada mais do que objetos de um procedimento sindicante, minimizando-se, por efeito, suas garantias e seus direitos como ser humano ímpar, merecedor de tutela diferenciada, mesmo que de forma disfarçada.
Foi apenas com a Constituição Federal de 1988 que passou-se a abordar o cuidado da criança e do adolescente dando-lhe cores que se coadunaram àquelas há tempos explicitadas e esmiuçadas por diversos diplomas internacionais há muito vigentes e assumidos pelo Brasil. Mencionada proteção especial, por exemplo, já era objeto da Declaração de Genebra de 1924, a qual determinava “a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial”.
No mesmo sentido, mas posteriores, foram a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, do ano de 1948 (Paris), a qual enunciava o “direito a cuidados e assistência especiais” e, também, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de São José - Costa Rica, de 1969), que manifesta em seu artigo 19 que “Toda criança tem direito às medidas de proteção que na sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado”.
Seguindo essa esteira, nas palavras de ANTONIO FERNANDO DO AMARAL E SILVA e de MUNIR CURY[1], “Ainda mais recentemente, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude – Regras de Beijing (Res. 40/33 da Assembléia-Geral, de 29.11.85); as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil – Diretrizes de Riad (Assembléia-Geral da ONU, novembro/90); bem como As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade (Assembléia-Geral da ONU, novembro/90), lançaram as bases para a formulação de um novo ordenamento mundial no campo do Direito e da Justiça, possível para todos os países, em quaisquer condições em que se encontrem, cuja característica fundamental é a nobreza e a dignidade do ser humano criança.”
A aclamada doutrina da proteção integral passou, assim, a ser o foco da questão infanto-juvenil, mas o tratamento dispensado aos “menores infratores” pela legislação brasileira em curso já não pairava à mesma altura dos valores constitucionais e internacionalmente apontados.
Nesse cenário de verdadeira revogação implícita da legislação em vigor, é que o novo texto infraconstitucional foi desenvolvido.
2 PREMISSAS DA RESPONSABILIDADE INFRACIONAL
Toda normatização dos modelos de conduta definidos em legislação criminal, sejam eles enunciados de crime ou de contravenção, traz reflexos aos sujeitos do processo socioeducativo dentro da respectiva faixa de idade e segundo o sistema sancionatório próprio do Estatuto da Criança e do Adolescente[2].
Nesse sentido, os artigos 103 a 105 e 112 da Lei, estabelecem parâmetros para o aplicador do Direito delimitando a atuação estatal e definindo os contornos do que será tido como ato infracional, além das medidas cabíveis às crianças e aos adolescentes em cada situação[3].
Tanto aqueles enquadrados etariamente como crianças, como os demais sob o título de adolescentes, são, dessa forma, objetos da tutela responsabilizadora desse microssistema legislativo, de acordo com as premissas tipificadoras das leis penais.
Criança, na acepção jurídica do termo, é toda pessoa que tenha até 12 anos de idade incompletos.[4] A estas, no teor da norma do artigo 105[5] da lei federal nº 8.069/90, serão aplicadas as medidas previstas em seu artigo 101[6].
Tais medidas, denominadas de proteção, são as únicas possíveis de imposição às crianças. Àqueles incursos na prática de ato equiparado à infração penal, por conseqüência, não serão endereçadas as medidas socioeducativas do artigo 122[7], tendo sido coerente o legislador ao afastar as medidas mais severas previstas nos incisos II a VI do artigo 112.[8]
Já no que toca ao tratamento socioeducativo dirigido aos adolescentes, pode-se afirmar que seu fim é a busca do melhor interesse, visto este de forma sistêmica e integrada a fatores sócioeconômicos, culturais, educacionais e até religiosos, para o atingimento do bem-estar social. O melhor interesse que o E.C.A. estabelece, portanto, é a prevenção, a qual permeia todos os institutos ali contidos.[9]
Prova exemplificativa é a possibilidade de aplicação cumulativa ou simples de medidas de proteção e medidas socioeducativas aos adolescentes infratores (artigo 98, inciso III, c.c. os artigos 105, 112, inciso VII, e 136, inciso VI, todos do E.C.A.).
