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Da inconstitucionalidade da súmula impeditiva de recursos:

uma análise crítica sobre parágrafo primeiro do Art. 518 do Código de Processo Civi

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3. FUNÇÃO JURISDICIONAL DO ESTADO E DIREITO À JURISDIÇÃO

3.1. FUNÇÃO JURISDICIONAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Antes de tratar da função estatal de “dizer o direito”, mister pontuar o que vem a ser Estado, como também o poder que legitima a sua atuação nas esferas administrativa, legislativa e jurisdicional.

O Estado é caracterizado, segundo Jellinek, citado por Dias em sua obra, como fenômeno ou construção social e como formação jurídica, para quem a noção social do Estado representa “[...]a unidade de associação dotada originariamente de poder de dominação e formada por homens assentados em um território.” Já sob a noção jurídica, o mesmo autor entende que o Estado é “[...] a corporação formada por um povo, dotada de um poder de um mando originário e assentada em um determinado território.” (JELLINEK apud DIAS, 2004, p.63)

Por sua vez, o poder, segundo a concepção de Dias, “pode ser compreendido como relação sóciopsicológica, fundada no efeito recíproco das ações daqueles que o detêm e o exercem e das ações de seus destinatários, ou seja, daqueles perante os quais o poder é exercido” (DIAS, 2004, p.62), donde “[...] existe poder sempre que alguém tem a possibilidade de fazer acatar pelos outros a sua própria vontade, afastando qualquer resistência àquilo que quer fazer ou obrigando os outros a fazer o que ele queira”. (CAETANO apud DIAS, 2004, p.64).

Assim, Dias leciona que “[...]a sociedade política é formada e organizada a partir do momento em que se institui o poder político” (DIAS, 2004, p.64), sendo que este poder é exercido pelo Estado sobre a sociedade e realizado em razão das normas produzidas segundo as previsões constitucionais, por membros investidos na função legislativa de forma democrática pelos seus destinatários, em virtude do qual as relações sociais serão disciplinadas de modo a garantir a ordem, a paz social e o bem estar de todos.

O poder político estatal será, portanto, exercido por atividades ou, mais especificamente, funções, onde serão exercidas conforme as atribuições previstas em lei, através de órgãos e agentes públicos ou políticos, segundo uma divisão tripartida de poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. Tais poderes, segundo Moraes,

“[...] são independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais e prevendo prerrogativas e imunidades para que bem pudessem exercê-las, bem como criando mecanismos de controles recíprocos, sempre como garantia da perpetuidade do Estado Democrático de Direito.” (MORAES, 2004, p.382)

Nesta linha, compete ao Poder Legislativo, detentor da função legislativa estatal,  estabelecer o direito positivo, ou seja, elaborar o ordenamento jurídico por meio da edição de leis de caráter geral e abstrato, visando disciplinar as relações do Estado com a sociedade, da sociedade com ela mesma e do Estado consigo mesmo. Este Poder também possui uma função fiscalizadora, competindo-lhe, conforme assevera Moraes, a “fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Poder Executivo.” (MORAES, 2004, p.388)

Já o Poder Executivo, responsável pela função administrativa estatal, tem por função precípua a chefia de estado, governo e administração, além de gerir e executar os negócios públicos mediante aplicação da lei de ofício pelos governantes, dentro dos seus próprios limites. 

Por fim, tem-se o Poder Judiciário, legitimado pela Constituição para exercer a função jurisdicional estatal, de modo que aplicará o ordenamento jurídico de forma isenta e impositiva, mediante a realização de um processo legal, toda vez que for provocado para solucionar uma hipótese controvertida. Em outras palavras, o Estado substitui a atividade e vontade das partes para compor a lide, onde, pela via do devido processo legal, proferirá um ato decisório final por meio de um agente público julgador devidamente investido no cargo.

Segundo a doutrina de Chiovenda,

[...] a função jurisdicional ou jurisdição, função própria e essencial do Estado moderno, é o poder de aplicar a lei em casos concretos. É função do Estado “que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva”. (CHIOVENDA apud DIAS, 2004, p.78)

A função jurisdicional é exercida através da aplicação das normas dentro de um sistema processual legalmente constituído e consubstanciado na Constituição da República. Esta aplicação das normas é chamada de jurisdição e visa à “realização e pacificação da justiça”, objetivos estes apontados por Cintra, Grinover e Dinamarco, para quem:

A pacificação é o escopo magno da jurisdição e, por conseqüência, de todo o sistema processual (uma vez que todo ele pode ser definido como a disciplina jurídica da jurisdição e seu exercício). É um escopo social, uma vez que se relaciona com o resultado do exercício da jurisdição perante a sociedade e sobre a vida gregária dos sues membros e felicidade pessoal de cada um. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2004, p.24)

Por outro lado, Gonçalves entende que a jurisdição

[...] se organiza para a proteção de direitos e das liberdades, asseguradas na ordem jurídica, contra o ilícito, e ilícito (sic), em qualquer campo do Direito, é a inobservância da conduta normativamente valorada como devida, cuja ocorrência na prática, se se admitir a liberdade do reino humano, não estará fora da espera do possível. (GONÇALVES, 1992, p.55)

Una e indivisível, a jurisdição representa atividade-dever do Estado prevista na Constituição da República, atividade e dever que não se resumem somente no ato pronunciativo do direito em favor ou desfavor de quem o pleiteia, mas na garantia de um processo instaurado e desenvolvido sob o prisma do devido processo constitucional, ou seja, um processo realizado em função da isonomia, do contraditório, da ampla defesa, do juízo natural, da fundamentação lógica dos provimentos jurisdicionais e do direito ao recurso, sendo esta uma concepção essencialmente extraída do Estado Democrático de Direito.

Destarte, a função jurisdicional somente se opera nestes termos se (e somente) for pautada nas bases do Estado Democrático de Direito donde, segundo a doutrina de Dias, “[...] resulta da articulação dos princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, cujo entrelaçamento técnico e harmonioso se dá pelas normas constitucionais.” (DIAS, 2004, p.102) Isto ocorre porque

[...] a democracia, atualmente, mais do que forma de Estado e de governo, é um princípio consagrado nos modernos ordenamentos constitucionais como fonte de legitimação do exercício do poder, que tem origem no povo, daí o protótipo constitucional dos Estados Democráticos, ao se declarar que todo o poder emana do povo (por exemplo, parágrafo único, do art. 1º da Constituição Brasileira; arts. 3º e 10º da Constituição Portuguesa; e art. 20 da Lei Fundamental de Bonn, como era conhecida a Constituição da República Federal da Alemanha). (DIAS, 2004, p.102)

Por sua vez, atrelado ao princípio democrático encontra-se o Estado de Direito, em virtude do qual, segundo a doutrina de Malberg, citado pelo mesmo autor,

[...] é aquele que, a um só tempo, no seu ordenamento jurídico, prescreve regras relativas ao exercício do poder pelo Estado e assegura aos indivíduos, como sanção dessas regras, o poder jurídico de atuarem perante um órgão jurisdicional, com o propósito de obterem a anulação ou a revogação dos atos estatais que as tenham infringido. Completa o autor seu pensamento, sublinhando que, para se realizar o Estado de Direito, é indispensável que as pessoas disponham do direito de ação em face do Estado, provocando a jurisdição, com o fito de impugnarem os atos estatais, quaisquer que sejam, causadores de lesão aos seus direitos individuais. (MALBERG apud DIAS, 2004, p.96/97)

Nesse sentido, conclui-se que o Estado Democrático de Direito subdivide-se em dois pontos fundamentais, “o Estado limitado pelo direito e o poder político legitimado pelo povo”, sendo esta última premissa a idéia fundamental de democracia, conforme doutrina de Canotilho, para quem, citado por Dias, destaca que

[...] tal como a vertente do Estado de direito (sic) não pode ser vista senão à luz do princípio democrático, também a vertente do Estado democrático (sic) não pode ser entendida senão na perspectiva do Estado de direito”, ou seja, “tal como só existe um Estado de direito democrático, também só existe um Estado democrático de direito, isto é, sujeito a regras jurídicas [...]. (CANOTILHO apud DIAS, 2004, p.102)

Sendo assim, Coelho Nunes observa que o paradigma do Estado Democrático de Direito

[...] se legitima mediante procedimentos balizados pelos direitos humanos e pelo princípio da soberania do povo, garantindo que os pressupostos comunicativos dos sujeitos de direito sejam assegurados, a fim de manter tanto sua autonomia privada quanto sua autonomia pública. (COELHO NUNES, 2003, p.159)

