Há centenas de anos que a maioria dos estudiosos do Direito penal sustenta e tenta explicar a ficção jurídica por eles inventada e denominada dolo eventual. Data venia, mas dolo eventual não existe.
A pergunta que se faz é: Pode o Direito penal desconsiderar princípios fundamentais e ofender o Estado Democrático de Direito e o próprio Direito? Pensamos que sim. O Direito penal ofende o Direito quando tem sua aplicabilidade motivada pela satisfação de qualquer grupo que não seja o conjunto da sociedade o que não contribui para a paz social. Portanto, deixar de sancionar a título de dolo um infrator que agiu dolosamente e sanciona-lo a título de culpa, ou ainda, deixar de sancionar a título de culpa um infrator que agiu imprudentemente e sanciona-lo a título de dolo, são exemplos de desconsideração de princípios fundamentais, como o do devido processo legal e o da dignidade da pessoa humana.
Alguns diplomas penais, como o brasileiro, permitem essa modalidade de ofensa ao Direito. Note-se que ao deixar aberto o inciso I do Artigo 18, preconizando que ocorre crime doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo, o Estado nada mais faz que legalizar a insegurança jurídica, o que constitui uma aberração das mais terríveis e atentatórias a um Estado que se diz Democrático de Direito. Toda vez que o Estado toma de forma subjetiva que fulano não quis o resultado danoso, mas apenas assumiu o risco de produzi-lo, e que, entretanto, de toda sorte deverá responder a título de dolo, ou ainda, que fulano, mesmo assumindo o risco de produzir um resultado danoso ao bem jurídico, o fez de forma consciente, acreditando que tal resultado não se produziria, e que, portanto, não deverá responder a título de dolo “eventual”, mas sim, a título de culpa consciente, está na verdade, exercendo equivocada e arbitrariamente, o direito de punir, lançando mão do conceito de dolo, estrategicamente dilatado, o que é uma temeridade jurídica.
O Direito penal, como o brasileiro, não pode continuar punindo a título de dolo quem agiu apenas imprudentemente; Não pode continuar considerando a imprudência como um mero deslize de comportamento, um descuido ou um acidente, enquanto é notório e quase um postulado jurídico que imprudência é crime; Não pode continuar mitigando e convertendo delitos, formal e materialmente dolosos em materialmente culposos, num flagrante desrespeito à Ordem jurídica e sob pretextos duvidosos, desconsiderando também a notória distinção entre os dois institutos.
O que parece ficar claro em tudo isto é que a figura do dolo eventual tem servido ao Estado como falsa sensação de segurança, mas apenas no momento inicial, pois sabidamente não resiste a nenhuma análise mais profunda do judiciário e não tarda a ter sua constitucionalidade questionada, não passando de objeto de justificação de uma politica criminal ofensiva e prejudicial aos valores de um Estado Democrático de Direito.
O dolo eventual é uma ficção jurídica e funciona como uma ferramenta de controle social e como tal, é apenas mais um instrumento estatal servindo para controlar a massa. Submete-se a uma rígida e maléfica politica criminal do Estado dirigida a proporcionar uma falsa sensação de segurança jurídica. Explicamos: Retornemos ao exemplo da morte no trânsito causado por sujeito infrator que dirigia de forma imprudente e assumindo todos os riscos de um resultado danoso a bens jurídicos. O Estado sabe que o agente atuou culposamente e provocou a morte de inocente. Sabe também que a pena para delitos culposos é bastante branda e dependendo da comoção na sociedade, dizer que o infrator responderá apenas por homicídio culposo causará bastante insatisfação.
Nessa ocasião o Estado lança mão de sua política criminal viciada, amparada por dispositivos como o do inciso I do Artigo 18 do Código Penal brasileiro, imputa ao infrator o delito a título de dolo, não o direto, mas o eventual, é dizer, imputa um dolo mitigado, mas apenas terminologicamente, ou seja, o agente quis, mas não quis, ou ainda, não quis de verdade, apenas assumiu o risco, portanto, é dolo do mesmo jeito, só que eventual. Esta realidade, de acordo com o conhecido jargão popular, seria cômica se não fosse trágica.