Estando inserido na faixa de idade do artigo 2º da Lei, e considerado adolescente, estas as medidas sócio-educativas possíveis de serem aplicadas quando responsabilizado pela prática de ato infracional: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação se serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional.
É certo que as realidades são diversas e merecem tratamento compatível. Crianças e adolescentes, como agentes, têm cuidado legislativo próprio e específico, decorrentes dos vetores fundadores desse subsistema estatutário, relativamente dependente do sistema criminal:
Assim, quando a ação ou omissão venha a ter o perfil de um daqueles ilícitos, atribuível, entretanto, à criança ou ao adolescente (v. art. 2º), são estes autores de ato infracional com conseqüências para a sociedade, igual ao crime e à contravenção, mas mesmo assim, com contornos diversos, diante do aspecto da inimputabilidade e das medidas a lhes serem aplicadas, por não se assemelharem estas com as várias espécies de reprimendas. Para o crime e para a contravenção comina-se pena no seu mais puro significado. Já, para os atos infracionais, em relação à criança tem cabimento seu encaminhamento aos pais ou responsáveis, mediante termo de responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporários; matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; artigo em entidade e colocação em família substituta (art. 105, c/c o art. 101, do Estatuto). Os adolescentes sujeitam-se, entretanto, a advertência; obrigação de reparar o dano; prestação se serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional e qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI (art. 112).[10]
A atribuição para a aplicação das medidas específicas de proteção, às crianças infratoras é do Conselho Tutelar, segundo artigos 136, inciso I, c.c. os artigos 98 e 105 do Estatuto.
Já, à autoridade judiciária, foi dada a competência privativa para a administração das medidas de proteção aos adolescentes infratores, sem exclusão de sua atuação quanto àquelas delineadas às crianças.[11]
3 NATUREZA JURÍDICA DAS SANÇÕES ESTATUTÁRIAS
Mesmo objetivando a ressocialização e a reeducação dos infratores, as medidas previstas pelo E.C.A. também são inseridas dentre as espécies de sanção pela autoria de conduta ilícita pela teoria geral do direito[12].
É indiscutível que dentro do arcabouço axiológico em que inseridas, as medidas socioeducativas têm finalidade pedagógica-educativa como mote principal. Porém, da mesma forma que as penas criminais, não se discute terem elas caracteres secundários como a natureza impositiva, sancionatória e retributiva.[13] Aproximam-se, assim, também, de um fim preventivo especial, em que o objetivo é menos a coerção ou afirmação de vigência da norma e, mais, a tentativa de fazer com que o autor infracional não mais pratique condutas desregradas segundo normas de convivência da época.
Posicionamento este que não é afastado das modernas doutrinas penais, estando arraigado nas concepções fundamentadoras das penas, de cunho socializador.[14]
E mais: à toda responsabilização estatutária aplicam-se as garantias processuais inscritas nos artigos 110 e 111 do E.C.A.; as disposições referentes à aplicação das medidas mais restritivas (internação e semiliberdade – artigos 120, § 2º; 121; e 122) são valoradas também em se considerando a gravidade do ato praticado[15]; a imposição das medidas socioeducativas, com a ressalva discutível quanto à advertência[16], exigem prova da materialidade e da autoria para o desfecho condenatório[17].
Cabe destacar, no entanto, como o faz AMARAL E SILVA[18], que a imputabilidade e a responsabilidade são conceitos diversos, sendo certo que, por tal motivo, não podem ser as crianças e os adolescentes responsabilizados pela, e conforme, a Lei Penal.
Assim, mesmo que próximas em alguns pontos, não é possível se afirmar ser de igual semelhança a natureza das sanções penais e a das medidas socioeducativas.