Todavia, a função jurisdicional deve ser prestada pelo Estado segundo o devido processo constitucional, haja vista ser a jurisdição um direito fundamental garantido a todo cidadão pela Constituição da República, cujos princípios e demais disposições legais limitarão esta manifestação de poder do Estado a ser exercida em nome do povo, se prestando como instrumento de pacificação social. Nesta linha, observa Leal:

A jurisdição é atividade estatal subordinada aos princípios e fins do Processo, sequer o Processo deve ser pensado “à luz da Constituição”, porque é o Processo à luz da Constituição. Também não é a jurisdição que permite a participação popular no poder ou enseja justiça ao cidadão, como ensina Bidart, pois tais conteúdos são de direito fundamental constitucionalizado, não decorrem da generosidade ou habilidade jurisdicional. (LEAL, 2005a, p.79)

Portanto, a jurisdição operada no Estado Democrático de Direito, segundo Baracho, representa o “aprimoramento da Justiça e sua democratização levam à proteção jurisdicional dos interesses individuais, sociais, difusos e públicos em geral.” (BARACHO, 1999, p.97). Assim, cabe ao Estado, no exercício da função jurisdicional, promover e garantir que a prestação jurisdicional seja realizada por um processo constitucionalizado, devendo as normas previstas no direito positivo serem aplicadas mediante procedimento realizado em contraditório, garantida a simétrica paridade entre as partes interessadas.

3.2. DO DIREITO DE ACESSO À JURISDIÇÃO

Tendo em vista que o Estado é estruturado pelos preceitos constitucionais, cujas funções – dentre as quais e especialmente a jurisdicional – são regidas por leis propostas, discutidas, votadas e aprovadas pelos representantes do povo, quais sejam os legisladores, tem-se por direito de cidadania o pleno o acesso à jurisdição para aqueles que dela necessitam.

A Constituição da República Brasileira confere ao cidadão o acesso ao serviço público jurisdicional, especialmente no artigo 5º, incisos XXXV, LIV e LV, que tratam de alguns “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” , quais sejam:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito;

[...]

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

[...].

Como o artigo 5º da Constituição encontra-se inserido no “Título II”, os mencionados direitos são garantias fundamentais que devem ser asseguradas pelo Estado não somente no início da atividade jurisdicional, mas durante todo o curso processual até o efetivo término da lide. Isto quer dizer que a palavra “acesso” não é aqui considerada somente como “ingresso” (FERREIRA, 1988, p.6), mas como a garantia de uma prestação jurisdicional realizada sob a observância do devido processo constitucional, isto é, observando-se a inafastabilidade do controle jurisdicional, o contraditório, a ampla defesa e o direito ao recurso. 

Isto quer dizer que o acesso à jurisdição é um direito fundamental que tem o jurisdicionado desde o início da provocação (propositura da ação) até o trânsito em julgado do provimento final, o que se presume a realização do amplo debate durante o curso processual, o esgotamento dos meios de prova nos prazos legais, a insurgência contra os atos decisórios que porventura tenham prejudicado uma das partes e, consequentemente, o pronunciamento devidamente fundamentado tanto em primeira instância quanto na segunda quanto aos argumentos – razões – apresentados pelas partes.

Por outro lado, engloba também o conceito de acesso à jurisdição a questão da justiça gratuita, por meio do qual o jurisdicionado que é “necessitado” no sentido legal torna-se isento do pagamento de custas para a realização de determinados atos processuais, bem como a assistência judiciária que, por meio da Defensoria Pública, fornece serviço advocatício gratuito nos termos da Lei 1.060/50.

Nestas linhas, Baracho entende que “o direito à tutela jurisdicional assenta-se como princípio supremo de ordenamento constitucional, que assegura a todos a solução de controvérsias.” (BARACHO, 1999, p.94)

Não obstante, o direito à jurisdição pressupõe a realização de um serviço público em prazo razoável e sem dilações indevidas, sem as quais podem acarretar em prejuízos para o jurisdicionado e frustração quanto à realização do seu pleito. Deste modo, a solução que se pretende obter com o ato decisório final deve ocorrer em tempo hábil para que haja efetividade na prestação jurisdicional.

Contudo, o termo “prazo razoável” não significa “aceleração” do trâmite processual em detrimento dos direitos do jurisdicionado, conforme observa Dias:

Advirta-se, porém, que a exigência normativa de se obter a decisão jurisdicional em tempo útil ou prazo razoável, o que significa adequação temporal da jurisdição, mediante processo sem dilações indevidas, não permite impingir o Estado ao povo a aceleração dos procedimentos pela diminuição das garantias processuais constitucionais (por exemplo, suprimir o contraditório, proibir a presença de advogado no processo, eliminar o duplo grau de jurisdição, abolir a instrumentalidade das formas, restringir o direito das partes à produção de provas, dispensar o órgão jurisdicional do dever da fundamentação).

[...]

A restrição de quaisquer das garantias processuais, sob a canhestra e antidemocrática justificativa de agilizar ou tornar célere o procedimento, com o objetivo de proferir decisão jurisdicional em prazo razoável, é estimular o arbítrio, fomentar a insegurança jurídica e escarnecer da garantia fundamental do povo ao devido processo legal, em suma, deslavada (sic) agressão ao princípio constitucional do Estado Democrático de Direito. (DIAS, 2004, p.117)

Discorrendo em trabalho científico sobre o tema “acesso à justiça”, Oliveira desenvolve uma análise acerca da Lei 9.099/95, instituidora dos Juizados Especiais Cíveis, e da conseqüente supressão do advogado, dos recursos e do contraditório – neste particular, a questão do “juiz engajado” – com a criação desta lei.

O autor, em linhas semelhantes à doutrina de Dias, apresenta severas críticas quanto à natureza jurídica dos referidos Juizados e da falta de assento constitucional, para quem os considera uma “justiça pobre” e não uma “justiça para os pobres” (OLIVEIRA, 2003, p.104), segundo terminologia utilizada Cappelletti e Garth. Deste modo, conclui:

A maior virtude do processo é a de ser o espaço mais adequado e mais democrático para a discussão e solução dos litígios: nele as partes têm acesso aos meios de prova aptos a demonstrar seus argumentos, nele as partes estão em simétrica paridade e nele as decisões são ilustradas por conteúdos de racionalidade. (OLIVEIRA, 2003, p.103)

Feito este breve registro acerca do trabalho realizado pelo autor, mesmo porque não é o objeto do presente estudo a análise dos Juizados Especiais, o que se pode extrair para o bojo desta pesquisa são dois pontos que merecem reflexão: o juiz engajado ou virtuoso e a irrecorribilidade de certas decisões judiciais, que, a propósito, será tratada de forma mais detalhada em tópico específico.

Conforme preleciona a doutrina de Fazzalari, o processo é um procedimento realizado em contraditório por meio do qual as partes interessadas atuarão, em simétrica paridade, para construir o provimento final. Este provimento é ato imperativo que será prolatado pelo juiz consoante tudo o que foi produzido durante o curso processual. Entretanto, entende Oliveira (2003) que as partes devem ser protegidas no processo da possível atividade “sagrada” ou “virtuosa” do juiz, haja vista ser esta uma concepção antiga do processo e completamente dissonante com o Estado Democrático de Direito. No processo contemporâneo, a participação das partes deve substituir a “tutela” do agente julgador, haja vista que, segundo Leal,

(...) não se pode aceitar, na atualidade do direito brasileiro, a versão trivial e emotiva de que o processo é instrumento da jurisdição e que esta, em se fazendo pelo juiz, tenha escopos meta-jurídicos que possam medir-se pelo sentimento de justiça do julgador e não pelos comandos e paradigmas da lei. (LEAL, 2005b, p.42)

Na mesma linha, Gonçalves sustenta que:

A valoração da justiça do direito material não é finalidade do processo. Pode comparecer na sentença, que o processo prepara, mas nos limites dos deveres da jurisdição, porque o exercício do poder jurisdicional, como o exercício de qualquer poder, se faz dentro da disciplina da lei, e o poder jurisdicional não é mais o poder de Salomão, mas sim o poder de se cumprir o dever da jurisdição. (GONÇALVES, 1992, p.177)

Em concepção diametralmente oposta, a doutrina de Dinamarco:

Tutela jurisdicional é o amparo que, por obra dos juízes, o Estado ministra a quem tem razão num processo. Tutela é ajuda, proteção. É jurisdicional a proteção outorgada mediante o exercício da jurisdição, para que o sujeito beneficiado por ela obtenha, na realidade da vida e das relações com as coisas ou com outras pessoas, uma situação mais favorável do que aquela em que antes se encontrava. [...] Sem resultados o processo civil careceria de legitimidade. (DINAMARCO apud NUNES, 2001, p.232)