O que acontece de fato é que, nesse momento, o Estado nada mais deseja que justificar junto à sociedade a aplicação de uma reprimenda maior: a de um delito doloso sobre um delito culposo, mesmo sabendo que sua pretensão não prosperará até o final, pois a imputação será desclassificada para imprudência consciente, mas o faz porque se encontra amparado numa legislação, que lhe dá a chancela oficial necessária para desrespeitar princípios e garantias individuais e coletivos, como dissemos. Nesse contexto, a culpa consciente termina por funcionar como objeto de mitigação do dolo eventual, beneficiando com uma ínfima pena quem merecia uma justa reprimenda. Portanto, a pena, a exemplo do Estado, não cumpre sua função e o que se tem é a legitimação de uma atitude criminosa estatal, o que poderia ser facilmente evitada com a adoção de critérios normativos de imputação. A ausência de tais critérios é o principal gargalo da imputação subjetiva do delito, razão pela qual, há séculos a doutrina tenta oferecer alternativas das mais variadas possíveis, porém sem obter o desejado êxito ou mesmo consenso jurisprudencial. Nesse sentido, oferecer uma alternativa viável para suprir esta lacuna da doutrina em relação à imputação subjetiva é o principal objetivo do que apresentamos como TEORIA SIGNIFICATIVA DA IMPUTAÇÃO SUBJETIVA DO DELITO.
O grande problema do Direito penal hoje no Brasil e em boa parte do mundo é a ausência de clareza na hora de se decidir se um crime foi praticado com dolo ou culpa. Poderíamos dizer de uma forma bem racional, que ocorre dolo quando o sujeito dirige sua vontade para a prática de uma conduta delituosa. Já a culpa, ocorre quando o agente pratica uma conduta e dessa conduta deriva um resultado criminoso. Mesmo com essa clássica e simples definição, o problema crônico da imputação subjetiva sempre foi a questão dos crimes culposos, ou seja, quando não há a vontade na conduta do sujeito.
Num breve histórico, toda vez que o Estado se encontrava diante de um crime culposo, mas extremamente violento, a solução que sempre encontrava para satisfazer o anseio da sociedade por uma punição mais severa para o criminoso, era tentar aproximar a pena daquele com a pena do crime doloso, geralmente mais rígida. Com isto surgia outro problema, o crime não havia sido praticado de forma dolosa, então o que fazer para justificar tal agravamento da pena? A solução encontrada foi a criação de uma aberração jurídica, uma ficção chamada dolo eventual, sob o argumento de que o infrator, embora não tenha tido a intenção, ou seja, não tenha agido com vontade, assumiu o risco de um resultado criminoso.
É preciso que se diga que ao longo de mais de cem anos os penalistas de todo o mundo vêm tentando resolver o problema do crime culposo, mas sem sucesso. Teorias e mais teorias foram e são criadas com esse objetivo, mas nenhuma logrou tornar claro para os cidadãos, quando é que a lei entende que determinado individuo agiu com dolo ou com culpa. O dolo eventual é apenas mais um produto de algumas dessas teorias justificadoras.
Nossa proposta, de uma forma bastante simples, resolve esse problema, pois torna muito claro o que é dolo e o que é culpa que, a exemplo de boa parte da doutrina internacional, passamos a chamar de imprudência, podendo ser consciente ou inconsciente. Assim, o crime doloso é aquele onde se encontra presente a intenção do sujeito em praticar determinado delito. Já o crime imprudente consciente passa a ser classificado em gravíssimo, grave e leve. Nesse contexto o Dolo Direto de Primeiro Grau passa a ser denominado apenas Dolo. O Dolo Direto de Segundo Grau passa a ser denominado de Imprudência Consciente Gravíssima. O Dolo Eventual passa a ser denominado, coerentemente de Imprudência Consciente Grave e a Culpa Consciente passa a ser denominada de Imprudência Consciente Leve.