A despeito de operarem em uma linha paralela a das sanções criminais, uma vez que decorrem de ilícitos equiparados às infrações desta ordem, o foco das normas estatutárias é o sujeito por elas tutelado, não sua culpabilidade ou sua imputabilidade[19]. Tanto o é que são as necessidades pedagógicas, e não as circunstâncias do crime, que norteiam fundamentalmente desde a escolha até a imposição das medidas possíveis.[20]
Dizer-se, por efeito, que a determinação coercitiva de instrumentos socioeducativos como resultado de um ilícito abarcado pelo Estatuto seria uma punição, equivaleria a esvaziar os objetivos traçados pela Constituição Federal e tratados internacionais, reproduzidos na lei federal nº 8069/90, em favor da proteção integral – não punição - das pessoas em desenvolvimento.[21]
4 O ENUNCIADO Nº 338 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E OS FUNDAMENTOS PARA A APLICAÇÃO DA PRESCRIÇÃO EM PROCESSOS PELA PRÁTICA DE ATO INFRACIONAL: PERDA DO DIREITO DE AÇÃO E NÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA
Apesar do posicionamento fixado pelo enunciado nº 338 do Superior Tribunal de Justiça, a aplicação da prescrição, com seu regramento penal, aos autores de atos infracionais, não se traduz como causa extintiva da punibilidade.
Ora veja. Nenhuma ação estatal em um Estado Democrático de Direito calcado na dignidade do ser humano, pode ser tida como ilimitada. Parâmetros devem ser observados visando objetivos constitucionais expressos e dirigidos aos jovens em conflito com a lei.
Não sendo meta legal ou constitucional a punição segregatória da liberdade, mas sim a adequação social das criança e dos adolescentes, por vias educativas e pedagógicas, no mesmo caminho deve ser conduzida a atividade jurisdicional especializada.
Dizer-se, então, que a prescrição penal merece aceitação nos processos infanto-juvenis resume-se a aplicação de parâmetros temporais estabelecidos nos diplomas legais correspondentes, sem que se perca o foco estatutário e se desnature seu cunho protetivo. Opção que se mostra consentânea à lacuna e omissão legislativa até hoje existente, em pleno beneficiamento daqueles indicados no artigo 2º da lei federal nº 8.069/90.
Há, por sua vez, quem entenda que diante do lema maior do trato estatutário seria inviável a previsão sumular da limitação penal, devendo ser apreciada, caso a caso, a necessidade pedagógica de cada infrator mesmo após a passagem de grande lapso temporal.[22]
Porém, deixar ao alvedrio atemporal do Estado - ou demasiado longo em se tratando de pessoas em desenvolvimento - a imposição de medidas limitadoras de direitos implica a desconsideração de garantias mínimas dos cidadãos, deixando crianças e adolescentes como Dâmocles, sob a espada de uma jurisdição dionísica.
Assim, não se compreende que tais conclusões estejam acomodadas no seio da ordem constitucional brasileira e dos vetores entendidos aplicáveis aos infratores infanto-juvenis, como se passa a demonstrar.
4.1 GARANTISMO
A principal característica do direito protetor, qual seja o privilégio do interesse das crianças e dos adolescentes, não pode ser tida como suficiente para garantir todos os direitos fundamentais dos infratores.
O escopo principal do Direito da Criança e do Adolescente é a proteção integral. Porém, esse objetivo só é atingido por meio dos princípios-garantia do respeito à condição peculiar da pessoa em processo de desenvolvimento e da prioridade absoluta no atendimento aos seus direitos[23].
Segundo Márcio Thadeu Silva Marques[24], “A novel denominação, de Justiça de Menores para Justiça da Infância e da Juventude, representou bem mais que mera renovação de nomenclatura, mas uma real ruptura de uma estrutura baseada em um paternalismo que, por melhor intencionado que fosse, sempre revestia-se de uma natureza arbitrária, por ser concentradora e baseada em idiossincráticas posições, como anota o Desembargador Amaral e Silva: ‘a Lei nº 8.069/90 criou mais que uma Justiça. Ela estabelece o estado democrático de direito numa esfera em que estava ausente desde a nossa formação histórica. Ela aboliu o arbítrio e o subjetivismo, consagrando o Direito e dignificando a Justiça.”