Sem embargo, os excessivos “poderes” que são atribuídos aos juizes através da concepção tradicional-instrumentalista do processo, já que não são alterados ou diminuídos pelo legislador, devem, no mínimo, se submeter ao direito de interposição de recurso contra seus atos decisórios, o que não tem acontecido. Logicamente, não se pretende aqui defender a possibilidade “infinita” de insurgência contra os atos decisórios do juiz, mas sim da impossibilidade jurídica de proibição recursal, sob fundamento algum, por falta de assento constitucional. Ademais, a supressão de recurso ou de instância impede o pleno acesso à jurisdição, conforme o entendimento de Oliveira, para quem

[...] é impossível sumarizar o procedimento de forma tão radical que suprima as oportunidades para que as partes defendam seus argumentos e contradigam aquilo que é decidido pelo juiz. A existência de recursos é a maior demonstração de que o processo não é do juiz, mas das partes, tanto que elas podem recorrer dos atos do juiz e modificar-lhes o seu teor. (OLIVEIRA, 2003, p.101)

Portanto, a jurisdição deve se operar nos moldes do processo constitucionalizado, a fim de garantir o pleno acesso do cidadão à completa prestação jurisdicional, sendo-lhe resguardados os direitos ao advogado (incluindo-se aqui o defensor público) enquanto viabilizador da ampla defesa, bem como ao contraditório, à isonomia (simétrica paridade), à fundamentação das decisões judiciais e ao direito de recorrer (duplo grau de jurisdição). O Estado Democrático de Direito impede que função jurisdicional estatal seja “virtuosa”, “justa” ou “beneficente”, haja vista ser a jurisdição atividade-dever do Poder Público e direito fundamental a ser prestado de forma adequada, eficiente e nos termos da lei, conforme determina a Constituição da República.

3.3. PRINCÍPIOS BASILARES QUE INFORMAM A JURISDICÃO

Objetivando realçar os estudos que ora precedem e, sobretudo, contribuir para a fundamentação do resultado da presente pesquisa, mister analisar alguns princípios que não somente informam a jurisdição sob o prisma constitucional, mas também reforçam a necessidade de sua realização segundo o Estado Democrático de Direito.

Conforme a concepção de Oliveira, os princípios “decorrem de triunfos históricos da Humanidade e refletem o resultado de diversos embates que, não raras vezes, provocaram derramamento de sangue.” (OLIVEIRA, 2003, p.92)

Já a doutrina de Grau observa que os princípios vêm antes do próprio texto normativo, sendo que a sua importância para o sistema jurídico é imensurável, para quem é “tamanha, que da sua inserção no plano constitucional resulta a ordenação dos preceitos constitucionais segundo uma estrutura hierarquizada. Isso no sentido de que a interpretação das regras contempladas na Constituição é determinada pelos princípios (...).” (GRAU, 2003, p. 158)

Sob outra ótica, Bandeira de Mello entende que princípio

[...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá o sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico unitário. (BANDEIRA DE MELLO, 2006,  p.902/903)

Uma vez conceituado o princípio jurídico sob diferentes concepções, cumpre analisar alguns ora eleitos como essenciais para a conclusão do presente estudo, segundo a didática aqui adotada, por se apresentarem como os principais mandamentos nucleares do sistema normativo que rege a jurisdição estatal.

3.3.1. PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONAL

O direito à prestação jurisdicional ou, como preferem alguns doutrinadores, “tutela” jurisdicional, configura-se como premissa suprema do ordenamento constitucional, direito que assegura a todos cidadãos a solução das controvérsias mediante a observância do devido processo legal, havendo previsão expressa no artigo 5º, inciso LIV da Constituição da República.

O devido processo legal apresenta-se de modo abrangente e, sem dúvida, abarca toda a principiologia informadora do direito processual, sendo considerados de suma importância preceitos como: a ação e exceção, a imparcialidade do juiz, a igualdade, o pleno acesso à justiça, o contraditório, a ampla defesa, a oralidade, a persuasão racional do juiz, a fundamentação das decisões judiciais, a publicidade dos atos processuais, a lealdade processual, a economia processual, a instrumentalidade das formas e o duplo grau de jurisdição.

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Segundo a doutrina de Dias,

[...] a garantia fundamental do devido processo legal desponta como um bloco aglutinante e compacto de várias garantias ostentadas pelas partes litigantes em relação Estado, quais sejam: a) de amplo acesso à jurisdição, prestada em tempo útil ou lapso temporal razoável; b) do juízo natural; c) de contraditório; d) da plenitude de defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, aí incluído o direito ao advogado; e) da fundamentação racional das decisões jurisdicionais; f) de um processo sem dilações indevidas. (DIAS, 2004, p.199)

Inobstante, todos princípios mencionados representam garantias que têm as partes quando se encontram em juízo. Todavia, Cintra, Grinover e Dinamarco entendem que:

Garantias que não servem apenas aos interesses das partes, como direitos públicos subjetivos (ou poderes e faculdades processuais) destas, mas que configuram, antes de mais nada, a salvaguarda do próprio processo, objetivamente considerado, como fator legitimante da jurisdição. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2004, p.82)

Tal afirmação se mostra oportuna, eis que no bojo de um processo judicial os procedimentos devem ser realizados conforme uma concatenação lógica de atos, onde, segundo uma ordem normativa, vão se desenvolver em “dinâmica bastante específica” (GONÇALVES, 1992, p.102) para a preparação do provimento. Esta sistemática não só garante que haja o contraditório entre as partes, mas também a lisura e credibilidade do ato decisório prolatado mediante a realização de um devido processo legal.

Este princípio, portanto, denota a existência de um sistema normativo e a sua necessária aplicação no processo, a fim de garantir-lhe a legalidade, a justiça e a efetividade dos provimentos jurisdicionais.

Por outro lado, a existência deste sistema normativo pressupõe a ocorrência de um devido processo legislativo em seu nascedouro, ou seja, o Estado, por meio da sua função legislativa, deve elaborar o texto normativo segundo a seqüência de atos processuais previstos no artigo 59 e seguintes da Constituição, procedimentos estes que devem ser observados pelos órgãos legislativos em sua inteireza sob risco de inconstitucionalidade formal da lei ou do ato normativo por eles produzido. Desta forma, o devido processo legislativo precede ao devido processo legal, o que se torna uma conclusão lógica, tendo em vista o caminho de produção do texto normativo até sua efetiva publicação, bem como a inclusão deste no sistema para posterior aplicação no Poder Judiciário, sob a observância dos princípios outrora mencionados.

Neste contexto, Moraes destaca a importância deste princípio, pois:

O respeito ao devido processo legislativo na elaboração das espécies normativas é um dogma corolário à observância do princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente, uma vez que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de espécie normativa devidamente elaborada pelo Poder competente, segundo as normas de processo legislativo constitucional, determinando, desta forma, a Carta Magna, quais os procedimentos de criação das normas gerais [...]. (MORAES, 2004, p.544)

Considerando, portanto, que o devido processo legislativo é condição sem a qual o devido processo legal não se opera, Leal afirma que “a produção, a atuação e a aplicação do direito na democracia só se validam no espaço estatal discursivo do devido processo constitucional como lugar de sua legitimidade originária em suas vertentes dos devidos processos legislativo e legal.” (LEAL, 2002, p.139)

Assim, tendo em vista que o direito ao devido processo encontra-se inserido no âmago da Constituição da República, tem-se a imperiosa presença do devido processo constitucional “como fonte jurisdicional da judicação e direito-garantia das partes”, conforme entendimento de Leal, sendo esta uma terminologia mais adequada por abranger as vertentes do devido processo legislativo e o devido processo legal. Em outras linhas, o termo proposto pelo jurista engloba não apenas a legislação e o modo de sua criação e aplicação, mas, principalmente, toda a carga principiológica que a sustenta e lhe garante validade no direito.

O mesmo autor conclui:

Ora, se assegurado o process (sic) em texto democrático-constitucional, só nos restaria afirmar que o processo tem, na atualidade, como lugar devido de sua criação a Lei Constitucional (o devido processo constitucional como fonte de judicação e direito-garantia das partes), [...]. (LEAL, 2005a, p.66)

Nesse sentido, Belaunde afirma que “ em um sentido amplo, todos os Processos são constitucionais, desde que têm base na Constituição, e os mesmos se desenvolvem com os princípios assentados na Constituição.” (BELAUNDE apud BARACHO, 1999, p.122)

Deste modo, os princípios do devido processo legislativo e legal estão contidos no princípio magno do devido processo constitucional, conquistado democraticamente pela sociedade durante o curso da história do direito e concretizado na Constituição da República de 1988.

