Resumo: O presente artigo busca demonstrar que o art. 17 da Lei Complementar n° 140/2011 deve ser interpretado em conformidade com a Constituição, de forma a permitir a fiscalização ambiental concorrente pelos entes federativos, alvitrando ainda mecanismos para inibir bis in idem no caso de dupla autuação.
Palavras-chave: Lei Complementar 140/2011; Federalismo Cooperativo; Competência; Licenciamento ambiental; Fiscalização Ambiental; Interpretação Conforme. Dupla autuação.
Sumário: 1. Introdução – 2. Considerações Iniciais Sobre a LC n° 140/2011 - 2.1 Inserção da Lei n° 140/2011 no Contexto do Federalismo Cooperativo Brasileiro - 2.2 A Competência Para o Licenciamento Ambiental a Partir da LC n° 140/2011 - 3 A Competência Fiscalizatória Ambiental em Face da LC n° 140/2011 - 3.1 – O Panorama Instituído Pelo Art. 17 - 3.2 - A Solução para o Caso de Dupla Autuação – 4. Conclusão - 5. referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO.
Nos últimos anos, tem-se assistido a uma verdadeira revolução em matéria de proteção ao meio ambiente, a partir da formação de uma consciência coletiva acerca da urgência em se resguardar a higidez do patrimônio ambiental para as presentes e futuras gerações, sob pena de se pôr em risco a própria existência humana.
Por outro lado, pode-se observar que, em tempos de globalização e de consciência cada vez mais arraigada acerca do caráter supranacional da proteção dos direitos humanos[1], nos quais se insere o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado[2], os próprios estados nacionais têm se compelido reciprocamente no sentido de fomentar, no âmbito dos três poderes constituídos, leis, políticas públicas, e práticas judiciais favoráveis à proteção ambiental – o que, no caso do Brasil, teve forte impulso a partir da celebração da Conferência Eco 92 na cidade do Rio de Janeiro.
Nesse contexto, tem-se observado aqui, onde se encontra um dos maiores patrimônios ambientais do mundo, uma série de avanços em matéria de proteção ao meio ambiente, a exemplo da Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais), Lei 9.985, de 18 de julho de 2000 (institui as unidades de conservação da natureza), Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981 (dispõe sobre a política nacional do meio ambiente), apenas para citar os diplomas mais significativos.
Também nessa perspectiva, a Lei Complementar n° 140, de 08 de dezembro de 2011, veio a lume com o objetivo de atender a antigo anseio pela fixação de normas para cooperação ambiental entre os entres federados, algo que já era aguardado desde o advento da Constituição Federal de 1988, em cujo Art. 23, parágrafo único se prevê – e já se previa desde a redação original - que Lei complementar deve fixar normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
Ocorre que, na parte dedicada à fiscalização ambiental - mais precisamente no caput do Art. 17 - a recente Lei Complementar aparentemente insinua um enfraquecimento da concorrente competência dos entes federativos no que tange à fiscalização ambiental, o que precisa ser melhor aclarado.
Sem embargo de ser também merecedora de análise percuciente a questão da distribuição de competências licenciatória encetada pelo referido diploma, cinge-se esse artigo à análise da competência fiscalizatória dos entes federativos em face das alterações promovidas pela LC n. 140/2011.
2. CONSIDERACOES INICIAIS SOBRE A LC Nº 140/2011.
2.1 – Inserção da LC n°140/2011 no contexto do federalismo cooperativo brasileiro.
Como é cediço, seguindo a tradição americana[3], desde a primeira constituição republicana de 1891 o Brasil adota o forma federativa de Estado, consoante reitera o Art. 1º da atual Constituição Federal de 1988.
O federalismo caracteriza-se pela divisão do poder central entre entes federativos dotados de autonomia política a administrativa, sob as luzes de uma Constituição, de quem representa o fundamento jurídico e instrumento regulador[4].
Como se observa da leitura do Capítulo I do Título III da Constituição Federal de 1988, ao instruir a organização político-administrativa do Estado e assim distribuir as competências administrativas dos entes federados, a Carta adota uma modalidade de federalismo cooperativo[5] que, para além da mera justaposição de competências, prima pela coordenação e colaboração mútua entre os entes na satisfação dos interesses supremos. Citando Enoch Alberti ROVIRA, Gilberto Bercovici esclarece que nesse modelo “la separación y la estanqueidad han sido substituidas por lo que podemos designar como voluntad de colaboración, a impulso de las necesidades y exigencias de la realidad”[6].