Segue o autor dizendo que “(...) o que se tem é a cidadania infanto-juvenil como integrante basilar do princípio da proteção integral que, deste modo, não poderá extrapolar as raias do garantismo, como política asseguradora dos direitos civis da pessoa humana, ainda que em período de maturação física, psicológica e emocional.”[25]
Por sua vez, a Constituição de 1.988 é marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direito e garantias fundamentais. A Lei Maior marca o rompimento com o regime autoritário do período ditatorial e introduz avanço extraordinário na consolidação das garantias e direitos fundamentais, tornando-se o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos na história legislativa brasileira.[26]
Desde seu preâmbulo, verifica-se a instauração de um Estado Democrático de Direito “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)”.[27]
E o principal fundamento alicerce do Estado Democrático de Direito no Brasil é a dignidade da pessoa humana, como se vê no artigo 1º, inciso III, da C.F. Colocou-se tal princípio, portanto, como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional e legal.[28]
Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).[29]
Neste diapasão, CELSO DELMANTO[30] observa que a prescrição é instituto fundamental no Estado Democrático de Direito, destacando, entre seus motivos, o fato de conferir segurança jurídica ao cidadão, vedando, assim, que seja ele perseguido por tempo indeterminado; impõe ao Estado que efetivamente se movimente em sua atividade jurisdicional, em prol da própria sociedade; e, a perda da finalidade retributiva, preventiva e ressocializadora com o decurso do tempo.[31]
A prescrição é vista, sob esse prisma, como instrumento real de controle das atividades do Estado, adequando-as às necessidades e fins das penas e demais sanções de sua alçada.
Por via transversa, a imprescritibilidade seria nada mais do que a clara demonstração da incapacidade Estatal, e de seus agentes, em seus misteres de executar a lei, sancionando o responsável por práticas ilícitas dentro de prazo razoável e útil ao apenamento.
O modelo do estatuto propõe, dentro de um contexto processual essencialmente garantista, um adolescente mais ativo, capaz, reconhecido como um cidadão com direito a não ficar indefeso diante do poder estatal.
O modo como foi concebido o procedimento de apuração de prática de ato infracional denuncia uma concepção garantista, particularmente projetada para a proteção do adolescente infrator na relação processual.[32]
Limites existem para todos, não sendo diferente a posição do Estado-Juiz em processos por atos infringentes à legislação. O devido processo legal, a devida pena e o devido tempo do processo são consectários lógicos do vetor da dignidade humana, fundamento de nossa ordem normativa.
4.2 PRINCÍPIO DA ISONOMIA
Não podem os jovens serem mais severamente responsabilizados do que os adultos, tal como prescreve o item 56 das Regras Mínimas das Nações Unidas Para Prevenção da Delinqüência Juvenil (Regras de RIAD).
56. Com vista a prevenir uma futura estigmatização, vitimização e criminalização de jovens, deve ser adotada legislação que assegure que qualquer conduta não considerada ou penalizada como um crime, se cometida por um adulto, não seja penalizada se cometida por um jovem.[33]
Não subsistindo possibilidade de apenamento para adulto frente à extinção de sua punibilidade pela prescrição, em relação ao jovem infrator, não há como se valer, o Juízo Especial da Infância e da Juventude, da prática infracional para imposição ou manutenção de quaisquer medidas impositivas.
Chegar-se-ia ao absurdo de restringir-se, em menor ou maior grau, a liberdade de um infrator juvenil que, se tivesse alguns meses ou dias a mais de vida, nunca receberia qualquer apenamento, por ter atingido a maioridade presumida na legislação.
Uma das funções dos direitos fundamentais ultimamente mais acentuada pela doutrina (sobretudo doutrina norte-americana) é a que se pode chamar função de não discriminação. A partir do princípio da igualdade e dos direitos e igualdade específicos consagrados na constituição, a doutrina deriva esta função primária e básica dos direitos fundamentais: assegurar que o Estado trate seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais. Esta função de não discriminação alarga-se a todos os direitos. (...).[34]
É no mínimo razoável, por isso, que a situação jurídica do infrator estatutário não se concretize de forma mais gravosa do que a de um adulto processado por uma mesma infração penal.
Sendo o contexto fático idêntico, pelo menos no que tange ao ilícito teórico, mas sendo praticado por pessoa em desenvolvimento e especialmente protegida, nada mais lógico do que beneficiá-la com a limitação preconizada.