Em razão disso, Dias leciona que

[...] essa manifestação do poder do Estado, exercido em nome do povo, que se projeta no pronunciamento jurisdicional, é realizada sob rigorosa disciplina constitucional principiológica (devido processo constitucional), só podendo agir o Estado, se e quando chamado a fezê-lo, dentro de uma estrutura metodológica construída normativamente (devido processo legal), de modo a garantir adequada participação dos destinatários na formação daquele ato imperativo estatal, afastando qualquer subjetivismo ou ideologia do agente público decisor (juiz), investido pelo Estado do poder de julgar, sem espaço para discricionariedade ou utilização de hermenêutica canhestra, fundada no “prudente (ou livre) arbítrio do juiz”, incompatível com os postulados do Estado Democrático de Direito, com, ao contrário, até hoje e infelizmente, alguns doutrinadores supõem e apregoam . (DIAS, 2004, p.86)

Portanto, o devido processo constitucional garante que a jurisdição seja operada por procedimentos criados validamente pelo processo legislativo e, por sua vez, que o provimento judicial obedeça o processo legal e os preceitos que a ele acompanham.

3.3.2. PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO, ISONOMIA E AMPLA DEFESA

Segundo a tradicional Teoria Geral do Processo, o juiz deve se colocar no processo entre as partes e eqüidistante delas, dada a exigência legal de sua imparcialidade, bem como garantir a dialeticidade, de modo que as partes interessadas exponham as suas razões e contra-razões durante o curso processual, no tempo e modo que a lei determina.

Neste sentido, Theodoro Júnior observa que

[...] o principal conectário do tratamento igualitário das partes se realiza através do contraditório, que consiste na necessidade de ouvir a pessoa perante a qual será proferida a decisão, garantindo-lhe o pleno direito de defesa e de pronunciamento durante todo o curso do processo. Não há privilégios de qualquer sorte.

Embora os princípios processuais possam admitir exceções, o do contraditório é absoluto, e deve sempre ser observado, sob pena de nulidade do processo. (THEODORO JR., 2005, p.25)

Não obstante, a teoria fazzalariana do “processo como procedimento em contraditório” trouxe para a doutrina processual um estudo mais acurado do que vem a ser contraditório, conforme explanado em tópico anterior, ao defender que “o ‘processo’ é um procedimento do qual participam (são habilitados a participar) aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos: em contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar as suas atividades.” (FAZZALARI, 2006, p.118/119)

O contraditório, segundo leciona Fazzalari, se consubstancia numa estrutura dialética do processo, para quem:

Tal estrutura consiste na participação dos destinatários dos efeitos do ato final em sua fase preparatória; na simétrica paridade das suas posições; na mútua implicação de suas atividades (destinadas, respectivamente, a promover e impedir a emanação do provimento); na relevância das mesmas para o autor do provimento; de modo que cada contraditor possa exercitar um conjunto – conspícuo ou modesto, não importa – de escolhas, de reações, de controles, e deva sofrer os controles e as reações dos outros, e que o autor do ato deva prestar contas dos resultados. (FAZZALARI, 2006, p.119/120)

Este trecho da obra mencionada traz uma ampla conceituação para o que o jurista italiano chama de estrutura dialética, eis que além trazer à tona o significado do contraditório, chama para o estudo a necessária simétrica paridade (igualdade) entre os “contraditores” no processo, a ampla defesa que deve ser resguardada aos mesmos e a essencial fundamentação do provimento final pelo “autor do ato” jurisdicional – o juiz.

Na mesma linha doutrinária, Neves leciona que:

O princípio do contraditório implica a participação de pelo menos dois sujeitos, um interessado e um contra-interessdo, para utilizar a expressão do professor italiano, sobre os quais o ato final recairá. Mister ressaltar, ainda, que a estrutura processual é marcada, paralelamente ao princípio do contraditório, pela simétrica paridade dos interessados. (NEVES et al, 2007, p.244)

Sob outra ótica, a doutrina de Dias:

A esse desiderato, tem de estar qualquer processo plenamente ajustado à referida estrutura normativa (devido processo legal), como procedimento que se realiza em contraditório entre as partes, por exigência do devido processo constitucional, sem exceção de espécie alguma. Assim o é, porque o contraditório, uma das vigas mestras do processo constitucional, viabiliza a simétrica participação igualitária das partes destinatárias do pronunciamento jurisdicional decisório final (decisão, sentença, provimento) na fase procedimental da sua preparação, de sorte a influírem na sua construção, de forma favorável aos seus interesses discutidos em juízo. (DIAS, 2007, p.226 e 227)

Ao princípio do contraditório estão direitamente conectados os princípios da isonomia e da ampla defesa, eis que a atuação dos sujeitos interessados no processo deve ocorrer em contraditório, sob o lastro da isonomia, ou seja, igualdade temporal na discussão (simétrica paridade) para a formação do provimento final, bem como a ampla defesa processual, que supõe o direito ao Advogado e a produção de provas segundo os meios e prazos definidos em lei.

Nesta ordem, discorrendo sobre o princípio da isonomia, Leal entende que:

A isonomia, como princípio legal, autodiscursivo e legitimante de validade da instituição do devido processo constitucional, já impõe a igualdade procedimental a ensejar a execução de igualdades fundamentais de direitos dos desiguais e diferentes já decididos, como líquidos, certos e exigíveis, no plano da normatividade constituinte e, por conseguinte, protegidos pela invulnerabilidade do instituto da coisa julgada constitucional que, na democracia, é estabilizadora dos direitos fundantes da constitucionalidade democrática desde as etapas instituinte e constituinte de sua criação normativa até sua efetiva execução jurisdicional. (LEAL, 2005b, p.84)

Por sua vez, assim como a isonomia processual, a ampla defesa tem de ser oportunizada às partes no curso do processo, ainda que não haja o desejo de se manifestar, haja vista ser este um direito-garantia que as mesmas possuem diante do comando constitucional. Assim, os meios e prazos processuais devem sempre ser concedidos nos termos da lei, a fim de salvaguardar a defesa do sujeito processual no procedimento em contraditório.

Contudo, mesmo sendo considerados princípios constitucionais (art. 1º, II e III; art. 5º, caput, LV), o contraditório, a isonomia e a ampla defesa sofrem certa mitigação no que tange à medidas liminares requeridas em Tutelas de Urgência (cautelar e antecipatória), uma vez que estas são “medidas indispensáveis à eficácia e efetividade da garantia de acesso ao processo justo” (THEODORO JR., 2005, p.25) e devem ocorrer inaudita altera parte, ou seja, sem a manifestação da outra parte.

Esta é uma questão polêmica entre a doutrina processualista, bem como nos tribunais, visto que de um lado é defendido que o processo deve proporcionar eficácia e “a garantia máxima de acesso à justiça” (THEODORO JR., 2005, p.26) ao requerente, e, sob a outra ótica, entende-se que um mínimo de contraditório haveria de ser resguardado à parte requerida em observância ao direito de defesa e demais preceitos constitucionais.

Como não é o objetivo do presente trabalho aprofundar nesta questão, cumpre apenas observar que em um processo onde não é observado o devido processo legal e, sobretudo, o procedimento realizado em contraditório, não há como conferir legalidade ao provimento precedido de discrepância jurídica na atividade processual. Nesse sentido, Leal assevera que:

Processualmente, na democracia, é inconcebível uma desigualdade jurídica fundamental, porque, se tal ocorresse romper-se-ia com as garantias constitucionais do processo em seus princípios enunciativos do contraditório, isonomia e ampla defesa na produção, correição e aplicação do direito, inclusive do próprio direito processual. (LEAL, 2005b, p.80/81)

Inobstante, em manifesta contrariedade às “medidas sumarizadoras” do processo adotadas pelo Poder Público nos últimos anos, o mesmo jurista entende que tais medidas impedem o exercício do direito da defesa, para quem:

Há de ser ampla, porque não pode ser estreitada (comprimida) pela sumarização do tempo a tal ponto de excluir a liberdade de reflexão cômoda dos aspectos fundamentais de sua produção eficiente. É por isso que, a pretexto de celeridade processual ou efetividade do processo, não se pode, de modo obcecado, suprindo deficiência de um Estado já anacrônico e jurisdicionalmente inviável, sacrificar o tempo da ampla defesa que supõe a oportunidade de exaurimento das articulações de direito e produção de prova. (LEAL, 2005a, p.111/112)

Nesse sentido, a aceleração da atividade jurisdicional promovida pelo legislador infraconstitucional, através de substanciais alterações na lei processual como a supressão de instâncias, o impedimento ao direito ao recurso e o aumento dos “poderes” do juiz, nada mais representa senão flagrante afronta à Constituição da República e ao Estado Democrático de Direito, eis que o Estado, de forma imprudente e imediatista, vem transferindo para a população brasileira um problema de cunho estrutural que é de sua responsabilidade, exclusivamente.  