Nessa esteira, prevê a Carta Magna competir à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a proteção do meio ambiente, conforme preceitua o seu Art. 23, apontando, ainda, em seu parágrafo único, a necessidade de cooperação dos entes federativos nesse desiderato, verbis:
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;
VIII - fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;
IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;
X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;
XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios;
XII - estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito.
Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.” (destaques do expositor)
Como se denota, no modelo federativo brasileiro, a proteção ambiental é matéria da alçada de ambos os entes federativos, os quais receberam da Carta da República a missão de somar esforços na busca de um meio ambiente sadio e equilibrado.
Ilustrativamente, no âmbito da União, na conformidade do Art. 2º da Lei Federal nº 7.735/1989[7] compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) exercer o poder de polícia ambiental e executar ações da Política Nacional do Meio Ambiente no que diz respeito ao controle da qualidade ambiental. Outrossim, o inciso IV do art. 6º da Lei Federal nº 6.938/1981[8] confere ao IBAMA a qualidade de órgão executor do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), competindo à Autarquia executar e fazer executar, como órgão federal, a políticas e as diretrizes fixadas para o meio ambiente.
2.2 – A competência para o licenciamento ambiental a partir da LC n. 140/2011
Como visto, a Constituição Federal prevê como competência comum dos entes federativos a missão de proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas.
Operacionalizando a questão da proteção ambiental antes mesmo da vigência da atual Carta da República, a Lei Federal nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, já relacionava o licenciamento ambiental como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, estabelecendo desde a redação primitiva do seu art. 10, que dependerão de prévio licenciamento ambiental “a construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental”.
Por sua vez, a Resolução CONAMA nº 237, de 19 de dezembro de 1997, veio a conceituar o licenciamento ambiental como “procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso” (art. 1º, inc. I). O licenciamento ambiental constitui, portanto, típico exercício do poder de polícia ambiental, em seu viés preventivo.
Ocorre que muito embora tenha a Constituição da República orientado o legislador no sentido de editar Lei Complementar fixando as normas de cooperação entre os entes federativos visando a organizar suas atribuições no que tange às competências administrativas comuns, tal Lei Complementar, em matéria ambiental, não existia até o advento da novel LC n. 140/2011, de forma que, tomando-se mais uma vez como exemplo o âmbito federal, a definição de competências do IBAMA era estipulada a partir da interpretação conjugada do então vigente Art. 10, parágrafo 4º da Lei 6.938/81 c/c Art. 4º da Resolução o n. 237/97, que dispunha:
Lei 6.938/81
“Art. 10 - A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis. (Redação dada pela Lei nº 7.804, de 1989)
§ 4º Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA o licenciamento previsto no caput deste artigo, no caso de atividades e obras com significativo impacto ambiental, de âmbito nacional ou regional. (Redação dada pela Lei nº 7.804, de 1989)
Resoluçao CONAMA n. 237/97
Art. 4º - Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, órgão executor do SISNAMA, o licenciamento ambiental, a que se refere o artigo 10 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, de empreendimentos e atividades com significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, a saber:
I - localizadas ou desenvolvidas conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; no mar territorial; na plataforma continental; na zona econômica exclusiva; em terras indígenas ou em unidades de conservação do domínio da União.
II - localizadas ou desenvolvidas em dois ou mais Estados;
III - cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites territoriais do País ou de um ou mais Estados;
IV - destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear - CNEN;
V- bases ou empreendimentos militares, quando couber, observada a legislação específica.
§ 1º - O IBAMA fará o licenciamento de que trata este artigo após considerar o exame técnico procedido pelos órgãos ambientais dos Estados e Municípios em que se localizar a atividade ou empreendimento, bem como, quando couber, o parecer dos demais órgãos competentes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, envolvidos no procedimento de licenciamento.
§ 2º - O IBAMA, ressalvada sua competência supletiva, poderá delegar aos Estados o licenciamento de atividade com significativo impacto ambiental de âmbito regional, uniformizando, quando possível, as exigências.
Como se observa, no que tange à competência do IBAMA para o licenciamento ambiental, a par do critério da localização do empreendimento a ser licenciado, havia também os critérios b) da atividade a ser licenciada; c) da dimensão do impacto ambiental; d) supletivo.