O crime imprudente consciente gravíssimo é aquele em que o sujeito, embora não tenha a intenção, assume o risco pela sua conduta, tendo como certa a ocorrência do sinistro. Exemplo disto é o caso de um sujeito que coloca uma bomba no carro tentando matar o dignitário, mas tem certeza de que o motorista também vai morrer. Nesse caso, em relação ao dignitário, ele vai responder por dolo, mas em relação ao motorista, vai responder por imprudência consciente gravíssima e estará passível de sofrer uma pena que pode chegar a 80% da pena do crime doloso.
Por sua vez, no crime imprudente consciente grave, o sujeito pratica uma conduta de alto risco sem se importar com o que pode acontecer a terceiros. É o caso do motorista que depois de ingerir bebida alcóolica, dirige seu veículo e vem a provocar lesão ou morte de terceiros. Nesse caso, não importa se em alta velocidade ou não, pois o risco já está incrementado pela ingestão de bebida alcóolica. Em casos assim, o sujeito infrator deverá responder por imprudência consciente grave e estará passível a uma pena que poderá chegar a 50% da pena do crime doloso. Importante dizer que esta modalidade abrange quase a totalidade dos acidentes de trânsito com vítima, com a vantagem de não haver a velha discussão se foi culposo ou doloso. Assim, em caso de homicídio no trânsito, caracterizado como imprudência consciente grave, a pena seria corrigida de uma detenção de dois a quatro anos, para reclusão de seis a dez anos.
Por fim temos a imprudência consciente leve, onde o sujeito assume o risco por sua conduta, mas não aceita e nem admite a ocorrência de um resultado delituoso. É o caso das chamadas brincadeiras sem graça que muitas vezes terminam em tragédia, como por exemplo, empurrar um amigo numa piscina e provocar uma lesão grave ou até mesmo a morte do amigo. Em casos assim, o sujeito infrator deverá responder por imprudência consciente leve e estará passível a uma pena que poderá chegar a 30% da pena do crime doloso.
A grande insatisfação da sociedade, em casos como o da Ponte JK, por exemplo, ocorre porque quando o sujeito responde por homicídio culposo, a pena é muito branda, não passando de quatro anos de detenção, deixando a sensação de impunidade do infrator, daí a sociedade ficar clamando que o indivíduo seja indiciado e condenado a título de dolo eventual. O método significativo corrige esse problema, pois não haverá mais falar em dolo eventual como justificativa de aplicação de pena mais grave.
O problema da proposta contida no anteprojeto de Código Penal que foi entregue ao Senado Federal no PLS 236/2012, é que em relação à imputação subjetiva, estão oferecendo mais do mesmo. Não estão oferecendo nenhuma alternativa para solução dos problemas que acabamos de mencionar. Ao contrário, pela redação que estão propondo para a questão do dolo, ficará muito mais difícil para a sociedade saber quando se tratará de um delito doloso ou culposo, pois ao invés de eliminar o dolo eventual, o estão positivando.
A ideia de se reformar o Código penal é muito relevante e chega mais que em boa hora. O problema é que nessas ocasiões onde se discute alterações no Código penal, todas as atenções ficam voltadas para a parte especial do Código, pois é nela que se concentram os temas mais badalados pela grande mídia e que povoam o imaginário das pessoas, como a descriminalização do uso de drogas, a questão do aborto, o terrorismo, a corrupção, dentre outros tipos. Nada contra a relevância desses crimes, mas é preciso se ter em mente que tudo passa antes pela parte geral do Código, precisamente pela questão da imputação, ou seja, se o crime foi praticado com dolo ou imprudência.
Por tudo, a Teoria Significativa da Imputação se mostra bastante razoável para solução destes problemas, pois nela não há um conceito pré-jurídico de conduta. Esse conceito só pode ser compreendido a partir do significado normativo de determinada norma. Importa assim, o significado da conduta para norma, se é relevante ou não para o Direito penal. Em outras palavras, importa mais o significado do que foi feito, a relevância social do resultado frente à sociedade e frente à norma penal.
Nossa proposta foi transformada em Projeto de Lei, sob o nº 6.351/13, que foi apresentado pelo Deputado Federal Gonzaga Patriota, do PSB. Atualmente o projeto encontra-se na CCJ da Câmara sob a relatoria do Deputado Fábio Trad.
Por fim, como costumamos dizer: Uma teoria não é mais que um ensaio da verdade, até que alguém acredite.