Portanto, os princípios do contraditório, isonomia e ampla defesa são preceitos constitucionais que devem ser resguardados aos sujeitos interessados no provimento judicial, sem os quais torna-se impossível, sob a ótica do processo constitucional, conferir a autoridade da coisa julgada para o ato imperativo final. Em suma, no Estado Democrático de Direito toda decisão judicial deve ser construída em um espaço dialético e processualizado, a fim de garantir tanto a segurança jurídica do ato, quanto a paz social – objetivo do processo judicial.

3.3.3. PRINCÍPIO DA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES

A função jurisdicional do Estado se opera mediante provocação, de modo que um sujeito faz valer o seu direito-garantia de ação ao deduzir pretensão em face de alguém. O processo realizar-se-á mediante procedimento em contraditório e em simétrica paridade entre as partes, procedimento este donde será realizada atividade preparatória, segundo uma “seqüência de normas, atos e posições subjetivas” (GONÇALVES, 1992, p.112) em razão do provimento, ato imperativo estatal que implica na conclusão de um procedimento ou até mesmo do processo, com o esgotamento da jurisdição. Nesta ordem, Dias entende que:

Na concretização da função jurisdicional, os pronunciamentos emanados dos órgãos jurisdicionais ou os chamados “provimentos”, sob influência da doutrina italiana, são atos estatais imperativos, que refletem manifestação do poder político do Estado, poder que jamais poderá ser arbitrário, mas poder constitucionalmente organizado, delimitado, exercido e controlado conforme as diretivas do Estado Democrático de Direito. (DIAS, 2005, p.150)

Em obra diversa, o mesmo jurista observa que “a fundamentação da decisão jurisdicional será o resultado lógico da atividade procedimental realizada mediante os argumentos produzidos em contraditório pelas partes, que suportarão seus efeitos.” (DIAS, 2004, p.147) Considerando, pois, que o procedimento se desenvolve segundo os princípios do contraditório, isonomia e ampla defesa entre os sujeitos interessados no processo e que a jurisdição atua conforme o devido processo constitucional, todos os atos judiciais decisórios deverão apresentar fundamentação, cabendo ao agente público julgador apresentar os motivos pelos quais foi concebida a sua decisão.

Não obstante a necessária fundamentação das decisões judiciais encontrar-se presente no Código de Processo Civil (art. 165 c/c art. 458), Código de Processo Penal (art. 381) e Consolidação das Leis do Trabalho (art. 832), esta ganhou status de preceito e garantia constitucional após a previsão expressa no artigo 93, inciso IX da Carta Magna:

Art.93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

[...]

IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

[...]

A motivação do provimento jurisdicional, para Baracho,

[...] é norma constitucional para a jurisdição e base para todas as decisões judiciais. Entende-se que a obrigação constitucional da motivação é condição mínima de efetividade do princípio da legalidade da atividade jurisdicional. A obrigação constitucional da motivação é subsidiária do dever jurisdicional da sujeição à lei. (BARACHO, 1999, p.95)

Deste modo, a motivação dos atos decisórios viabiliza o controle de constitucionalidade da função jurisdicional do Estado, mediante análise da correta (ou não) aplicação do ordenamento jurídico ao caso concreto. Isto impede que a decisão judicial seja, segundo Dias,

[...] abstrata, desordenada, desvairada, ilógica, irracional ou arbitrária, formulada ao influxo das “ideologias”, do “particular sentimento jurídico” ou das “convicções pessoais (= subjetivismos)” do agente público julgador, porque ele não está sozinho no processo, não é seu centro de gravidade e não possui o monopólio do saber. (DIAS, 2005, p.152).

Ademais, o provimento há de ser racional, principalmente, de modo que todo o caminho dialético percorrido pelas partes durante o iter procedimental deverá ser considerado e apreciado, segundo a lógica dos fatos e do direito (ordenamento jurídico) correlacionados à lide.

Segundo a doutrina de Real, citada por Bandeira de Mello,

(...) o dever de motivar é exigência de uma administração democrática – e outra não se concebe em um Estado que se declara “Estado Democrático de Direito” (art. 1º, caput) –, pois o mínimo que os cidadãos podem pretender é saber as razões pelas quais são tomadas as decisões expedidas por quem tem de servi-los. (REAL apud BANDEIRA DE MELLO, 2006, p.101)

Feitas tais considerações, é importante destacar que a motivação dos atos decisórios está diretamente relacionada com o duplo grau de jurisdição, tendo em vista que o objeto das razões recursais da parte recorrente pairam sobre os próprios fundamentos do ato decisório, visando,  deste modo, a sua reforma (total ou parcial) ou anulação perante órgão julgador hierarquicamente superior àquele prolator do ato decisório maculado por eventuais vícios, erros e impropriedades jurídicas.

Assim, inobstante existir recurso específico para corrigir ou “aclarear” decisões judiciais que apresentam omissão, obscuridade ou contradição nos fundamentos do julgador, qual seja, Embargos de Declaração, por imposição legal, deve o mesmo apresentar motivação detalhada acerca da formação do seu convencimento, o que possibilita o controle da constitucionalidade do ato, bem como “a possibilidade de melhor estruturação dos recursos eventualmente interpostos, proporcionando às partes precisa impugnação técnica e jurídica” (DIAS, 2005, p.160) e ao órgão julgador do recurso mais clareza e precisão para prolatar ato decisório em favor ou desfavor da parte recorrente.

Para o professor Baracho, princípios como o da motivação “facilitam o controle da aplicação judicial da lei. As partes devem conhecer, também, os motivos da decisão, para poder recorrer da mesma, circunstância que facilita o controle da sentença impugnada.” (BARACHO, 1999, p.96)

Portanto, os órgãos jurisdicionais do Estado têm o dever legal de fundamentar os seus atos decisórios, sendo este imperativo constitucional de garantia ao cidadão destinatário do ato que somente se revestirá de validade se for precedido de um devido processo constitucional.

3.3.4.  PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURIDIÇÃO

3.3.4.1.  BREVES ANTECEDENTES HITÓRICOS

No período da cognitio extra ordinem, foi criado em Roma o recurso da appellatio, “época em que o conhecimento e julgamento dos litígios se faziam diretamente pelo pretor que, por sua vez, também apreciava e julgava os recursos que hostilizassem suas decisões”, conforme ensina Leal (2005a, p.202). Havia também outra espécie de recurso: a supplicatio, segundo a qual o apelo “se fazia ao rei para invalidação das sentenças inapeláveis”, conforme lição do mesmo autor.

Com o passar do tempo, inúmeras alterações de cunho processual ocorreram, principalmente num contexto mais político que propriamente processual, como por exemplo no início do feudalismo, onde as decisões dos senhores feudais eram irrecorríveis. Por outro lado, com o surgimento dos grandes impérios no Período Medieval, tais decisões passaram a ser passíveis de revisão pelo imperador. Segundo Leal, “no século XVIII, com a Revolução Francesa e a reação contra a venalidade irrefreável da atividade judiciária, surgiu o duplo grau de jurisdição, atenuando a autocracia dos julgamentos solitários e intangíveis.” (LEAL, 2005a, p.202) Tal fato representou um marco importante para o processo que começava a se desvincular dos objetivos privatísticos dos grandes e poderosos, indo rumo à concepção do processo como um Direito Público, o que deduz um maior controle do Estado sobre as relações interpessoais.

À época do surgimento do duplo grau de jurisdição, inúmeros opositores se manifestaram contrariamente perante a Assembléia Nacional Constituinte, instalada após a Revolução Francesa. Mesmo diante de tal manifestação contrária ao duplo grau, Nery Júnior afirma que “[...] o Decreto de 1.5.1790 assegurou-o, prevendo recursos contra as sentenças dos juízes de primeiro grau, o que ficou definitivamente estabelecido na grande lei sobre a organização judiciária, de 16-24 (sic) de agosto de 1970.” (NERY JR., 2000, p.38)

Entretanto, segundo o mesmo autor, o ato constitucional de 24 de junho de 1793 “estabeleceu em seu art. 87 que as decisões da justiça civil eram definitivas, sem o cabimento de qualquer tipo de recurso ou reclamação” (NERY JR., 2000, p.38), sendo que o único recurso previsto era o de “cassação” que tinha apenas o condão de revogar as decisões judiciais, mas não de reformá-las.