As regras que definiam o exercício da competência eram definidas predominantemente pelo critério da preponderância do interesse. E assim foi até o advento da LC n. 140/2011, que, finalmente atendendo ao reclamo constitucional do Art. 23 parágrafo único da Carta, veio a lume definindo expressa e taxativamente as atribuições da União Federal, assim como dos demais entes federados, verbis:
Art. 7o São ações administrativas da União:
(...)
XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades:
a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe;
b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva;
c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas;
d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs);
e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados;
f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999;
g) destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen); ou
h) que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento;
Afora essa legitimação ordinária, manteve a Lei Complementar a possibilidade de atuação supletiva, conforme prevista no seu Art. 14, e ainda uma inovadora ação administrativa cooperativa subsidiária a ser solicitada pelo ente competente, vejamos:
Art. 14. Os órgãos licenciadores devem observar os prazos estabelecidos para tramitação dos processos de licenciamento.
(...)
§ 3o O decurso dos prazos de licenciamento, sem a emissão da licença ambiental, não implica emissão tácita nem autoriza a prática de ato que dela dependa ou decorra, mas instaura a competência supletiva referida no art. 15.
Art. 15. Os entes federativos devem atuar em caráter supletivo nas ações administrativas de licenciamento e na autorização ambiental, nas seguintes hipóteses:
I - inexistindo órgão ambiental capacitado ou conselho de meio ambiente no Estado ou no Distrito Federal, a União deve desempenhar as ações administrativas estaduais ou distritais até a sua criação;
Art. 16. A ação administrativa subsidiária dos entes federativos dar-se-á por meio de apoio técnico, científico, administrativo ou financeiro, sem prejuízo de outras formas de cooperação.
Parágrafo único. A ação subsidiária deve ser solicitada pelo ente originariamente detentor da atribuição nos termos desta Lei Complementar.
Como se observa, a nova lei alterou o rol de competências licenciatórias da União Federal (leia-se IBAMA), suprimindo a atuação da autarquia nos empreendimentos cujo impacto ultrapasse as fronteiras dos estados e incluindo a possibilidade de uma cooperação subsidiária.
De modo semelhante, previu o rol de competência licenciatória dos estados (Art. 8º, XIV - competência supletiva - e XV – UC estaduais) e municípios (Art, 9º, XIV – impacto local e UC municipais), verbis:
Art. 8o São ações administrativas dos Estados:
(...)
XIV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7o e 9o;
XV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pelo Estado, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs);
(...)
Art. 9o São ações administrativas dos Municípios:
(...)
XIV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos:
a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou
b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs);
A opção pelo licenciamento por uma única esfera de competência visa a evitar atividades contraditórias e esforços desnecessários por mais de um ente federado. Ocorre que, se em matéria de competência licenciatória o novel diploma foi claro ao delimitar com exclusividade a alçada da União e dos demais entes federativos, o mesmo não se pode dizer em matéria de fiscalização ambiental – sendo este o foco da discussão ora travada.
3. A COMPETÊNCIA FISCALIZATÓRIA AMBIENTAL EM FACE DA LC N. 140/2011.
3.1 – O panorama instituído pelo Art. 17.
Em matéria de fiscalização, antes do advento do diploma em estudo o poder de polícia ambiental encontrava suporte legal apenas no Art. 70, §1° da Lei 9.605/90, verbis:
Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.
§ 1º São autoridades competentes para lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo os funcionários de órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente - SISNAMA, designados para as atividades de fiscalização, bem como os agentes das Capitanias dos Portos, do Ministério da Marinha.
Quanto ao ponto, sempre vigorou o entendimento majoritário no sentido da competência concorrente entre os entes federados, independente da titularidade do licenciamento ambiental. Nesse sentido, por todos, vale conferir o pensamento de Curt TRENNEPOHL:
O fato de um empreendimento ou atividade estar em processo de licenciamento num determinado órgão ambiental não afasta o poder de polícia dos demais. Assim, caso se configure que um órgão licenciador é inepto ou permanece inerte ou omisso, a qualquer tempo, outro pode exercer a fiscalização sobre a atividade ou obra (não sobre o órgão em questão), autuando e promovendo a apuração da infração através do processo administrativo próprio[9].