4.3 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Pelo princípio da proporcionalidade ou da “justa medida”, meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcional em relação ao fim.[35]
Segundo CANOTILHO[36], os campos de aplicação do princípio em comento são, basicamente, decorrentes da proibição do excesso e do defeito. O primeiro, aplicado a todas as espécies de atos do poder público, em especial quando há discricionariedade na ação. O segundo, de maior relevância no tema tratado, “quando as entidades sobre quem recai um dever de proteção (Schutzpflitcht) adoptam medidas insuficientes para garantir uma proteção constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais, Podemos formular esta idéia usando uma forma positiva: o estado deve adoptar medidas suficientes, de natureza normativa ou de natureza material, conducente a uma protecção adequada e eficaz dos direitos fundamentais. A verificação de uma insuficiência de juridicidade estatal deverá atender à natureza das posições jurídicas ameaçadas e à intensidade do perigo de lesão de direitos fundamentais. (...)”
A efetividade dos direitos fundamentais passa, assim, pela conexão clara que existe entre o reconhecimento legal de determinada necessidade protetiva e o suprimento judicial de eventuais lacunas, em prol das garantias consagradas constitucionalmente.
Verdadeira constitucionalização de atos pelo Judiciário quando chamado a discutir questões não suficientemente resolvidas e que apresentam forte carga valorativa e de repercussão social.
Entrando especificamente no tema tratado, vemos que a imprescritibilidade é situação de exceção prevista expressamente na Constituição Federal, em seu artigo 5°, incisos XLII e XLIV.[37]
Consequentemente, o princípio da proporcionalidade não é erigido à sua real significação em não se reconhecendo a possibilidade de prescrição em processos socioeducativos.
A prescritibilidade, unicamente por não ter sido tratada explicitamente na legislação específica, não pode ser afastada por conta de conjecturas ligadas à discutível prevalência teórica na natureza jurídica dos atos infracionais. Nenhuma razoabilidade há em tal conclusão. Nesses termos, inclusive, já se decidiu:
“ECA. PRESCRIÇÃO. AÇÃO DO TEMPO NO DIREITO. PROTEÇÃO INTEGRAL. O ECA PROJETA O CONHECIMENTO DE UMA CATEGORIA ATÉ MAIS ABRANGENTE QUE A PRESCRIÇÃO, QUE É A 'PROTEÇÃO INTEGRAL'. ASSIM, SE O TEMPO FAZ SURGIR EFEITOS JURIDICOS EM TODOS OS RAMOS DO DIREITO, NÃO PODE SER DIFERENTE NA PROTEÇÃO DA CRIANCA E DO ADOLESCENTE. CASO DE REPRESENTAÇÃO POR LESÕES CORPORAIS LEVES QUE, PASSADOS MAIS DE TRES ANOS DO FATO, SEM REGISTRO DE ANTECEDENTES DO REPRESENTADO” (TJRS, Apelação Cível nº 10002616761, Rel. Des. Rui Portanova).
Conforme preceitua o artigo 227 da Carta Magna, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, os direitos ameaçados dos adolescentes – nestes obviamente incluídos os infratores - e com absoluta prioridade, dentre outros elencados, o direito à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Proteção especial que compreende garantias processuais quando atribuídos atos infracionais (artigo 227, § 3°, inciso IV, da C.F.) e obediência aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento em caso de privação da liberdade (artigo 227, § 3°, inciso V, da C.F.).
Um “constitucionalismo adequado”, ainda nas palavras de CANOTILHO, é o que se precisa empreender.[38]
Uma das providências possíveis e recomendáveis é a utilização dos princípios hermenêuticos e jurídicos para a revelação de normas que não são expressas por qualquer enunciado legislativo, possibilitando aos juristas, sobretudo aos juízes, o desenvolvimento, integração e a complementação do direito (Richterrecht, analogia júris). (...)”[39], como no caso da prescrição.
O que não pode permanecer é a atual situação de desrespeito a postulados constitucionais, com a desproporcionalidade de sancionamento entre jovens e adultos, equivalendo-se os sancionamentos correspondentes e suas consequências.