Poucos anos depois, foi promulgada a Constituição Francesa em 22 de agosto de 1795 onde constou previsão expressa o duplo grau de jurisdição, “vigente até os dias de hoje, tanto em França quanto na maioria dos países ocidentais”, conforme leciona Nery Júnior (2000, p.38).

No Brasil, o duplo grau era garantido ilimitadamente pela Constituição Imperial de 1824, contudo, esta regra não foi adotada por nenhuma das posteriores Constituições, sendo que, atualmente, encontra alguma divergência doutrinária quanto ao seu respaldo constitucional, haja vista que alguns autores de concepção arcaica, com o devido respeito que lhes são resguardados, ainda defendem uma visão contrária a este princípio, o que limitaria o direito de recurso e, consequentemente, o devido processo constitucional.

3.3.4.2.PRINCÍPIO E GARANTIA CONSTITUCIONAL

Segundo a conceituação tradicional do duplo grau de jurisdição e acolhida por praticamente toda a doutrina, este é um princípio por meio do qual

[...] indica a possibilidade de revisão, por via de recurso, das causas já julgadas pelo juiz de primeiro grau (ou primeira instância), que corresponde à denominada jurisdição inferior. Garante, assim, um novo julgamento, por parte dos órgãos da jurisdição superior, ou de segundo grau (também denominada de segunda instância) [...].

O princípio do duplo grau de jurisdição funda-se na possibilidade de a decisão de primeiro grau ser injusta ou errada, daí decorrendo a necessidade de permitir sua reforma em grau de recurso. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2004, p.74)

Deste modo, o texto constitucional dispõe acerca da competência recursal dos órgãos jurisdicionais do Poder Judiciário, o que presume que o duplo grau de jurisdição está garantido nas hipóteses de insurgência contra decisões judiciais. Nesse sentido, Cintra, Grinover e Dinamarco observam que este princípio é acolhido pela generalidade dos sistemas processuais contemporâneos, eis que

[...] a própria Constituição incumbe-se de atribuir a competência recursal a vários órgãos da jurisdição (art.102, inc. II; art.105, inc. II; art.108, inc I), prevendo expressamente, sob a denominação de tribunais, órgãos judiciários de segundo grau (v.g., art.93, inc. III). Ademais, o Código de Processo Penal, o Código de Processo Civil, a Consolidação das Leis do Trabalho, leis de organização judiciária prevêem e disciplinam o duplo grau de jurisdição. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2004, p.75)

O duplo grau de jurisdição, conforme a concepção do “processo realizado como procedimento em contraditório” de Fazzalari e do “devido processo constitucional” de Leal, deve ser interpretado não apenas como um princípio previsto na Constituição da República, haja vista a “hierarquia” existente entre todos os princípios constitucionais que os processualistas tradicionais entendem existir, mas deve ser considerado como uma garantia que possui todo o cidadão de ter a possibilidade de revisão, pela via do recurso, dos atos decisórios que lhes forem desfavoráveis, sendo esta uma obrigação inclusa na atividade-dever que tem o Estado na prestação de uma completa atividade jurisdicional.

Ademais, cabe anotar que duplo grau de jurisdição está diretamente ligado artigo 5º da Constituição da República, mais especificamente nos incisos XXXV, LIV e LV, em virtude da qual a “lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”, sendo que em processo, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, e, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e ‘recursos’ a ela inerentes”.

Portanto, o duplo grau de jurisdição é uma garantia constitucional de todo jurisdicionado em litígio perante o Poder Judiciário, consoante a doutrina de Gonçalves, para quem “uma garantia não é uma imposição, é uma liberdade protegida, não pode ser coativamente oferecida e não se identifica como instrumento de sujeição. Garantia é liberdade assegurada.” (GONÇALVES, 1992, p.132) Para o mesmo autor, o controle dos atos decisórios judiciais não é apenas normativo, mas as partes podem também se insurgir contra os seus atos, sendo este “o profundo sentido do duplo grau de jurisdição como garantia de direitos processuais”, para quem:

O controle das partes sobre os atos do juiz é de suma importância e, nesse aspecto, a publicidade e a comunicação, a cientificação do ato processual à partes (que é, também, garantia processual) é de extrema relevância. Entretanto, as partes não se colocam em combate com o juiz, nem este em contraditório entre as partes. [...] As partes exercem o seu controle sobre ele, pelo remédio legal adequado à natureza do ato, mas esse controle se dará sempre através do pedido de pronunciamento do próprio Poder Judiciário, chamado a intervir para a proteção dos direitos processuais. (GONÇALVES, 1992, p.122)

Por sua vez, discorrendo sobre a garantia do duplo grau de jurisdição e sua guarida constitucional, Oliveira afirma que:

O princípio do duplo grau de jurisdição garante ao jurisdicionado que a sentença de primeira instância seja passível de reexame pelo órgão jurisdicional de segunda instância, mediante a interposição do recurso legalmente estabelecido. Este é um princípio que se manifesta, em sua literalidade, por meio do recurso de apelação interposto contra a sentença de primeiro grau, que é julgado pelo tribunal de segundo grau.

[...]

É verdade que a Constituição Federal não faz nenhuma referência expressa ao termo. Mas, por outro lado, o Texto Constitucional organiza os tribunais, confere-lhes competências recursais e delineia de modo implícito a impositividade do duplo grau de jurisdição. (OLIVEIRA, 2005, p.25/26)

Ressalta-se que a falta da referência expressa na Constituição do “duplo grau” não retira o seu caráter principiológico, quanto menos de garantia, haja vista os preceitos contidos no artigo 5º, incisos XXXV, LIV e LV, bem como aqueles dispositivos que dispõem claramente acerca da competência recursal aos órgãos jurisdicionais, conforme já explanado.

Entretanto, a doutrina de Nery Júnior entende haver previsão do duplo grau na Constituição, mas visualizada apenas como princípio:

Segundo a Constituição Federal vigente, há previsão para o princípio do duplo grau de jurisdição, quando se estabelece que os tribunais do país terão competência para julgar causas originariamente e em grau de recurso. Em o art. 102, II, dizendo que o STF conhecerá, em grau de recurso ordinário, outras determinadas e, também, pelo n. III do mesmo dispositivo constitucional, tomará conhecimento, mediante recurso extraordinário, das hipóteses que enumera, evidentemente criou o duplo grau de jurisdição. (NERY JR., 2000, p.41)

Sob uma ótica distinta, o jurista italiano Chiovenda manifesta seu entendimento acerca do duplo grau como garantia, para quem,

[...] e esse duplo grau, na intenção do legislador, representa uma ‘garantia’ para os cidadãos, sob três aspectos:

a) na medida em que um reiterado julgamento torna, já por si, possível a correção de erros;

b) porque os dois julgamentos são confiados a juízes diversos;

uma vez que o segundo juiz se apresenta como mais autorizado que o primeiro (o pretor c) relativamente ao conciliador, o tribunal com respeito ao pretor, a Corte de Apelação com referência ao tribunal. (CHIOVENDA, 2000, p.288)

A doutrina de Carvalho encontra-se na mesma linha:

Nos chamados Estados de Direito, o duplo grau de jurisdição constitui-se de uma das mais importantes garantias individuais do cidadão em face dos abusos e arbitrariedades praticados no exercício da função judicante, o que se afigura comum e recorrente nos juízos unitários, para agrura daqueles que buscam a proteção e amparo da justiça. (CARVALHO, 2002, p.223)

Considerando que duplo grau de jurisdição é garantia constitucional, somente a Carta Magna poderá apresentar limitações aos recursos (como é o caso da súmula vinculante) e não por meio de Lei Federal, como foi concebida a súmula impeditiva de recurso, eis que a sua aplicação pelo juiz viola o direito ao duplo grau do jurisdicionado sucumbente.