Este também sempre foi o sufrágio majoritário da jurisprudência, do Superior Tribunal de Justiça, como se extrai do seguinte ementário ilustrativo:
3. O pacto federativo atribuiu competência aos quatro entes da federação para proteger o meio ambiente através da fiscalização. 4. A competência constitucional para fiscalizar é comum aos órgãos do meio ambiente das diversas esferas da federação, inclusive o art. 76 da Lei Federal n. 9.605/98 prevê a possibilidade de atuação concomitante dos integrantes do SISNAMA. 5. Atividade desenvolvida com risco de dano ambiental a bem da União pode ser fiscalizada pelo IBAMA, ainda que a competência para licenciar seja de outro ente federado[10].
De modo semelhante, se posicionou o próprio Supremo Tribunal Federal:
Em primeiro lugar, ressalto que a questão do licenciamento ambiental no Brasil está a merecer maior atenção de todos os entes federativos e de seus respectivos poderes, no sentido de uma melhor definição do quadro de suas atribuições na realização de um efetivo federalismo cooperativo e para que se produzam ganhos objetivos na concretização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
(...)
É preciso destacar que não há dúvida de que existe uma fiscalização inerente ao exercício de licenciamento ambiental por parte do órgão competente para tanto. O que se espera, nesse sentido, é que o órgão competente para licenciar exerça amplo controle e fiscalização nos limites do processo administrativo de licenciamento ambiental, sem interferências de outros órgãos integrantes do SISNAMA, ressalvadas eventuais exceções previstas em lei.
Entretanto, o artigo 23 da Constituição e a legislação federal como um todo apontam como dever de todos os entes integrantes do SISNAMA a fiscalização de descumprimento das normas ambientais e o impedimento de degradações ambientais indevidas, fornecendo-lhes instrumentos adequados para a prevenção e a repressão de eventuais infrações contra a ordem ambiental[11].
Ocorre que, de modo reconhecidamente inovador, o citado diploma veio a lume com dispositivo versando especificamente sobre o tema. Com efeito, sem embargo de sua redação um tanto quanto confusa, o Art. 17 da multicitada Lei Complementar define a competência fiscalizatória em matéria ambiental, verbis:
“Art. 17. Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada.
§ 1o Qualquer pessoa legalmente identificada, ao constatar infração ambiental decorrente de empreendimento ou atividade utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores, pode dirigir representação ao órgão a que se refere ocaput, para efeito do exercício de seu poder de polícia.
§ 2o Nos casos de iminência ou ocorrência de degradação da qualidade ambiental, o ente federativo que tiver conhecimento do fato deverá determinar medidas para evitá-la, fazer cessá-la ou mitigá-la, comunicando imediatamente ao órgão competente para as providências cabíveis.
§ 3o O disposto no caput deste artigo não impede o exercício pelos entes federativos da atribuição comum de fiscalização da conformidade de empreendimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos naturais com a legislação ambiental em vigor, prevalecendo o auto de infração ambiental lavrado por órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização a que se refere o caput”.
Em que pese certa celeuma em torno do referido dispositivo legal, havendo quem entendesse ter ele suprimido a competência do IBAMA para fiscalizar empreendimentos licenciados por outros entes federativos, não parece essa a interpretação constitucionalmente adequada do preceptivo.
É que diante da referida opção do constituinte por um cooperativismo concorrente em matéria de proteção ambiental, parece evidente que qualquer regra sobre competência que venha a ser estabelecida pela legislação infraconstitucional deve se orientar por esse norte supremo, sob pena de carrear a pecha de inconstitucionalidade. Portanto, a edição de diploma legal que aparentemente subtraia a competência comum de fiscalização ambiental deverá passar por uma interpretação conforme a Constituição[12].
Ao analisar os benefícios da constitucionalização do ambiente, para além de um abstrato impacto político e moral, CANOTILHO e MORATO LEITE, referem-se a uma máxima preeminência dos deveres, direitos e princípios ambientais que implicam nas seguintes balizas teóricas:
“Inicialmente, a interpretação das normas infraconstitucionais deve ser feita da forma mais concordantes com a Constituição – é o princípio da interpretação conforme à Constituição; além disso, tais normas, se desconformes com a Constituição, serão inválidas, não podendo ser aplicadas pelos tribunais. Finalmente, exceto se inquestionavelmente inexequíveis em sim mesmo, os dispositivos constitucionais têm aplicação direta, existam ou não leis e regulamentos intermediários; aplicação que se dá, inclusive, contra ou em lugar de lei ou regulamento que à norma constitucional se oponha[13].