Cintra, Grinover e Dinamarco são enfáticos nesse sentido:

Casos há, porém, em que inexiste o duplo grau de jurisdição: assim, v.g., nas hipóteses de competência originária do Supremo Tribunal Federal, especificada no art. 102, inc. I, da Constituição. Mas trata-se de exceções constitucionais ao princípio, também constitucional. A Lei Maior pode excepcionar às suas próprias regras. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2004, p.75)

Igualmente, Nery Júnior corrobora com esse entendimento, segundo quem,

[...] no Brasil, é a própria Constituição Federal que dá a tônica, os contornos e os limites do duplo grau de jurisdição. Assim, para que se efetive o binômio segurança-justiça, os litígios não poderiam perpetuar-se no tempo, a pretexto de conferirem maior segurança àqueles que estão em juízo buscando a atividade jurisdicional substituidora de suas vontades. O objetivo do duplo grau de jurisdição é, portanto, fazer adequação entre a realidade no contexto social de cada país e o direito à segurança e à justiça das decisões judiciais, que todos têm de acordo com a Constituição Federal (NERY JR., 2000, p.40)

Deste modo, o princípio do duplo grau de jurisdição manifesta-se como preceito informador dos recursos ordinários, amparo legal ao jurisdicionado sucumbente e garantia constitucional ao reexame que gera possibilidade de reforma do ato decisório que lhe foi desfavorável por uma instância hierarquicamente superior.

3.3.4.3. DO DIREITO AO RECURSO COMO GARANTIA À COMPLETA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

Juridicamente, a palavra recurso significa o meio ou poder empregado pelo jurisdicionado hábil a provocar o reexame de um ato decisório, segundo as espécies e prazos previstos em lei, podendo ocorrer tanto perante o mesmo órgão prolator do ato impugnado, quanto ao órgão hierarquicamente superior a este.

Nesse sentido, Silva entende que recurso, em direito processual,

[...] é o procedimento através do qual a parte, ou quem esteja legitimado a intervir na causa, provoca o reexame das decisões judiciais, a fim de que elas sejam invalidadas ou reformadas pelo próprio magistrado que as proferiu, ou por algum órgão de jurisdição superior. Daí, desta idéia de reexame, é que se explica o vocábulo recurso, originário do verbo recursare que em latim significa correr para trás, ou correr para o lugar de onde se veio (re + cursus). (SILVA, 2000, p.307)

De acordo com esta posição, afirma Santos que “recurso é, pois, o poder de provocar o reexame de uma decisão, pela mesma autoridade judiciária, ou por outra hierarquicamente superior, visando a obter a sua reforma ou modificação.” (SANTOS, 1995, p.82)

Entretanto, há um elemento fundamental e lógico que motiva o jurisdicionado a se insurgir contra o ato decisório do juiz: a sucumbência, isto é, situação processual que o torna perdedor, derrotado ou frustrado de alguma forma no curso (decisões interlocutórias) ou no fim do processo (sentença ou acórdão). Este é o fundamento basilar dos recursos judiciais.

Como bem salienta Leal,

[...] a legitimação e o interesse para recorrer (não o direito incondicionado de recorrer) decorrem da existência de prejuízo ou gravame ao vencido ou terceiro prejudicado ou, por dever, a outrem que a lei indicar. Se ambas as partes forem vencidas, ambas são legitimadas para recorrer, sendo que é vedada ao órgão ad quem a reformatio in pejus (reforma para pior) da decisão hostilizada, quando somente uma parte recorrer. (LEAL, 2005a, p.208)

O mesmo autor ainda observa que:

Pode-se dizer, portanto, que o recurso é uma forma legal de impugnabilidade dos provimentos (decisões) jurisdicionais e administrativos elencados pela lei como suscetíveis de revisibilidade em outra instância diversa daquela em que foram exarados. Tal direito à recorribilidade é exercido por via instrumental das petições ou alocuções apud acta, que se definem, como meio eficiente da explicitação dos recursos. Também é de se acrescentar que, nos sistemas atuais de direito processual civil constitucionalizado, o recurso não tem mais aquele sentido químico de remédio a que aludiu Carnelutti, onde a legalidade do ato recursal se aferia por critérios personalíssimos de conveniência e justiça [...]. (LEAL, 2005a, p.203)

Assim, Medonça Lima, citado por Silva, apresenta de forma sintética uma melhor definição para recurso, para quem “recurso é o meio, dentro da mesma relação processual, de que se pode servir a parte vencida em sua pretensão ou quem se julgue prejudicado, para obter a anulação ou a reforma, parcial ou total, de uma decisão” (MEDONÇA LIMA apud SILVA, 2000, p.308). Os atos decisórios passíveis de recurso perante o mesmo órgão ou por aquele hierarquicamente superior ao prolator do ato decisório recorrido são: o acórdão, a sentença e a decisão interlocutória, conforme dispõe o Código de Processo Civil. Tais atos são emanados por agentes públicos julgadores e presumem a realização de um procedimento construído pelas partes e em razão do contraditório.

O mais antigo recurso e considerado o de maior importância no Direito Processual Civil é o de Apelação, por meio do qual a parte sucumbente o interpõe diretamente ao tribunal de segundo grau com vistas ao reexame da sentença prolatada pelo juiz de primeiro grau. Este recurso é considerado como recurso ordinário, havendo nele a plena “devolutividade” da matéria impugnada ao tribunal, que poderá decidir pela reforma parcial ou total do ato decisório, podendo até mesmo ocorrer a sua invalidação, conforme o caso concreto.

Nesse sentido, Fazzalari entende que:

A instauração do “segundo grau” constitui o “apelo”, o qual, mesmo pertencendo ao gênero das impugnações, isto é, das iniciativas contra provimentos jurisdicionais que se considerem viciados, se coloca na species (sic) “impugnações processuais”: o sucumbente “se assenta”, no luto da perda, pede e obtém uma nova fase de conhecimento de mérito, com o que se explica, justamente, o princípio do “duplo grau” de cognição do mérito. (FAZZALARI, 2006, p.197)

Todavia, Cintra, Grinover e Dinamarco mostram em sua obra que ainda existe uma reduzidíssima corrente doutrinária que se manifesta opositora ao ao recurso ordinário, sob os seguintes fundamentos:

a) não só os juízes de primeiro grau, mas também os da jurisdição superior poderiam cometer erros e injustiças no julgamento, por vezes reformando até uma sentença consentânea com o direito e a justiça; b) a decisão em grau de recurso é inútil quando confirma a sentença de primeiro grau, infringindo até o princípio da economia processual; c) a decisão que reforma a sentença da jurisdição inferior é sempre nociva, pois aponta uma divergência de interpretação que dá margem a dúvidas quanto à aplicação do direito, produzindo a incerteza nas relações jurídicas e o desprestígio do Poder Judiciário. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2004, p.74)

Tal entendimento se mostra diametralmente oposto à atual visão do devido processo constitucional constituído sob as bases do Estado Democrático de Direito, tendo em vista que a Apelação possibilita o reexame do ato decisório por um grupo colegiado de juízes que, por serem mais experientes, vão conferir maior segurança jurídica ao provimento (acórdão). Esta nova análise representa manifestação do princípio do duplo grau de jurisdição, princípio este garantido na Constituição da República, conforme outrora explanado.

Para boa parte da doutrina, o ato de recorrer se fundamenta tanto pela reação natural humana a não se sujeitar a um único julgamento, quanto pela possibilidade de ocorrência de erro ou má-fé do julgador ao prolatar a sua decisão, sendo este o entendimento de Nery Júnior, para quem, juntamente com a condição da falibilidade humana e o subjetivismo que coloca o jurisdicionado contra um ato decisório desfavorável, “[...] há ainda o fato de que o juiz único poderia tornar-se despótico, sabedor de que sobre as decisões não haveria controle algum, conforme sábia advertência de Montesquieu” (NERY JR., 2000, p.39), para quem o duplo grau de jurisdição será “garantia fundamental da boa justiça”.

Nesta linha de raciocínio, Silva entende que o instituto dos recursos, em direito processual,

[...] responde a uma exigência psicológica do ser humano, refletida em sua natural e compreensível inconformidade com as decisões judiciais que lhe sejam desfavoráveis. [...] Mas não se deve perder de vista que o sentimento, em que se busca fundamentar os recursos, resume-se à compreensível segurança de que as partes podem gozar quando sabem que o Juiz da causa terá sempre sua decisão sujeita ao julgamento de outro magistrado, do mesmo nível ou de nível superior, o que o tornará mais responsável e o obrigará a melhor fundamentar seu julgamento. (SILVA, 2000, p.309)

O recurso de Apelação é, portanto, uma prerrogativa processual do jurisdicionado, sendo imperioso que haja o reexame da decisão apelada pelo tribunal de segundo grau, como medida de uma completa prestação jurisdicional. Desta forma, Cintra, Grinover e Dinamarco afirmam que:

Os tribunais de segundo grau, formados em geral por juízes mais experientes e constituindo-se em órgãos colegiados, oferecem maior segurança; e está psicologicamente demonstrado que o juiz de primeiro grau se cerca de maiores cuidados no julgamento quando sabe que sua decisão poderá ser revista pelos tribunais da jurisdição superior. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2004, p.74/75)

Já Bermudes, salienta que,

[...] ‘todavia, o princípio do duplo grau de jurisdição torna a liberdade do juiz, liberdade vigiada’, uma vez que ‘ciente de que as decisões de sua lavra passarão pelo crivo de outros magistrados, preocupado em mostrar sua capacidade aos seus pares, às partes e aos procuradores, temeroso da censura dos órgãos superiores, zeloso de não ver reconhecida a própria ignorância, ou, negligência, sabedor de que, quase sempre, o tribunal que julga o recurso é o mesmo que recomenda as promoções na carreira, cada juiz sente-se compelido a proferir decisões de boa qualidade.’ (BERMUDES apud CARVALHO, 2002, p.231)

Em linha completamente oposta, Nery Júnior cita entendimento de Cappelletti acerca da Apelação:

Na Itália encontramos a firme e decidida opinião de Cappelletti, defensor da abolição quase que radical da apelação, apontando o excesso de órgãos colegiados, a excessiva duração do recurso de cassação, a idolatria do direito à impugnação, entre outros defeitos que maculariam, por assim dizer, o princípio do duplo grau de jurisdição. (CAPPELLETTI apud NERY JR., 2000, p.44)

Sem embargo, o recurso de Apelação supõe o não esgotamento do processo no primeiro grau, representando meio eficaz de “controle interno” da própria função jurisdicional do Estado, sendo este o entendimento de Cintra, Grinover e Dinamarco, para quem,

[...] o principal fundamento para a manutenção do princípio do duplo grau é de natureza política: nenhum ato estatal pode ficar imune aos necessários controles. O Poder Judiciário, principalmente onde seus membros não são sufragados pelo povo, é, dentre todos, o de menor representatividade. Não o legitimaram as urnas, sendo o controle popular sobre o exercício da função jurisdicional ainda incipiente em muitos ordenamentos, como o nosso. É preciso, portanto, que se exerça ao menos o controle interno sobre a legalidade e a justiça das decisões judiciárias. Eis a conotação política do princípio do duplo grau de jurisdição. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2004, p.75)

O direito de recorrer, ou “poder de recorrer” como prefere alguns doutrinadores, representa, portanto, uma faculdade processual de insurgência que tem o jurisdicionado prejudicado por uma decisão judicial. Esta faculdade decorre de uma garantia constitucional corolária aos princípios do contraditório, isonomia, ampla defesa, da inafastabilidade do controle jurisdicional e do devido processo constitucional. Isto porque o procedimento realizado em contraditório também deve ocorrer em instância recursal, haja vista que a função jurisdicional ainda não se esgotou. O recurso é, pois, direito do cidadão e garantia processual de que ser-lhe-ão assegurados os mencionados princípios, mormente a ampla defesa, cuja observância se dará não apenas quanto aos argumentos formulados pela outra parte, mas também quanto aos atos decisórios proferidos pelo agente público julgador, que, de alguma forma, lhe causou prejuízo, sendo este o posicionamento de Coelho Nunes, para quem, “o instituto do recurso, em face do perigo e da possibilidade de um desenvolvimento incompleto da primeira instância, a permitir uma mácula do contraditório e da ampla defesa, passa a ser indissociável do nosso modelo constitucional de processo.” (COELHO NUNES, 2003, p.148)

Por sua vez, a inafastabilidade do controle jurisdicional do Estado assegura ao cidadão litigante que o processo ocorrerá em tempo razoável, sendo-lhe resguardados, de forma limitada, os meios e recursos de defesa suficientes para impugnar os atos decisórios a ele desfavoráveis. Isto porque caso a lei permitisse uma garantia ilimitada dos meios recursais, certamente o trâmite processual não teria fim. Entretanto, o direito à Apelação, ora amparado no princípio do duplo grau de jurisdição, deve ser garantido de forma plena, sendo inconstitucionais os dispositivos legais ordinários que dispõem sobre acerca da sua supressão ou limitação prejudicial ao jurisdicionado. Este recurso “é instituto de garantia revisional exercitável na estrutura procedimental, como forma de alongar ou ampliar o processo pela impugnação das decisões nele proferidas (LEAL, 2005b, p.127), sendo imperativo constitucional a inafastabilidade do Estado perante à sua função jurisdicional.

Nesse sentido, Oliveira leciona que:

O processo, em um Estado Democrático de Direito, é condicionado por princípios que transformam o procedimento em um espaço de discussão amplo. A supressão de recursos tende a diminuir o aspecto dialógico do processo, que passa a ser um monólogo: do juiz e para o juiz. (OLIVEIRA, 2003, p.102)

Em mesma ordem, sustentando a importância do recurso como meio garantidor da dialeticidade no processo, Coelho Nunes afirma que:

Nesse sentido, o instituto do recurso apresenta-se como criador de um espaço procedimental de exercício do contraditório e da ampla defesa, permitindo ao juízo ad quem a análise de questões já debatidas pelas partes, mas levadas, ou não, em consideração pelo órgão julgador de primeira instância em sua decisão, ou de questões suscitadas pelo juízo de primeira instância de ofício ou sem a participação de todas as partes em seu provimento, implementando, assim, um espaço de debate. (COELHO NUNES, 2003, p.148)

Desta forma, a idéia de concentrar o processo no primeiro grau, esgotando-o nas mãos do juiz singular em nome de uma falsa noção de celeridade e efetividade, como fez o legislador ao criar a súmula impeditiva de recurso, é medida inconstitucional (a ser tratada em tópico específico) que, além de impedir a possibilidade do sucumbente de apelar, gera um aumento de poderes nas mãos do agente público julgador, o que aumenta a possibilidade de decisões arbitrárias, equivocadas e ilegais, ferindo os princípios e garantias corolários ao devido processo constitucional.

Conforme salienta Carvalho:

A aceitação do juízo único e singular, revisor das próprias decisões, sob quaisquer pretextos ou justificativas, por mais relevantes que sejam, implica no afastamento de uma garantia individual do cidadão. A celeridade da prestação jurisdicional, o elevado custo da máquina judiciária para o contribuinte, em face do enorme volume de causas de expressão econômica insignificante, são sempre invocados pelo defensores da supressão do direito ao duplo grau de jurisdição. (CARVALHO, 2002, p.224)

O direito ao recurso é, portanto, garantia constitucional, de modo que a sua supressão e, por via de conseqüência, do duplo grau, representa evidente negação à jurisdição por incompletude na prestação do serviço público jurisdicional ao cidadão jurisdicionado, sendo certo que este não deve suportar os efeitos de um problema estrutural do Estado.

Nas palavras de Calmon de Passos,

[...] eliminar qualquer tipo de controle da decisão é, inquestionavelmente, violar a garantia do devido processo legal e, mais que isso, atribuir ao juiz um papel que lhe foi negado, institucionalmente pela Constituição, sem esquecer a particular circunstância de que a decisão proferida com violência ao direito objetivo é decisão da qual nasce uma lesão nova ao direito subjetivo de alguém, lesão que não pode ser subtraída da apreciação do Poder Judiciário, nos precisos termos do mandamento constitucional. (CALMON DE PASSOS apud COELHO NUNES, 2003, p.114)

Assim, o devido processo constitucional supõe que a prestação jurisdicional seja realizada em sua inteireza, o que torna inconcebível o exaurimento de uma lide na primeira instância por meio de medidas supressoras do direito de apelar, haja vista que a segunda instância é nada mais que um desdobramento da primeira, ou seja, está inserida no ofício do serviço público jurisdicional por meio da Constituição da República e Código de Processo Civil. Assim, o controle das partes sobre o processo e os atos do juiz não pode ser extirpado, sob pena de afronta ao Estado Democrático de Direito e retorno ao tempo do arbítrio, despotismo e irracionalidade.

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Sobre o autor
Francisco Rabelo Dourado de Andrade

Advogado. Pós-Graduado em Direito Público pela PUC/Minas. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho/RJ. Mestrando em Direito Processual pela PUC/Minas. Sócio do escritório Dourado, Oliveira e Neder Advogados Associados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Francisco Rabelo Dourado. Da inconstitucionalidade da súmula impeditiva de recursos:: uma análise crítica sobre parágrafo primeiro do Art. 518 do Código de Processo Civi. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3752, 9 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25480. Acesso em: 22 dez. 2024.

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