Mais à frente, já se referindo ao esforço exegético pró-ambiente das normas constitucionais, aduzem os citados juristas:
Por derradeiro, a norma constitucional, sobretudo em países com firme tradição constitucional, é uma poderosa ferramenta exegética. Seu uso faz-se prevalente no cotidiano da prática administrativa ou judicial. Nessa perspectiva, traz em si o papel de verdadeiro guia para a boa compreensão na norma infraconstitucional por juízes, administradores e outros destinatários. Exatamente porque a proteção constitucional do meio ambiente situa-se numa posição elevada da hierarquia das normas (=preeminência), sua simples existência determina a (re)leitura do direito positivo nacional – passado, presente e futuro – em particular, no balanceamento dos interesses conflitantes[14].
Nessa ordem de idéias, pode-se concluir que a interpretação da legislação infraconstitucional ambiental deve estar concatenada com a ratio das normas ambientais constitucionais, as quais erigem a proteção do meio ambiente a uma hierarquia visivelmente superior, como se extrai do Art. 225 da Constituição da República ao prescrever que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, estabelecendo ainda uma série de deveres por parte do poder público, verbis:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; (Regulamento)
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; (Regulamento) (Regulamento)
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (Regulamento)
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; (Regulamento)
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; (Regulamento)
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
Partindo dessa premissa, e considerando que não há que se falar em interpretação conforme quando a norma extraída da interpretação do texto constitucional se mostre incompatível com a redação do dispositivo legal[15], uma primeira observação que se faz, nesse desiderato, é que, malgrado tenha o caput pretendido cerrar a atribuição dos entes aos federados à fiscalização dos empreendimentos por ele próprios licenciados, vem o seu parágrafo terceiro temperar a rigidez da cláusula reautorizando a atribuição comum de fiscalização; vale reiterar com destaque:
Art. 17. Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada.
(...)
§ 3o O disposto no caput deste artigo não impede o exercício pelos entes federativos da atribuição comum de fiscalização da conformidade de empreendimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos naturais com a legislação ambiental em vigor, prevalecendo o auto de infração ambiental lavrado por órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização a que se refere o caput. (destaque do expositor)
Impende lembrar ainda que não bastasse o já referido Art. 23, III, VI e VII da Constituição instituir uma clara cooperação entre os entes federativos em matéria de proteção ambiental, também em outras passagens da Carta se vislumbra princípios expressos ou implícitos que apontam para uma salutar concorrência em termos de fiscalização ambiental.
Com efeito, das disposições insertas no Art. 225 da Carta se extrai o Princípio da obrigatoriedade da intervenção do Poder Público, determinante do caráter vinculado do poder de policia ambiental, que não fica sujeito a conveniência e oportunidade na escolha do melhor momento e maneira de sua exteriorização[16].
Também pelo Princípio do controle do poluidor pelo Poder Público as atribuições e intervenções do Poder Público são necessárias à manutenção, preservação e restauração dos recursos naturais, com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente. Comentando o principio, Edis Milaré aponta que sua raiz se encontra no preceptivo constitucional inserto no art. 23, caput, VI, que estabelece a solidariedade de todos os entes do Poder Público para a proteção do meio ambiente e o combate a todas as formas de poluição[17].
Importante pontuar, outrossim, que pelo principio da vedação ao retrocesso ecológico, que já recebeu aval do Superior Tribunal de Justiça[18], seria defeso o recuo legislativo a patamares inferiores de proteção ambiental, pois esta deve ser crescente[19].
Veja-se, ainda que o Estado de Direito Ambiental permite a participação ativa da sociedade na gestão ambiental, incluindo a salutar fiscalização do próprio cidadão - o que se convencionou chamar princípio da participação[20]. Ora, como seria possível permitir-se ao cidadão fiscalizar a higidez ambiental e ao mesmo tempo tolher o poder de policia de um agente publico vinculado a órgão ambiental? Não se pode olvidar aqui a lição das mais comezinhas no sentido de que o Poder Público não pode se despojar de suas responsabilidades no domínio do poder de polícia.
Por outro lado, considerando que o ordenamento jurídico deve ser encarado com um aglomerado normativo harmônico, faz-se relevante observar que dita interpretação se coaduna com a ordem disposta no Art. 70, parágrafo 3º da Lei 9.605/98, verbis:
“Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.
(...)
§ 3º A autoridade ambiental que tiver conhecimento de infração ambiental é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante processo administrativo próprio, sob pena de co-responsabilidade”.
Ao que parece, caso não se admitisse a ação repressiva pelos agentes de fiscalização de quaisquer dos níveis federativos em caso de flagrante atentado ao meio ambiente, estar-se-ia admitindo, ainda que por vias transversas, que o mesmo concorresse para própria infração ao se omitir quanto a sua perpetuação - o que encontraria claro óbice na disposição abrangente do Art. 2º da citada lei de crimes ambientais:
“Art. 2º Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la”.
Há quem diga que a intenção do legislador fora o de associar com exclusividade a competência fiscalizatória à licenciatória, mormente no intuito de enfraquecer as atribuições do IBAMA, autarquia sabidamente responsável pela grande maioria das autuações ambientais, mas não tanto pelos licenciamentos.
Ocorre que tal interpretação teleológica no caso desbordaria não só de texto expresso da lei (§3° do Art. 17) como da própria Constituição. Ademais, conforme proficiente ponderação de Ives Gandra Martins, a lei é sempre mais inteligente que o legislador, verbis:
Nem pode ser a lei interpretada, à luz da intenção legislativa, da vontade do legislador. Nem sempre a lei reproduz ou a vontade do legislador ou esta vontade corresponde à adaptação da lei ao sistema. Diz-se que a lei é sempre mais inteligente que o legislador. É que ela deve ser intepretada à luz de seu antecedente superior, que é a Constituição, e à luz de sua integração em todo o sistema hermenêutico”. (MARTINS, Ives Gandra da Silva. Uma breve introdução ao direito. Ed. Revista dos Tribunais, 2010: São, Paulo, p. 138-139)
3.2 - a solução para o caso de dupla autuação.
Não se olvida que essa exegese dá azo a existência de mais de uma autuação em principio válida, caso os entes federativos venham a atuar de modo concomitante, o que aparentemente poderia resultar em dupla punição. No entanto, não se faz necessário minar a salutar competência concorrente no intuito de coibir a duplicidade punitiva.
Com efeito, caso haja mais de uma autuação não haverá sobreposição ou bis in idem, porquanto deverá prevalecer a multa do órgão licenciador original – sendo esta a interpretação que, a par de compatibilizar o Art. 17 da LC 140/2011 com o seu paragrafo terceiro, melhor se conforma com as disposições constitucionais.
A lei, portanto, apenas mudou a sistematiza vigorante até então, com espeque no art. 76 da Lei 9.605/98, segundo o qual “o pagamento de multa imposta pelos Estados, Municípios, Distrito Federal ou Territórios substitui a multa federal na mesma hipótese de incidência”. Ou seja, agora o critério não é simplesmente supletivo, mas objetivo, tomando-se como base a competência licenciatória.
Assim, em um caso prático, tão logo autuado o infrator ambiental e adotadas as medidas cautelares expressas na Lei 9.605/98 e Decreto 6.514/08 pelo IBAMA, deve a autarquia oficiar o órgão licenciador indagando se já existe auto de infração lavrado em virtude dos mesmos fatos. Acaso exista, não resta dúvidas de que deve o ente autuante cancelar o auto de infração e as medidas cautelares porventura adotadas, relegando ao órgão estadual/municipal (a depender da competência licenciatória) o papel de prosseguir com a repressão administrativa do ilícito. Acaso não exista, deverá prosseguir normalmente com o processo administrativo de autuação e todos os seus consectários.
A conclusão parece sensata e razoável, sendo cediço que a razoabilidade também incide no plano abstrato da elaboração das normas.
D’outro modo, não parece justo e razoável que nesses casos se siga com o processo administrativo suspendendo-o apenas no momento de execução, para aguardar o desfecho do processo no âmbito estadual/municipal. É que, primeiro, tal providencia parece ir de encontro ao principio da eficiência administrativa, que preza pela redução de custos. Segundo, tal situação poderia causar severa insegurança jurídica e ônus demasiado ao autuado, que se veria perdido sem saber quem detém legitimidade de fato para imputar-lhe a multa e demais medidas, tendo que exercer o contraditório e a ampla defesa duas vezes.
Porém, não podemos concordar também com que defende que se deva determinar prazo para que o órgão competente emita auto de infração. É que, a não ser assim, ter-se–ia indevida intromissão na autonomia administrativa dos entes federados, em ofensa ao Art. 18 da Carta Magna[21]. Ademais, considerando que com a instauração do auto de infração se inicia o processo administrativo de autuação, a solução poderia trazer implicações negativas em termos de prescrição.